‘Existe uma perseguição da Igreja Evangélica aos pajés’

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Lideranças indígenas denunciam intolerância religiosa na evangelização de tribos

Perpera, o ex-pajé dos Paiter Suruí,, povo indígena de Rondônia que foi evangelizado no final do anos 60. Foto de divulgação
Perpera, o ex-pajé dos Paiter Suruí,, povo indígena de Rondônia que foi evangelizado no final do anos 60. Foto de divulgação

Dois homens pescam à beira de um rio margeado pela densa floresta amazônica no território indígena Paiter Suruí, em Rondônia, próximo à fronteira com o Mato Grosso. Longe dos ouvidos de moradores de sua aldeia, eles conversam acomodados sobre galhos parcialmente submersos na água turva: “Você tem vontade de voltar a ser pajé?”, pergunta o mais jovem.

“Não é possível”, responde Perpera, que tem mais de 60 anos – a idade é inexata. “Depois que o pastor disse que o pajé é coisa do diabo, ninguém mais falou comigo, viraram o rosto para mim. Só voltaram a falar comigo depois que eu fui para a igreja”.




Depois que o pastor disse que o pajé é coisa do diabo, ninguém mais falou comigo, viraram o rosto para mim. Só voltaram a falar comigo depois que eu fui para a igreja

Perpera
Ex-pajé do povo Paiter Suruí

A cena é do documentário “Ex-Pajé”, que estreou na última quinta-feira em cinemas brasileiros e cujo cartaz estampa premiações dos festivais “É Tudo Verdade” e de Berlim. Perpera é o personagem central do filme que mostra como a maior entidade indígena perdeu sua função milenar e acabou marginalizado após a aldeia Lapetanha converter-se à crença evangélica.

A relação de povos indígenas com o cristianismo é conflituosa desde a colonização do Brasil. O que os paiter suruís estão agora vivenciando é uma tendência considerada por lideranças indígenas como “novas cruzadas de intolerância”. Na première mundial em Berlim, o diretor do filme, Luiz Bolognesi, leu uma carta manifesto assinada por 28 lideranças e 15 associações indígenas denunciando o avanço de missões protestantes sobre as aldeias e pedindo o respeito aos pajés e às medicinas da floresta.

Cartaz do filme "Ex-Pajé", de Luiz Bolognesi. Divulgação
Cartaz do filme “Ex-Pajé”, de Luiz Bolognesi. Divulgação

Séculos de conflitos com a Igreja

Após séculos de catequização, a Igreja Católica ensaiou sua primeira retratação aos povos indígenas nos anos 1970. A partir daí, papas como João Paulo 2º e Francisco reforçaram o  pedido de desculpas pelas agressões da igreja contra nativos da América Latina. Ultimamente a instituição tem freado sua influência sobre as

aldeias.

No entanto, como o manifesto alerta, “o processo não arrefeceu” e hoje é encabeçado pelas missões evangélicas. Não é um movimento novo. Há relatos de ações missionárias protestantes desde o início do século XX. Para se ter ideia, a primeira missão que deu origem à chamada Igreja Evangélica Indígena foi em 1912. Nas décadas seguintes, as missões acompanharam a exploração das regiões Centro-Oeste e Norte do Brasil.

Eu tenho dois amigos pajés que estão presos no Acre por lutarem contra o evangelismo em suas aldeias, por usarem os remédios da floresta. Existe uma perseguição da Igreja Evangélica aos pajés

Cristine Takua
Filósofa

Recentemente essa dinâmica vem mudando, segundo a filósofa e representante da comissão Guarani yvy rupa, Cristine Takua, uma das autoras do manifesto. “O momento atual desta entrada dos evangélicos, dos anos 2000 para cá, representa uma segunda cruzada”, explica Takua. “É muito, mas muito violento. Tem casas de reza sendo queimadas, pajés sendo presos e mortos. Ninguém sabe disso, mas está acontecendo”.

Takua é mulher de um pajé na aldeia de Rio Silveira, no litoral paulista, onde as tradições

guaranis são preservadas. Ela conta ter acompanhado casos de conflitos de missões evangélicas espalhadas por aldeias de todo o Brasil. Essas aldeias estão fragmentadas entre aqueles que seguem as tradições indígenas e os evangélicos. “Eu tenho dois amigos pajés que estão presos no Acre por lutarem contra o evangelismo em suas aldeias, por usarem os remédios da floresta. Existe uma perseguição da Igreja Evangélica aos pajés”, afirma.

O diretor do filme e antropólogo, Luiz Bolognesi, conversou com o Projeto #Colabora do Acampamento Terra Livre, uma tradicional reunião anual que atrai mais de 100 etnias a Brasília durante uma semana. Ele conta que o filme foi exibido lá e que o assunto ganhou as rodas de debate. “Foi o assunto do dia. Eles contaram como estão enfrentando e expulsando as igrejas, algo que sempre traz conflito por parte da comunidade evangelizada”, relata.

