Aeronáutica pagou R$ 363,3 mil a mulher que forjou casamento com o próprio sogro; pensão foi cancelada após denúncia da cunhada
Por Melissa DuarteTácio Lorran
As Forças Armadas têm realizado pagamentos de pensões militares a noras que forjaram casamentos com os próprios sogros, o que é proibido por lei. As mulheres oficializam a união com o sogro militar, geralmente em idades avançadas e enfermos, para receber o benefício previdenciário como viúvas a partir da morte do familiar – mas tudo não passa de uma fraude.
Foi assim com Maria da Glória Siqueira de Carvalho, que se casou em abril de 2011 com o pai do companheiro dela. O sogro, um tenente da reserva remunerada da Aeronáutica, tinha 85 anos e era considerado incapaz por ter sido diagnosticado com esquizofrenia latente.
Ela, por sua vez, tinha 38 anos – ou seja, era quase quatro décadas mais nova – e morava com o filho do militar, Richard Henry de Carvalho, com quem teve dois filhos e mantinha um relacionamento amoroso (de verdade).
Não muito tarde, em dezembro de 2015, o tenente da Aeronáutica faleceu. A nora, então, pediu à Força a pensão militar como viúva de ex-combatente e apresentou a certidão de casamento ideologicamente falsa. Ganhou R$ 363,3 mil até agosto de 2020, quando a fraude foi descoberta após ser denunciada pela filha do militar, ou seja, cunhada de Maria da Glória.
“Maria da Glória Siqueira de Carvalho e Richard Henry de Carvalho sempre conviveram como marido e mulher, sem nenhuma interrupção em seu relacionamento, constituíram família, residiram no mesmo endereço, e a primeira denunciada jamais morou com o sogro, prestando-lhe assistência na condição de nora”, relatou o Ministério Público Militar (MPM), em documento obtido pela coluna.
“O casamento foi orquestrado no objetivo precípuo de ludibriar a administração militar e de obter vantagem indevida”, assinalou a ministra do Superior Tribunal Militar (STM) Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha.
O casal foi condenado a três anos de reclusão, em regime inicialmente aberto.
Esta reportagem faz parte da série Pensões Camufladas, publicada pela coluna ao longo desta e da próxima semana, para revelar histórias exclusivas sobre esquemas de fraudes em pensões militares. Exército, Aeronáutica e Marinha desperdiçam milhões de reais em recursos públicos para custear a folha de pagamento de pessoas que não deveriam ganhar sequer um centavo das Forças Armadas. A coluna analisou dezenas de processos no STM, no Tribunal de Contas da União (TCU) e em tribunais federais ao longo de um mês.
Forças Armadas pagaram R$ 7 milhões por casamentos fakes de noras e sogros
Casamentos entre noras e sogros são proibidos por lei. Sogros são considerados parentes “afins”, ou seja, familiares que surgem a partir do casamento ou da união estável.
A ideia de parentesco permanece, mesmo com eventual separação, mantendo-se, portanto, a proibição perante o Código Civil.
Levantamento realizado pela coluna, no entanto, identificou que, no meio militar, a fraude é mais comum do que parece. Entre 2019 e 2024, ao menos sete casos de pensões militares pagas a partir de casamentos forjados entre noras e sogros foram julgados pelo STM e pelo TCU. O prejuízo ultrapassa R$ 7 milhões aos cofres públicos.
Mulher se casou com sogro após morte do marido
Josélme Floriano Lopes se casou em outubro de 2002 com o sogro, que era major da reserva do Exército e, à época, estava com câncer de bexiga e problemas na próstata. O militar do Rio Grande do Sul era pai do ex-marido de Josélme, que havia morrido pouco tempo antes.
O major morreu um ano depois do casamento forjado, em outubro de 2003, de parada cardiorrespiratória e câncer de bexiga. No mês seguinte, a nora (leia-se falsa viúva) pediu a pensão à Seção de Inativos e Pensionistas da 3ª Região Militar. Até 2018, quando foi denunciada, Josélme recebeu R$ 5,2 milhões (valor atualizado em 2021). Foram 15 anos como pensionista.
O Superior Tribunal Militar (STM) a condenou a 3 anos e 3 meses de reclusão por estelionato, em regime inicialmente aberto, em agosto deste ano. A mulher obteve o direito de recorrer em liberdade.
pensões
Apesar da morte do ex-marido, esse tipo de casamento também é ilegal. Judicialmente, não existe ex-sogra e ex-sogro: o documento define que esse tipo de parentesco por afinidade não termina após a separação ou morte.
