Expulsão de brasileiros na Argentina: medida do governo Milei pode levar Brasil a fazer o mesmo?

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Uma das primeiras medidas tomadas pelo governo do presidente Javier Milei após a posse na Casa Rosada, o endurecimento das políticas migratórias pela Argentina tem levado à expulsão de brasileiros do país nas últimas semanas. Sob a alegação de que são “falsos turistas”, o país não tem permitido a entrada principalmente de estudantes.

Por Lucas Morais e Ludmila Zeger, compartilhado de Sputinik Brasil




Passageiros embarcam em avião da Aerolíneas Argentinas, no Aeroporto Jorge Newbery. Buenos Aires, 24 de novembro de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 26.02.2024

© AP Photo / Matias Delacroix

Terceiro maior parceiro comercial do Brasil e, até então, um dos principais aliados políticos na América Latina, a mudança de governo na Argentina tem gerado dificuldades políticas para Brasília nos mais variados aspectos. Depois de rejeitar a entrada no BRICS neste ano, que teve o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como um dos principais fiadores e passar a jogar em lados opostos no tabuleiro geopolítico, Buenos Aires passou a expulsar brasileiros sob a alegação de que são falsos turistas e não possuem a documentação correta.

A medida tem afetado principalmente pessoas que vão para estudar nas universidades argentinas (ao todo, existem cerca de 10 mil no país) e ainda pode deixar em risco cerca de 90 mil brasileiros que residem no país. Além disso, a nova política migratória fere um acordo bilateral firmado entre os dois vizinhos desde 2009, que concede o direito de permanecer em ambos os territórios por até 90 dias e não exigir dois anos de residência provisória para conseguir o direito permanente.

Os países do Mercosul, que além de Brasil e Argentina é composto por Paraguai, Uruguai e mais recentemente a Bolívia, também estabeleceram desde a criação do bloco a política de livre circulação entre os membros. A cientista política e pesquisadora do Observatório Político Sul-Americano (OPSA) Beatriz Bandeira de Mello enfatiza à Sputnik Brasil que a política adotada por Buenos Aires acende um alerta na região.

“Tende a reforçar um processo discriminatório contra esses cidadãos que podem ingressar no país, seja para estudar, como turista ou, inclusive, trabalhar. Temos muitos brasileiros que vão para a Argentina para cursar, por exemplo, medicina, considerando que lá o acesso à universidade é universal. Essa também é uma política que incidiu primeiro sobre brasileiros e no longo prazo pode significar uma securitização dessa agenda migratória”, pontua.

A doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) explica ainda que a medida “reflete uma reciclagem de políticas” que chegaram a ser implementadas durante o governo do ex-presidente Maurício Macri, em 2017, quando um decreto endureceu as políticas de controle migratório, principalmente para migrantes que cometiam crimes.

Para a especialista, a medida também dialoga com o próprio discurso do governo Milei, de ataque aos direitos humanos e da questão migratória, além do objetivo de ser porta-voz da direita na América do Sul.

“Essa política de selecionar quem pode ou quem não pode entrar no país, sob o argumento de que só vamos permitir migrantes que de fato contribuam para o desenvolvimento argentino. Só que isso acontece de forma discriminatória, não existem critérios. Vimos também lá nos Estados Unidos, [durante o governo] Trump, um discurso muito forte contra os migrantes, principalmente aqueles que vinham do México ou da América Central”, compara.

Qual a relação de Brasil e Argentina?

Diante das relações comerciais, políticas e econômicas históricas entre Brasil e Argentina, que juntos concentram mais de 65% do produto interno bruto (PIB) da América do Sul, a cientista política acredita que a decisão do governo Milei pode ser “um tiro no pé”, já que vai estremecer a parceria, principalmente no Mercosul. “Então a gente vê que talvez exista um conflito porque agora ambos os presidentes [Luiz Inácio Lula da Silva e Javier Milei] estão em espectros políticos opostos, como acontece quando [Jair] Bolsonaro era presidente do Brasil e Alberto Fernández na Argentina”, acrescenta.

Conforme a especialista, o governo Milei ainda afronta pelo menos três dispositivos legais com a expulsão de brasileiros sob o argumento da falta de documentação. Para além de desrespeitar a livre circulação entre os países-membros do Mercosul, infringe a própria Lei de Migração Argentina, de 2003, que amplia as categorias de permissão para o ingresso de estrangeiros no país e ainda garante maior proteção.

“E tratando de relações bilaterais, tem o acordo firmado entre Brasil e Argentina, que facilita a emissão de autorização de residência para a Argentina no território brasileiro e vice-versa. Então, obviamente, pode gerar um isolamento da Argentina no nível regional. O país ainda é um dos principais destinos de migração intrarregional, ou seja, de países sul-americanos”, conclui.

País pode adotar a mesma postura com estrangeiros argentinos?