De líder espiritual, Perpera passou a zelador da igreja evangélica da aldeia. Foto Divulgação
De líder espiritual, Perpera passou a zelador da igreja evangélica da aldeia. Foto Divulgação

Cestas básicas e remédios

A aproximação de evangélicos costuma se dar pela oferta de cestas básicas, remédios e outros presentes às tribos indígenas, muitas delas pobres e relegadas. Passadas décadas do primeiro contato, hoje as lideranças evangélicas nem sempre vêm de fora, há também os caciques pastores. Com isso, além da disputa religiosa, outros temas sofrem impasses com o choque de culturas, como a educação dos jovens ou a promoção de saúde da aldeia.

A Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB) representa mais de 40 instituições missionárias evangélicas e tem um departamento para assuntos indígenas. A entidade foi contactada, mas até o momento não retornou. Num manifesto de 2009, a associação escreveu que as ações missionárias em aldeias é alvo de preconceito e desinformação na sociedade. E enfatiza que o foco de suas ações é social e que não há imposição religiosa sobre os povos.

No ano passado, um caso suscitou esse debate. Um pastor evangélico publicou no Facebook uma foto em que aparece comemorando o batismo de 38 xavantes do município de Água Boa, em Mato Grosso, entre eles o cacique do grupo. A imagem viralizou e rendeu uma enxurrada de críticas ao pastor Isac Santos, da Igreja Tempo de Semear, que replicou: “Os indígenas dizem que podem tomar suas próprias decisões. Eles escolheram a nossa fé. Parece que é crime o fato de eles terem escolhido o cristianismo”.

Intolerância religiosa e política

Os conflitos religiosos em aldeias indígenas se espalham silenciosamente, longe do debate público. São poucos os dados e estudos sobre a evangelização ou as denúncias dos que sofrem por seguirem os preceitos espirituais da floresta. Em 2016, o Ministério de Direitos Humanos lançou um relatório mapeando as denúncias de intolerância religiosa ocorridas entre 2011 e 2015. Sobressaíram-se os casos contra as religiões de matriz africanas. Já os indígenas – muitos sem falar português ou longe dos centros urbanos – são pouco mencionados.

Mas se no relatório eram vagos os dados quantitativos, as denúncias emergiram nas vozes dos indígenas, através de entrevistas focais. Nelas, eles confirmam que a educação escolar e religiosa promovida por missionários católicos e evangélicos combate as práticas de pajelança. “Os pajés foram considerados feiticeiros e, muitas vezes, quando alguém morria em uma aldeia, os pastores diziam que os pajés eram os responsáveis”, escreve o documento com base nos relatos. E acrescenta que, com isso, “a transmissão dos conhecimentos de uma geração a outra foi cortada, e muito dos saberes dos pajés foram perdidos”.

Cristine Takua e outras lideranças indígenas articulam buscar apoio da ONU para a situação, já que não enxergam diálogo com o atual governo, apoiado pelas bancadas ruralista e evangélica, que entram em constante choque com o movimento indígena. “Hoje há uma configuração no Senado dos ruralistas e evangélicos muito forte. Hoje o evangélico que entra na aldeia para catequizar não é só para levar a cruz, mas também para desarticular politicamente a comunidade, para que ela não consiga lutar pela demarcação de suas terras”, diz Takua.

Contato recente com brancos

Numa cena do documentário “Ex-Pajé”, Perpera pergunta a um menino: “Você sabe como nós, pater suruí, vivemos?”. O menino rapidamente responde: “Com medo?”.

“Não… Digo, como vivíamos antes do contato com os brancos”, replica Perpera. “Quando eu era pajé, e a grande bola de fogo caía do céu, era sinal que uma guerra ia começar. As pessoas me procuravam para pedir conselho e proteção. Quando a bola de fogo caiu do céu era sinal do primeiro contato com o homem branco. Eles atacaram a aldeia e mataram muitos de nós. O nosso povo ficou sem direção, não tínhamos aonde ir”.

O primeiro contato dos Paiter Suruí com os brancos foi em 1969. Hoje o território tem energia elétrica, carros e celulares, e enfrenta a constante ameaça de madeireiros. São 19 aldeias que abrigam 1.500 indígenas num território demarcado no Estado de Rondônia. Perpera tinha por volta de 20 anos quando os brancos chegaram, mas seguiu sua prática religiosa a até menos de uma década, conta Luiz Bolognesi.

O cineasta passou um mês na aldeia Lapetanha filmando cenas cotidianas do ex-pajé, constrangido, cheio conflitos internos e com medo da reação dos espíritos da floresta. De líder espiritual, passou a zelador da igreja evangélica da aldeia. “É uma humilhação o então centro da comunidade ser relegado dessa forma”, comenta Bolognesi.

“Mas fica claro no filme que, nos momentos de crise, a aldeia evangelizada ainda busca o pajé. Quando a mãe é picada por uma cobra, eles fazem jejum, ou seja, ainda seguem preceitos de sua cultura. Existe este constante conflito entre passado e presente”, continua  Bolognesi. “O problema é que o pajé é o grande depositário da cultura indígena. Com ele sendo relegado, as tradições morrem mais rápido”.

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