Fake News e Alucinação: um dia no grupo de Zap Bolsonarista

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Compartilhado do site Visão Crítica – 

O site VisãoCrítica.com recebeu com exclusividade um relato da estudante de Jornalismo Silvana Silva, que passou um dia infiltrada dentro de um grupo de WhatsApp bolsonarista.

AInternet é um instrumento, e, como tal, é utilizada conforme a vontade de seu manuseador, principalmente quando se trata de debate público. Se se pode considerá-la um universo de busca de informações, cada vez mais percebe-se que as mesmas ficam restritas dentro de perfis segmentados.




Pude constatar isso na prática na manhã do dia 23 de março, quando abri o Twitter e vi a notícia da MP autorizada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), prevendo a suspensão de quatro meses de salário do trabalhador durante a pandemia de coronavírus. Fiquei imediatamente assustada, junto com dezenas de milhares de usuários.

O Twitter é uma rede social perfeita para separar grupos e polarizar o debate público. Enquanto lia as reações e mobilizações para derrubar a MP, reparei que só haviam pessoas concordando comigo. Mas onde estavam os apoiadores do governo?

Tinha certeza que havia pessoas apoiando a decisão, afinal, os apoiadores do governo Bolsonaro costumam aceitar qualquer coisa, com o mínimo de crítica.

Depois de pesquisar e cavucar sem sucesso, resolvi criar uma nova conta, mas, desta vez, passei a seguir o presidente, seus filhos e toda equipe de ministros. Logo apareceram sugestões de perfis de apoiadores para seguir. Fui dando vários follows, as bandeirinhas do Brasil nos nomes dos usuários facilitavam a identificação.

Finalmente encontrei os tweets apoiando a MP, criticando o comunismo, o PT, O Lula. Tive a sensação de estar em uma parte da deep web, uma que nunca tinha acessado antes. Agora tenho duas conta no Twitter, foi a maneria que encontrei de burlar o algoritmo de seleção de conteúdo para poder olhar os dois lados do muro.

Dentro desta nova bolha, encontrei um link de WhatsApp, convidando pessoas “de bem” e “de família”, com interesse em mudar o país. Resolvi entrar no chat, conto um pouco do que pude observar.

Um dia em um grupo de WhatsApp Bolsonarista

Tudo se passou durante o dia 29/03, o tema principal do dia era a Pandemia de Coronavírus/COVID-19, conjuntamente com as diversas ações do governo.


Caos e Frenesi

Às 6:22 da manhã chega uma das primeiras mensagens do dia. 9 vídeos curtos enviados via encaminhamento acompanhados da mensagem: “França o caos está reinando após a quarentena! A mídia esquerdista amiga de Macrom não divulga. As imagens falam tudo !”

Captura de tela

Ao verificar os vídeos, o primeiro é de um padre enfurecido por ter sua missa com cinco fiéis interrompida por agentes de saúde, que fiscalizavam a Quarentena. Os vídeos seguintes mostram brigas em supermercados aparentemente franceses, porém um deles chamou muita atenção: pessoas brigando por Nutella.

No meio dos vídeos, um outro, com um grupo bolsonarista expulsando jornalistas de uma das afiliadas da Rede Globo.

Essa primeira mensagem é um pequeno presságio do tom de descontextualização, confusão, imprecisão e falta de fontes, que predomina no grupo.

Após a exposição da “verdade que está acontecendo na França”, não surge nenhum comentário, talvez ainda esteja muito cedo… E não demora muito para chegar outra mensagem alarmante e preocupante:

Um áudio mais uma vez encaminhado, relatando que é preciso aumentar o apoio ao presidente Bolsonaro, pois o Partido Comunista Chinês entrou no Brasil, está cooptando governadores e financiando a candidatura do ex governador do Ceará, Ciro Gomes, e que isso faz parte de um plano de usar o Coronavírus para instaurar pânico, quebrar o país e colocar a culpa no atual chefe da república, ouça:

Áudio encaminhado
Captura de tela

Esse tipo de prática é muito comum no grupo. Por diversas vezes, ao longo do dia, áudios encaminhados alertam sobre algo que está acontecendo na surdina e por isso é preciso aumentar o apoio ao presidente, sempre sem citar fontes e com uma narrativa, no mínimo, alucinante.

Diversas pesquisas e estudos mostraram que o WhatsApp é o principal meio de informação do Brasileiro. É exatamente assim que uma informação falsa e imprecisa é compartilhada para milhares de pessoas com uma rapidez tremenda.

Um homem pode imaginar coisas que são falsas, mas ele pode somente compreender coisas que são verdadeiras, pois se as coisas forem falsas, a noção delas não é compreensível.

ISAAC NEWTON

Finalmente um bom dia

Captura de tela

Um texto encaminhado, seguido por um “bom dia gente”, entrega um link alertando que o Coronavírus/COVID-19 é uma estratégia Chinesa para lucrar.

Em seguida, quase que ao mesmo tempo, chega outra mensagem alertando que os Chineses desenvolveram um vírus capaz de causar pneumonia aguda, sem fontes e muito menos o vídeo citado.

Captura de tela

Até aqui, não é possível encontrar nenhuma relação ou notícia sobre os relatos nas plataformas virtuais das imprensas convencionais. É uma informação disponível exclusivamente no “zap”. Enquanto o grupo fala de caos, mentiras, complôs, estratégias maléficas de dominação mundial, na imprensa, inclusive independente, nada se vê a respeito.

