Paolo Demuru afirma que as narrativas extremistas seduzem ante a dureza da vida na realidade capitalista
Por Andrea DiP, Clarissa Levy, Claudia Jardim, Ricardo Terto, Stela Diogo, compartilhado de A Pública
As eleições nos Estados Unidos trouxeram Donald Trump de volta à presidência. Em janeiro de 2025, o republicano toma posse de seu segundo mandato após vencer com folga a democrata Kamala Harris, em um resultado que contrariou as previsões de uma disputa acirrada. O retorno de Trump acendeu um alerta sobre o fortalecimento da extrema direita e a estratégia desses movimentos para atrair o público.
Para falar sobre o fenômeno, o Pauta Pública desta semana recebe Paolo Demuru, pesquisador e doutor em semiótica pela Universidade de Bologna, Itália, e pela Universidade de São Paulo (USP). Ele é autor do livro Políticas do encanto: extrema direita e fantasias de conspiração, publicado pela editora Elefante.
Demuru analisa o ressurgimento de líderes populistas de extrema direita como Trump e observa que, além dos EUA, há uma tendência global desses movimentos, refletida em figuras como Matteo Salvini (Itália), Marine Le Pen (França) e Pablo Marçal (Brasil). Segundo ele, esse fenômeno é um reflexo do desencanto generalizado com o sistema neoliberal, que aprofunda desigualdades e cria um ambiente propício para o crescimento de discursos que desafiam o status quo.
“São figuras capazes de influenciar muitas pessoas que não seriam ou não se consideraram elas mesmas extremistas”, explica Demuru. Segundo ele, esses líderes conseguem unir discursos muito diferentes entre si, como o religioso, espiritual e até mesmo narrativas de bem-estar e cuidado. “As fantasias de conspiração são construídas a partir de pequenos núcleos de verdade que tornam evidente essa dureza do mundo capitalista e neoliberal em que vivemos, um mundo extremamente desigual, onde o lucro de poucos é privilegiado em detrimento do bem-estar da maioria.”
Leia os principais pontos e ouça o podcast completo abaixo.
Paolo, no seu livro, você diz que “o populismo conspiratório de extrema direita seduz menos pelos seus argumentos e mais pelo fascínio que provoca. Cativa por ser um discurso maravilhoso, extasiante, extraordinário, uma verdadeira mágica política. Você pode falar um pouco sobre isso? Por que as narrativas conspiracionistas, principalmente propagadas por figuras de extrema direita, têm prosperado tanto nos últimos anos?
O que eu quis destacar nesse livro foi justamente a capacidade do discurso conspiratório de extrema direita de provocar encantamento. Isso está relacionado ao momento político que estamos vivendo, que é muito duro.
Como eu sempre digo, as fantasias de conspiração são construídas a partir de pequenos núcleos de verdade que tornam evidente essa dureza do mundo capitalista e neoliberal em que vivemos, um mundo extremamente desigual, onde o lucro de poucos é privilegiado em detrimento do bem-estar da maioria.
[Esses núcleos de “verdade”] surgem, por exemplo, com o fato de que há uma elite econômica de grandes bilionários que realmente detém poder. Isso é um núcleo de verdade. Uma teoria, como a do globalismo ou da nova ordem mundial, dos Illuminati, fundamenta-se nesse núcleo. Depois, a partir dele, cria-se toda uma narrativa absurda, muitas vezes completamente irreal. Mas insistir nessa dicotomia, de que existe um grupo de poderosos, é eficaz porque parte de algo muito concreto e visível.
A partir daí, surgem explicações fantasiosas que, além de fornecerem uma resposta simples para uma questão complexa, oferecem algo que o próprio sistema capitalista neoliberal frequentemente nos priva, especialmente aqueles em situações extremamente precárias de pobreza: a maravilha. Nós também precisamos de contato, de encanto, de sonho. Em uma vida tão dura, onde muitos são obrigados a viver em condições quase de escravidão, essa narrativa se torna extremamente atraente.
Oferecer essas histórias dá respostas e, ao mesmo tempo, encanta – e encanta por várias razões. Posso explicar isso brevemente: é emancipador, de certo ponto de vista, tanto para o indivíduo quanto para o coletivo. Digo isso porque o encantamento ocorre quando a pessoa descobre um “grande segredo” por trás da realidade concreta do cotidiano. Há essa grande seita de poderosos favorecendo as elites globais, permitindo a migração através de fronteiras, ameaçando minha nação e identidade nacional. Esse tipo de construção de inimigos tem especificidades em cada país. Além do deslumbre individual, compartilhar esse segredo com outros cria pertencimento.