Mulher casou com sogro 49 anos mais velho para ganhar pensão
Ao longo de oito anos, Arlete Torres de Andrade Lima embolsou R$ 919,9 mil de pensão militar vitalícia (valores atualizados) do Exército em Pernambuco. O motivo: o “casamento fraudulento” com o sogro, de 89 anos e com “débeis condições físicas e mentais”, em setembro de 2011. A morte dele ocorreu em dezembro de 2012.
Segundo a denúncia, na ocasião do matrimônio, a nora tinha 49 anos a menos que o sogro e, na verdade, mantinha união estável com o filho dele, Josualdo Fabio de Andrade.
A fraude durou de junho de 2013 a outubro de 2021 e só veio à tona em abril daquele ano, quando uma das netas do ex-combatente informou a situação ao Ministério Público Militar (MPM). O STM, por sua vez, manteve a decisão que condenou ambos a 3 anos e 6 meses de reclusão, em regime inicialmente aberto, por estelionato em agosto.
Pensões… e pensões militares
Um caso parecido ocorreu com Esther Regina Andrade Pavesi, que vivia com Paulo Arão Mota dos Santos há 25 anos, mas firmou união estável com o pai dele, também em Pernambuco. O homem morreu em março de 2021 e a falsa viúva solicitou a pensão logo em seguida.
O “relacionamento fake” com o suboficial reformado da Aeronáutica resultou em R$ 10 mil de pensão por mês. Ao todo, a soma chega a R$ 260,3 mil embolsados desde a morte dele até novembro de 2022.
A pena, contudo, foi mais branda que nos casos anteriores. O STM determinou que o casal cumprisse 2 anos de reclusão, em regime inicialmente aberto, por estelionato em junho.
Outro casal simulou um casamento entre a nora, Tânia Maria de Freitas Carvalho Vieira da Silva, e um coronel reformado do Exército no Rio Grande do Sul. À época, o homem tinha 85 anos e sofria de um “debilitado estado de saúde”.
Após o caso vir à tona, o TCU sentenciou a falsa viúva e o filho, José Antonio Soares Vieira da Silva, a devolver os valores recebidos da pensão em setembro de 2023. Foram R$ 422,9 mil (em valores históricos), mais multa proporcional.
Procurada pela coluna, Tânia Maria de Freitas Carvalho Vieira disse, num primeiro momento, que contaria a própria história, mas mudou de ideia. “Em respeito a toda a situação do meu ex-marido, que era coronel, eu não vou responder. Vou respeitar, porque envolve outras pessoas”, declarou a mulher. José Antonio Soares Vieira da Silva, por sua vez, afirmou que não queria se pronunciar, mas preservar a família.
Disputa entre nora e cuidadora
Um casamento forjado entre nora e sogro veio à tona quando a cuidadora dele requereu pensão militar à Aeronáutica, dizendo que viveu mais de 6 anos em união estável com o tenente reformado. A mulher não conseguiu provar o relacionamento, mas o pedido foi o suficiente para iniciar a investigação contra Rosana da Silva Viana Mendanha.
A falsa viúva, que supostamente vivia com o filho dele, Ricardo Barreto Mendanha, acabou sentenciada a 2 anos de reclusão, com direito a recorrer em liberdade, pelo STM em junho de 2020. O valor pago de pensão militar não consta no processo.
O que dizem as Forças Armadas
Procurado, o Exército explicou que a auditoria sobre as pensões militares é realizada tanto de forma física, com a adoção de medidas como a prova de vida e a atualização de documentos, como na forma contábil. Acrescentou, ainda, que todas as pensões são auditadas no memento da concessão por órgãos internos e externos, como o próprio TCU.
A Força ressaltou, porém, que a detecção de fraudes envolvendo casamentos e uniões estáveis forjadas depende quase sempre de denúncia de terceiros ou decorre de procedimentos judiciais. O Exército informou à coluna, em nota, que não se manifesta sobre casos específicos.
“No caso do casamento, trata-se de certidão com fé pública, a qual necessita ser invalidada na justiça. Por outro lado, quando há uma diferença grande de idades entre a requerente da pensão e o instituidor, ou quando os documentos apresentados apresentam indícios de irregularidades, são realizadas apurações sumárias a partir da oitiva de testemunhas, solicitação de novos documentos no sentido de averiguar e confirmar a situação, antes do deferimento do pedido”, destacou.
Demandada há três semanas, a Aeronáutica não se manifestou.
Todos as pessoas que foram citadas nesta reportagem também foram procuradas. Arlete Torres de Andrade Lima, Esther Regina Andrade Pavesi, Maria da Glória Carvalho Siqueira, Paulo Arão Mota dos Santos, Ricardo Barreto Mendanha e Richard Henry de Carvalho não responderam.