Excelente artigo em defesa do Sisu e do sistema das cotas.

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Por Naercio Menezes Filho – 

Frequentar o ensino superior público no Brasil sempre foi privilégio das elites. Nas últimas duas décadas, porém, o sistema de acesso às universidades públicas passou por mudanças profundas. Primeiro houve a criação do Enem em 1998, que passou a ser obrigatório para obtenção das bolsas do Prouni em 2004. Em 2010, o Enem também se tornou obrigatório para inscrição no Sisu (sistema de seleção unificada para o ensino superior). O sistema nacional de cotas, criado em 2012, completou o ciclo de mudanças. Quais foram as consequências dessa profunda reformulação no acesso ao ensino superior no Brasil? Houve ganhos de eficiência? Será que a evasão aumentou? O que aconteceu com a qualidade do ensino?

O acesso ao ensino superior público no Brasil sempre foi restrito e desigual. Em 1992, por exemplo, somente 7,4% dos brancos em idade de cursar o ensino superior estavam matriculados, ao passo que entre os negros e pardos essa taxa era de apenas 1,4%. Mas, atualmente grande parte do processo de seleção para ingresso nas universidades públicas é feito através do Sisu, com oferta de 235 mil vagas nas universidades, institutos e centros tecnológicos federais, um forte aumento com relação ao ano inicial (2010), em que menos de 50 mil vagas estavam disponíveis. Isso, por si só, é um sinal de que o sistema está funcionando.




Para concorrer através do Sisu o candidato tem que fazer o Enem e tirar nota maior do que zero em redação. Algumas instituições requerem notas mínimas para aceitar candidatos, outras dão pesos diferentes para notas nas diversas áreas e outras têm processos de seleção mistos, combinando Sisu e vestibular próprio. No momento da inscrição, o candidato pode escolher entre o sistema de ampla concorrência ou de ação afirmativa. Desde 2012, 50% das vagas são reservadas para alunos da escola pública e dentro dessas vagas há cotas para alunos de baixa renda e para os pretos, pardos e indígenas. A inscrição no Sisu é gratuita e as notas de corte no sistema de ampla concorrência e no sistema de cotas são bem próximas nos cursos mais concorridos.

Mudanças no acesso ao ensino superior foram um dos principais avanços em políticas públicas no país nos últimos anos

No dia em que as inscrições para o Sisu são abertas, todos os alunos podem se matricular nos cursos de sua escolha, escolhendo duas opções em ordem de preferência. No final de cada dia, o aluno tem acesso às notas de corte daquele dia para ingresso nas suas duas opções preferidas e a sua classificação na primeira opção. O aluno pode pesquisar as notas de corte de todos os cursos no sistema e pode mudar suas escolhas ou inverter a ordem de suas opções a qualquer momento. As opções definitivas são as registradas no último dia, quando o sistema fecha. Em seguida, o Sisu divulga os classificados em cada carreira, que devem fazer suas matrículas nas instituições de ensino.

Além disso, o aluno pode usar a nota do Enem para se inscrever no Prouni. O Prouni oferece bolsa integral em faculdades privadas para estudantes que comprovem renda familiar per capita de até um salário mínimo e meio e bolsa parcial (50%) para estudantes com renda familiar per capita de até três salários mínimos. Podem ser candidatos ao Prouni os estudantes que obtiveram no mínimo 450 pontos na média do Enem, além de nota na redação maior que zero. As bolsas de estudo são concedidas conforme as notas obtidas pelos estudantes no Enem. Pesquisas mostram que as notas médias dos alunos aceitos nas faculdades privadas através do Prouni são iguais ou até melhores do que os alunos aceitos através do vestibular tradicional.

Quais os efeitos do Sisu e das cotas sobre o sistema de ingresso no ensino superior público? Dois artigos recentes investiram exatamente essa questão. O primeiro deles, de Cecilia Machado e Christiane Szerman1, concluiu que as instituições que usam o Sisu conseguem atrair mais alunos de outros Estados e que não há aumento da evasão após o primeiro ano, ou seja, que a eficiência do sistema aumentou. Como o aluno não precisa viajar para fazer o vestibular em outros Estados, não precisa fazer vários vestibulares na mesma época, nem pagar diversas taxas, a mobilidade aumentou.

Um outro artigo recente, de Ursula Mello2, também traz resultados muito interessantes. Ao analisar o efeito conjunto do Sisu e das cotas, o artigo primeiro mostra que as cotas realmente foram capazes de aumentar o acesso das minorias, principalmente nos cursos em que a presença delas era inicialmente menor, como Medicina e Engenharia. Por outro lado, o Sisu fez com que os alunos mais ricos de outros Estados ocupassem os lugares das minorias nos seus Estados de origem. E qual foi o efeito líquido das duas políticas?

O artigo mostra que houve aumento das matrículas dos alunos mais pobres de outros Estados nos cursos de maior prestígio e uma diminuição nas matrículas desses alunos nos cursos menos concorridos. Ou seja, para alunos mais pobres não compensa enfrentar os pesados custos de migração quando a expectativa de retorno salarial futura do curso é baixa. Porém quando os retornos futuros da carreira são atraentes, vale a pena fazer a viagem.

Além disso, o artigo mostra que o Sisu ampliou o efeito das cotas, pois os alunos mais pobres têm que entrar no sistema para ingressar no ensino superior público. E uma vez dentro do sistema, eles têm acesso a todas as informações sobre número de vagas e notas de corte dos cursos em todo o Brasil, podendo almejar uma vaga mais coerente com suas notas. Ou seja, a beleza do sistema é a interação entre as partes.

Por fim, vários estudos mostram que o ingresso dos alunos das escolas públicas nas universidades públicas através das cotas não aumentou a evasão nem diminuiu as notas médias durante o curso, mesmo nas carreiras mais disputadas. Isso ocorre porque os cotistas têm habilidades socioemocionais maiores do que os não-cotistas, pois conseguiram boas notas no Enem mesmo tendo partido de uma posição muito inferior em termos de desenvolvimento infantil e qualidade do ensino básico. Isso fez com que eles se acostumassem a superar obstáculos.

Em suma, as mudanças no acesso ao ensino superior foram um dos principais avanços em termos de políticas públicas no Brasil nos últimos anos, estão diminuindo aos poucos a histórica desigualdade no acesso ao ensino superior, trazendo mais diversidade para a sala de aula e irão diminuir a desigualdade de renda no futuro. O Sisu, o sistema de declarações de imposto de renda da Receita Federal e as urnas eletrônicas são exemplos do Brasil que funciona. Pena que ainda sejam a minoria.

1- Centralized Admissions and the Student-College Match.

2- Affirmative Action, Centralized Admissions and Inequality in Access to Higher Education: Evidence from Brazil

Naercio Menezes Filho, Professor Titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper, professor associado da FEA-USP e membro da Academia Brasileira de Ciências, escreve mensalmente às sextas-feiras (email: naercioamf@insper.edu.br)

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