Alguém comenta o vídeo do padre enfurecido, dizendo que o Brasileiro é frouxo e tem vergonha de ter nascido neste país. O áudio alertando do Partido Comunista Chinês chega novamente, desta vez enviado por outra pessoa. Isso mostra o quanto a mensagem está passeando por outros grupos similares.

Não é nem 9 horas da manhã e chega um texto gigantesco alertando sobre a terceira guerra mundial, explicando que uma guerra biológica é mais barata e rápida que uma Guerra Normal.

livros úteis que podem explicar o fenômeno alucinatório

  

Ferramenta lucrativa

Uma matéria recente do Jornal The Intercept Brasil mostrou que Youtubers de direita estão ganhando dinheiro espalhando mentiras sobre o Coronavírus. Muitos desses vídeos circulam pela grande rede de grupos de WhatsApp bolsonaristas agariando milhares de views.

Às 9,43 da manhã é encaminhado um vídeo com um título preocupante:

“URGENTE Brasil: conheceremos a verdade ou ficaremos sem respostas”, de uma jornalista pedindo veemente que o vídeo seja visto até o fim (estratégia para otimizar a monetização).

No vídeo, um áudio alegando ser do chefe da rotina do Hospital Municipal Ronaldo Gazzola, fornecendo informações a respeito do vírus COVID-19, de pacientes internados no hospital e, por fim, orientando que por motivos econômicos, as pessoas abandonem a quarentena.

Captura de tela

Mais tarde o hospital enviou uma nota esclarecendo que “A direção do Hospital Municipal Ronaldo Gazolla desconhece a autoria e esclarece que não existe na estrutura da unidade o cargo de ‘chefe de rotina’, como a pessoa se apresenta”

O vídeo, com diversas informações falsas até a data de hoje somou 386.976 visualizações.

Ao longo do dia chegam vários vídeos com discurso de ódio contra a Rede Globo, outros convocando para atos inconstitucionais, mensagens com informações falsas, ou de apoio ao presidente, o repertório é muito limitado e repetitivo.

Algumas pessoas ou grupos aproveitam esse tipo de público “recebo-acredito-clico-compartilho” para enviar links fraudulentos com tentativa de roubar dados do usuário (phishing), ou fazer com que milhares cliquem em um link para gerar anúncios e ganhar receita com Adsense. Um exemplo disso foi link informando que a Ambev estava distribuindo Álcool em gel de graça, uma notícia falsa verificada por vários veículos de imprensa.

Mobilização de grupo

Não existe diálogos, no máximo comentários de respostas a algum conteúdo, que quase sempre ficam sem réplicas. O grupo parece funcionar como um instrumento de mobilização e divulgação da agenda bolsonarista. “Compartilhe para 20 pessoas”, “divulgue ao máximo” “liga na Record ta passando tudo sobre esse vírus e a cura”, “passe para toda a sua família e amigos”, são frases repetidas e encaminhadas várias e várias vezes ao longo do dia.

Campanhas são mobilizadas através de mensagens.

Sentimentos são compartilhados.

Apelos

Captura de tela

Alucinação Coletiva

Na mensagem abaixo, o autor utiliza vários signos do imaginário bolsonarista para criar uma fantasia. Nela, um médico (figura de prestígio) diz em uma entrevista à CNN (emissora que está abrindo espaço para bolsonaristas expor opiniões) que o vírus COVID-19 não dissemina bem no calor (informação falsa). A apresentadora, que é uma ex-Globo (envolvida com a emissora odiada, logo, do mal), interrompe a entrevista e toda verdade e complô vem à tona através de um áudio vazado.

Captura de tela

Esse ocorrido é uma ficção, uma narrativa para despertar a imaginação e promover a ideia de que a mídia está errada em alertar sobre o perigo do vírus e ações de prevenção. A mensagem não contém o vídeo, nem o áudio do acontecimento, é preciso usar a imaginação e fé para acreditar.


A rotina segue a mesma todos os dias no grupo, o discurso e campanhas vão mudando de acordo com as manifestações e solicitações do presidente e de seus ministros.

É um mecanismo de disseminação em massa de informações falsas. Alguns integrantes são os principais provedores. Um deles, com um número de telefone internacional, enviou 33 mensagens, somente contendo Fake News.

Para finalizar, talvez o que há de mais surpreendente: um alerta geral informando uma nova “tática comunista” na internet, que envolve “Questionar decisões da equipe do governo visando debates e conflitos“. Há alguma maneira de ensinar/aprender qualquer coisa ou sequer falarmos em democracia se não pudermos debater decisões?

Fazer essa nova conta no Twitter e participar deste grupo está sendo interessante para perceber o quanto a realidade pode ser distorcida para realizar os desejos íntimos de cada um. Neste novo mundo de Pós-verdade – talvez não tão novo, talvez o mundo que sempre foi – é importante observar estas manobras humanas para que possamos manter uma sanidade emocional. Muitas vezes o diálogo não se dá e não há nada que possamos fazer a curto prazo. É um processo longo e vagaroso, que demandará muito de nossa paciência. E, para, isto, é necessário enxergar o mundo fora de nossa bolha, para que possamos desenvolver estratégias de tolerância e auto-preservação mental.

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