Por Lúcui Castro, compartilhado de Agência Sportlight –
De um lado está o discurso de Jair Bolsonaro. Do outro a realidade. Os fatos. Entre o discurso e a realidade existe o Autódromo de Deodoro. Ou não existe. Na versão presidencial, a pista será construída sem utilização de “nenhum dinheiro público”.
De acordo com os fatos, o Exército Brasileiro já recebeu o equivalente a R$ 121.655.362,28 (cento e vinte e um milhões, seiscentos e cinquenta e cinco mil, trezentos e sessenta e dois reais e vinte e oito centavos) citados aqui em valores corrigidos, para liberar o terreno da futura pista que não sai do papel. Dinheiro público.
A presença verde e oliva no projeto talvez seja a única explicação para uma cena ocorrida no dia 8 de maio, no Aterro do Flamengo, na cerimônia de comemoração do Dia da Vitória na 2ª Guerra Mundial. Ninguém entendeu quando o presidente da república fez da construção do autódromo de Deodoro o ponto principal do discurso.
Autódromo em Deodoro virou protagonista em discurso de Bolsonaro
O inesperado protagonismo da pauta veio acompanhado da garantia de que o novo autódromo seria construído sem um centavo público.
“São Paulo, como havia participação pública e uma dívida enorme, tornou-se inviável a permanência da Fórmula 1 lá. Então, vieram para o Rio de Janeiro, e o autódromo será construído em seis, sete meses, após o início das obras. De modo que, pela ocasião da Fórmula 1 do ano que vem, ela será realizada no Rio. Serão milhares de empregos, setor hoteleiro feliz com toda certeza, 7 mil empregos diretos e indiretos para sempre. Ganha o Rio de Janeiro, ganha o Brasil. Sem nenhum dinheiro público”, afirmou o presidente, ladeado por militares, pelo governador Wilson Witzel e o prefeito Marcelo Crivella.
O discurso do custo zero para os cofres públicos não resiste ao exame dos fatos.
Em 30 de junho de 2008, o Comitê Olímpico Brasileiro (COB), Prefeitura do Rio de Janeiro, Ministério do Esporte e Confederação Brasileira de Automobilismo, assinaram convênio em busca de lugar para sediar o novo autódromo da cidade, já que o terreno onde ficava o então existente, em Jacarepaguá, integraria o projeto de instalações olímpicas em caso de vitória do Rio como sede de 2016, como de fato ocorreu no ano seguinte.
Diante da confirmação (2009) da sede olímpica de 2016, as entidades escolheram o terreno conhecido como Fazenda Sapopemba, uma área de cerca de dois milhões de metros quadrados pertencente ao exército brasileiro, em Deodoro, para ser o futuro autódromo. Consultada na ocasião, a Superintendência de Patrimônio da União atestou que a transferência era um ato administrativo simples, “pois se tratava de reversão de terreno da União para a União, e que consistiria na homologação de solicitação do Comando do Exército Brasileiro”.
O passo seguinte foi o acordo entre o Ministério do Esporte, então comandado pelo atualmente deputado federal Orlando Silva (PC do B), e o exército, no sentido de que a reversão seria possível desde que a força armada fosse ressarcida nas despesas de remoção das instalações ali existentes e da realocação de 21 militares ali residentes, os chamados de “Próprios Nacionais Residenciais”.
Em 4 de julho de 2012, foi publicado no Diário Oficial da União o “Extrato de Cooperação” celebrado entre a União, através do Ministério do Esporte, e o Comando do Exército, através do Departamento de Engenharia e Construção. Com valor então de R$ 65.953.951,56 (sessenta e cinco milhões, novecentos e cinquenta e três mil, novecentos e cinquenta e um reais e cinquenta e seis centavos), a título de ressarcimento. R$ 65.953.951,56 para remoção das instalações ali existentes e realocação de 21 militares ali residentes.
Vencidas dificuldades burocráticas para enquadrar a maneira pela qual o pagamento seria realizado e o tipo de transferência, após embates sobre a forma jurídica de como seria enquadrada a fatura, em 2014, com o Ministério do Esporte comandado por Aldo Rebelo, que, por seu trânsito largo com militares viria depois inclusive a ser Ministro da Defesa, é iniciada a transferência de recursos. Que passaria a valores mais altos do que o publicado no Diário Oficial da União de julho de 2014.