Já o professor de direito internacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Lucas Carlos Lima, afirma à Sputnik Brasil que as relações entre os países são regidas pelo princípio da reciprocidade. Com isso, “o mesmo rigor utilizado pelo país argentino no controle de fronteiras poderia ser empregado pelo Brasil”, explica o especialista. Questionado sobre a situação e uma eventual mudança na política migratória para argentinos, o Itamaraty diz que “tomou conhecimento de relatos de inadmissão de estudantes brasileiros na Argentina e realizou gestões sobre o tema junto às autoridades locais”.

A situação ainda poderia causar, segundo o especialista, futuras consultas diplomáticas ou até processos judiciais de “denegação de direitos” reconhecidos internacionalmente.

“Não me parece, portanto, uma medida que vai facilitar a vida do presidente Milei […]. A medida coloca em xeque toda uma série de iniciativas voltadas à livre circulação de pessoas no Mercosul. É difícil verificar se contraria essas normativas porque, ao que parece, as ações de restrição de entrada são baseadas em suposta documentação irregular (e a documentação é exigida no âmbito das regras do Mercosul). Contudo, resta a interpretação de que o recrudescimento de normas e exigências não parece ser um passo rumo à facilitação da integração”, afirma.

O que é o ‘falso turismo’ apontado pelo governo Milei?

O pesquisador do Laboratório de Estudos Políticos de Defesa e Segurança Pública (LEPDESP), formado pela UERJ e pela Escola Superior de Guerra (ESG), Lier Pires Ferreira, explica à Sputnik Brasil que os “falsos turistas” alegados pelo governo Milei seriam pessoas que entraram no país com propósitos diversos, como estudar ou trabalhar. De acordo com o PhD em direito, os casos de brasileiros que procuram a Argentina para estudar, diante das regras restritivas para o ingresso nas universidades públicas do país, são clássicos, principalmente cursos de medicina.

“Considerando as facilidades relativas para o ingresso nas ótimas universidades públicas argentinas, com destaque para a Universidade de Buenos Aires (UBA), muitos brasileiros entram como turista e buscam, posteriormente, adquirir o status de estudante, aproveitando-se das oportunidades até aqui facultadas pela Direção Nacional de Migrações (DNM), segundo as quais o visto de estudante pode ser obtido dentro de 30 dias da entrada regular no país, ainda que na condição de turista”, argumenta.

Na última semana, uma reportagem do portal UOL chegou a relatar um grupo de brasileiros que, apesar de garantirem que estavam com a documentação exigida, foram expulsos da Argentina após serem classificados como “falsos turistas”: metade afirmou que iria estudar no país e a outra que iria fazer turismo. “Me colocaram em um avião e não me deixaram saber o número do voo. Fizeram eu me sentir uma bandida. Foi muita humilhação. Era meu sonho. Todas as minhas economias foram para estudar na Argentina”, contou uma jovem à publicação.

“A tese do falso turista, embora dotada de certa legalidade, é controversa, tanto no que conflita com outras normas existentes, quanto no que tange ao espírito da lei. Além disso, ela adentra na seara do Ministério da Segurança, comandada pela ultradireitista Patricia Bullrich, que aponta para a restrição de imigrantes latino-americanos na Argentina, sejam legais ou não”, diz Lier.

Impacto negativo sobre o turismo popular

Para o pesquisador Lier Pires, a medida pode causar impacto negativo sobre o turismo, “em especial aquele de caráter mais popular, no qual o turista possui menos recursos e menos planejamento”. Já com relação aos “mais endinheirados”, Pires acredita que não terão “grandes prejuízos”, apesar da falta de dados sobre a nova política.

“De todo modo, esse raciocínio se aplica tanto aos argentinos que vêm para o Brasil quanto aos brasileiros que vão para a Argentina. O rico é sempre menos afetado por essas medidas, e mais distanciado do povo em geral, já que transita por circuitos turísticos limitados, com muitos serviços agregados, não costuma ser afetado ou mesmo se importar com medidas impopulares impostas sobretudo contra os mais pobres”, resume.

Por fim, o analista acredita que a restrição aos migrantes busca reduzir gastos sociais do governo, inclusive de pessoas que procuram o país “para se beneficiar das estruturas argentinas de educação e saúde” e até evitar a presença de turistas com menor poder aquisitivo.

“Do ponto de vista político, ela comunica com uma Argentina voltada para si, menos latinoamericanizada, e que tende a enxergar seus vizinhos mais como problema do que como solução. Parece cada vez mais claro, como visto na recente visita de Milei aos EUA, que o novo presidente da Argentina vai apostar grande parte de suas fichas em uma relação privilegiada com os ianques, em particular se Trump for reeleito. No passado, como no governo Menem, essa estratégia não rendeu os frutos esperados”, finaliza.

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