A narrativa conspiracionista funciona, como digo no livro, como uma grande caça ao tesouro.
Você acha que essas narrativas e como elas estão sendo contadas, sobretudo nas redes sociais, reformulam a forma de fazer política e a própria democracia? Pensando nas últimas eleições municipais, com o Pablo Marçal, mas agora com o Trump, também com o Bolsonaro. Como é que você vê isso?
A gente viu, nos últimos anos, uma mistura entre a linguagem das redes sociais e o discurso político como um todo. É como se, de certa forma, a linguagem das redes sociais tivesse moldado o discurso político. Então, práticas discursivas, narrativas, que eram próprias das redes, como, por exemplo, a indireta, o grito, tornaram-se marcas do discurso político como um todo, até porque a grande plataforma onde o discurso político se dá, acontece, são as redes. Isso também aparece em comícios, como o “cercadinho” ao vivo do Bolsonaro.
Nos debates televisivos de Marçal, que foram feitos, claramente, para produzir cortes, são feitos na base dessas estratagemas. Ou, por exemplo, a vagueza mesmo semântica [isto é, de sentido], implícita na indireta que você faz quando você joga um comentário ou um post nas redes sem indicar exatamente a quem se refere e gerando, portanto, essa ambiguidade. Isso são estratégias discursivas que moldaram o campo político como um todo.
Muito se fala sobre a estrutura algorítmica. A gente está quase cansado de saber quão grave que é a questão, digamos, da arquitetura das redes. Mas, do meu ponto de vista, é necessário refletir sobre essas práticas discursivas que muitas vezes têm sido um pouco negligenciadas, principalmente na grande mídia.
Qual é o papel de pessoas como Steve Bannon nessa “mágica política”? Lembrando que Bannon veio do cinema, assim como Goebbels na época de Hitler, que também usou o cinema como uma nova mídia, tal como Bannon faz hoje com as redes sociais. Qual é o papel dessas pessoas e do campo estético em manipular a narrativa, a imagem, distorcer a realidade, insuflar raiva e revolta na política de hoje?
Bannon teve um papel fundamental em construir o que ele mesmo definiu como uma internacional populista de extrema direita, apesar de não usar exatamente esse termo. Esse movimento envolvia líderes como Bolsonaro, Trump, Matteo Salvini, na Itália, Le Pen [França], Orbán [Hungria], entre outros. Como você mencionou, ele veio do cinema e da propaganda. Bannon desenvolveu uma espécie de cartilha que influenciou também figuras como Olavo de Carvalho e a família Bolsonaro.
Ele construiu um edifício discursivo, amplificado pela própria estrutura algorítmica das plataformas, especialmente no X (Twitter), que Elon Musk levou a outro patamar. Ele promoveu narrativas eficazes para criar um pertencimento à direita, construindo paixões como ódio e raiva direcionadas a grupos específicos, como imigrantes na Europa, afro-americanos, LGBTQIA+, entre outros.
Um livro que ilustra bem a lógica e as táticas de Bannon é Os engenheiros do caos, de Giuliano da Empoli, que descreve os fundamentos organizacionais desse projeto. Outro exemplo relevante é o livro Doppelgänger, de Naomi Klein, que detalha como Bannon se tornou uma figura influente para muitas pessoas que não se considerariam extremistas.
Algo crucial que Bannon fez foi unir universos discursivos diferentes, construindo convergências entre o discurso extremista, o religioso e o espiritual (não necessariamente cristão, mas com práticas da New Age), e o campo do bem-estar e cura do corpo. Durante a pandemia, ele chegou a vender vitaminas e suplementos, promovendo teorias conspiratórias absurdas.
Essa conexão é muito perigosa, pois constrói uma ponte entre campos que oferecem respostas individualistas, onde nunca se pensa no coletivo. “Eu cuido de mim”, ou seja, o bem-estar como a cura do próprio indivíduo. Essa junção entre cura do corpo, espiritualidade em sentido amplo e política baseada no ódio é poderosa. Precisamos ter cuidado com isso.