Entre 2014 e 2018 o Ministério do Esporte realizou sete transferências de recursos para o Comando do Exército pela liberação de Deodoro
Em 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018, o Ministério do Esporte realiza sete transferências de recursos para o Comando do Exército, no valor total de R$ 86.039.053,00 (oitenta e seis milhões, trinta e nove mil, cinquenta e três reais) como mostra o quadro abaixo, documento obtido via Lei de Acesso à Informação junto ao Ministério do Esporte, transformado no atual governo em Secretaria Especial do Esporte do Ministério da Cidadania.
A partir dos valores da transferência do Ministério do Esporte para o Exército descritos no quadro acima, a reportagem destacou os sete pagamentos e realizou a conversão para os dias de hoje pela taxa do IGP-M, partindo da data da publicação no Diário Oficial da União para os dias atuais de cada um dos depósitos.
Assim, os R$ 86.039.053,00 corrigidos passam a ser R$ 104.957.602,47 (cento e quatro milhões, novecentos e cinquenta e sete mil, seiscentos e dois reais e quarenta e sete centavos).
Valores pagos pelo Ministério do Esporte para o Exército corrigidos pelo IGP-M :
1- 19/12/2014- 30.000.000,00 – corrigido valor IGP-M setembro 2019-
R$ 39.833.067,00
2- 21/8/2015- 20.439.053,00 corrigido IGP-M setembro 2019:
R$ 25.673.747,92
3- 2/6/2016 – 4.500.000,00 corrigido IGP-M setembro 2019:
R$ 5.157.486,00
4- 7/12/2016- 4.000.000,00 corrigido IGP setembro 2019:
R$ 4.478.613,60
5- 3/11/2017 – 9.000.000,00 corrigido IGP-M setembro 2019:
R$ 10.218,967,20
6- 28/12/2017 – 10.000.000,00 corrigido IGP-M setembro 2019:
R$ 11.295.671,00
7- 6/11/2018- 8.100.000,00 corrigido IGP setembro 2019:
R$ 8.300.049,75
Total com correção para setembro de 2019 pelo IGP-M: R$ 104.957.602,47:
Além deste total de transferências para ressarcimento, o Ministério do Esporte ainda se responsabilizou por pagar R$ 12.575.802,77 (doze milhões, quinhentos e setenta e cinco mil, oitocentos e dois mil e setenta e sete centavos) ao exército pelo serviço de “detecção, varredura, limpeza e neutralização de artefatos de natureza militar”, já que a área era utilizada para treinamentos das tropas. Como tal pagamento foi realizado em dezembro de 2014, com a correção do IGP-M para setembro de 2019, o valor chega a R$ 16.697.759,81(dezesseis milhões, seiscentos e noventa e sete mil, setecentos e cinquenta e nove reais e oitenta e um centavos).
Somados os R$ 104.957.602,47 (cento e quatro milhões, novecentos e cinquenta e sete mil, seiscentos e dois reais e quarenta e sete centavos) do valor corrigido de transferências do Ministério do Esporte para o Exército pelo terreno de Deodoro e mais os R$ 16.697.759,81(dezesseis milhões, seiscentos e noventa e sete mil, setecentos e cinquenta e nove reais e oitenta e um centavos) para limpeza da área, chega-se ao valor de R$ 121.655.362,28 (cento e vinte e um milhões, seiscentos e cinquenta e cinco mil, trezentos e sessenta e dois reais e vinte e oito centavos).
Exército negou valor apurado pela reportagem mas depois confirmou
A reportagem enviou questionamento sobre os valores recebidos ao exército brasileiro, através da assessoria de imprensa do Comando do Exército, citando a quantia que está descrita na Lei de Acesso à Informação obtida pela Agência Sportlight de Jornalismo Investigativo.
Na primeira comunicação, o exército negou o montante, afirmando que “não coincide com o valor mencionado” na questão enviada pela reportagem.
A Agência Sportlight de Jornalismo Investigativo enviou réplica, informando que a soma final havia sido obtida em documentos via Lei de Acesso à Informação. E ainda que o exército discordava dos valores enviados pela reportagem mas não informava o que considerava o correto.
Na resposta para a réplica, o exército afirmou enfim que “o valor do repasse acordado nos termos dos documentos supracitados coincide com o valor mencionado” pela reportagem. (ver íntegra da comunicação ao fim da reportagem em “outro lado”).
General Heleno foi contratado com salário milionário pelo COB na época das negociações com o exército por Deodoro
Parceiros do exército e do Ministério do Esporte na empreitada de viabilizar local para o novo autódromo, o Comitê Olímpico Brasileiro (COB), então comandado por Carlos Arthur Nuzman, contratou, nesse período, o general Augusto Heleno para suas fileiras.
Hoje ocupando posto chave do governo Bolsonaro como chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), entrou para a função de “diretor executivo de comunicação e educação corporativa”, de confiança de Nuzman. Foi admitido em agosto de 2011, logo após a ida para a reserva nas forças armadas e ficou até o dia 9 de novembro de 2017, um mês depois da prisão do dirigente do COB, denunciado por corrupção.
O salário do general Heleno no COB em outubro de 2017 foi de R$ 58.581,00 (cinquenta e oito mil, quinhentos e oitenta e um reais), sendo que desse montante, R$ 47.024,00 (quarenta e sete mil e vinte e quatro reais tinham como origem dinheiro público, vindo da arrecadação do COB com a Lei Agnelo Piva. E R$ 11.557,00 (onze mil, quinhentos e cinquenta e sete reais) pagos pela entidade.
Outro lado: A reportagem enviou para o Comando do Exército, através da assessoria de imprensa, questão sobre os valores recebidos até aqui pela instituição.
Caros responsáveis pela Ascom do Comando do Exército,
Estou fechando reportagem sobre o Autódromo de Deodoro.
Envio a questão abaixo sobre os valores recebidos pelo Exército Brasileiro por parte do Ministério do Esporte como ressarcimento pela remoção das instalações ali existentes e realocação dos militares ali residentes.
De acordo com os números obtidos pela reportagem, entre 2014 e 2018 o Ministério do Esporte realizou oito transferências de recurso para o Comando do Exército, somando o valor total de R$ 86.039.053,00 (oitenta e seis milhões, trinta e nove mil e cinquenta e três reais).
Gostaria de confirmar esses números e saber se a totalidade desse valor foi utilizada no trabalho de remoção das instalações e realocação dos militares residentes.
Resposta:
Atendendo à sua solicitação formulada por meio de mensagem eletrônica, de 7 de outubro de 2019, sobre a construção de um novo autódromo para o município do Rio de Janeiro na região de Deodoro, o Centro de Comunicação Social do Exército informa que foram firmados um “Termo de Cooperação” e um “Acordo de Cooperação Técnico Financeiro” que estabeleceram repasse de recursos do Ministério do Esporte ao Exército Brasileiro.
O valor do repasse acordado nos termos dos documentos supracitados não coincide com o valor mencionado por vossa senhoria em seu pedido de 07 de outubro de 2019.
Destaca-se que o mencionado recurso financeiro foi encaminhado ao Departamento de Engenharia e Construção (DEC), órgão do Exército Brasileiro responsável pela realização das obras de cooperação e obras militares.
Por fim, ressalta-se que o Exército Brasileiro cumpriu o previsto nos citados contratos e realizou as contrapartidas firmadas entre os partícipes.
Atenciosamente,
Centro de Comunicação Social do Exército
Exército Brasileiro.
Réplica da reportagem:
Caros responsáveis por esta Ascom/CEX,
Agradecendo reiteradamente pela atenção em relação a questão enviada, deixo a seguinte dúvida:
Na resposta, este CEX afirma que o valor não confere com o informado. No entanto, não informa a quantia objeto da divergência. Agradeço caso possam enviar, já que o número enviado de nossa parte foi obtido por documentacao pública e Lei de Acesso. Mais uma vez muito obrigado.
Resposta do Exército para a réplica:
Prezado Jornalista Lúcio de Castro,
Atendendo à sua solicitação formulada por meio de mensagem eletrônica, de 11 de outubro de 2019, sobre a construção de um novo autódromo para o município do Rio de Janeiro na região de Deodoro, o Centro de Comunicação Social do Exército informa que foram firmados um “Termo de Cooperação” e um “Acordo de Cooperação Técnico Financeiro” que estabeleceram repasse de recursos do Ministério do Esporte ao Exército Brasileiro. O valor do repasse acordado nos termos dos documentos supracitados coincide com o valor mencionado por vossa senhoria em seu pedido registrado no Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão (e-SIC), no processo Nr: 60502001721/2019-26, de 29 de julho de 2019.
Atenciosamente,
Centro de Comunicação Social do Exército
Exército Brasileiro.