Por Lucas Ferraz, compartilhado de Agência Pública –
Tradicionalistas, especialmente do clero dos EUA, utilizam os mesmos métodos da direita alt-right para atacar as reformas do papa jesuíta e latino-americano
Após o mais recente escândalo financeiro no Vaticano, referente aos investimentos milionários realizados pela Santa Sé em imóveis em Londres que estão sendo investigados por suspeita de corrupção, o papa Francisco nomeou, em novembro, um novo responsável para a secretaria da Economia, um dos cargos mais importantes na cúpula da Igreja.
O escolhido foi o padre jesuíta (mesma ordem religiosa do pontífice) Antonio Guerrero Alves, um espanhol que substitui o cardeal George Pell, que, nomeado por Francisco, já estava afastado do cargo por enfrentar na Justiça da Austrália um processo por abuso sexual de menores.
Conhecido entre os pares como um padre simples e obediente, Guerrero (o primeiro a assumir o cargo sem ter um título de arcebispo) será um homem de confiança do papa, conforme se leu na maior parte da imprensa católica. O objetivo é tentar sanar uma das áreas mais sensíveis, origem de inúmeros escândalos envolvendo o dinheiro da Igreja.
Para uma parte minoritária da mídia especializada, a indicação feita por Jorge Mario Bergoglio diz muito mais. O site norte-americano LifeSiteNews, um dos estandartes da ala conservadora católica, escreveu no início de dezembro que a escolha de Guerrero era mais um movimento dos jesuítas num possível golpe em andamento dentro do Vaticano – que seria promovido pelos aliados de Bergoglio.
Em tom conspiratório e citando o que chamou de passado tirano da ordem religiosa, o site não apresentou prova ou documento, fiando-se unicamente nos jesuítas que ascenderam a cargos no pontificado do argentino (nunca os membros da ordem ocuparam tantos cargos de comando na estrutura da Santa Sé). O texto, assinado pela sua correspondente em Roma, é exemplar da postura agressiva da mídia opositora, afinada com a ala tradicionalista, que vem aumentando o tom nos últimos anos (recorrendo a técnicas da direita populista) e passou claramente a incomodar Francisco e seu círculo direto.
Essa oposição existe desde a escolha de Bergoglio como papa, em março de 2013, e é majoritariamente ligada ao clero norte-americano, mas há adeptos na Itália, em países do Leste Europeu e na América Latina.
“Antes não tínhamos essa situação de liberdade, ela existe também porque o papa Francisco a criou. Temos que nos acostumar com essa ideia, pois abriu um capítulo novo na história da Igreja”, afirmou à Agência Pública Massimo Faggioli, professor de teologia histórica da Universidade Villanova, nos Estados Unidos.
Frequente colaborador de revistas católicas liberais, Faggioli lembra que a mídia especializada conservadora começou uma campanha contra o Santo Padre três ou quatro meses depois de sua posse. Os motivos, ressalta, eram pueris: o fato de o papa ser jesuíta e latino-americano, dois ineditismos em mais de 2 mil anos de história da instituição. O professor diz que a crítica aberta de cardeais e bispos começou após o movimento da mídia.
“Todos os papas desde o Concílio Vaticano II vêm sendo atacados pelos tradicionalistas, mas a ferocidade e intensidade da oposição contra Francisco é uma das características mais notáveis do seu pontificado”, afirma o jornalista e escritor inglês Austen Ivereigh.
Autor de dois livros sobre Francisco e seu papado (uma biografia publicada em 2015 e outro, que saiu há menos de dois meses, sobre a agenda reformista e as dificuldades encontradas pelo argentino na condução da Igreja), Ivereigh é alvo frequente dos grupos e jornalistas tradicionalistas por ser considerado simpático ao argentino.
“O modus operandi é muito parecido com a mídia alt-right, como Breitbart [site de notícias de extrema direita dos EUA], para alimentar a indignação, retratando implacavelmente quase tudo o que o papa faz como rendição ao liberalismo e à modernidade. O objetivo é escandalizar. Tudo é lido através do mesmo filtro, e os princípios tradicionais do jornalismo, da apuração, não se aplicam. A única coisa que importa é fornecer uma narrativa para alimentar o medo e o preconceito.”
O medo e o preconceito estiveram presentes na cobertura do Sínodo da Amazônia, que, encerrado no final de outubro, entre outras considerações, propôs a ordenação de homens casados como sacerdotes nos lugares mais remotos da floresta – a decisão final caberá ao papa, mas a proposta acendeu inúmeras polêmicas entre os tradicionalistas, que consideraram a medida uma ameaça à existência do celibato.
Um dos pontos questionados pela mídia conservadora foi a proposta – repetida por Bergoglio várias vezes durante o evento – de dar um “rosto amazônico à Igreja”, abrindo-a à cultura e aos costumes dos índios. Também causou repulsa nesses grupos o uso de imagens indígenas durante o evento, o que gerou acusações de paganismo. Pequenas estátuas de madeiras que representavam uma indígena nua e grávida passaram a ser atacadas e chamadas pelos tradicionalistas de Pachamama (que significa Mãe Terra, uma figura indígena andina, mas os objetos que estavam em Roma foram produzidos por um artista de Manaus).
O tom preconceituoso de alguns jornalistas com os indígenas (menções a infanticídios e outras coisas do gênero) gerou embates abertos entre as alas conservadora e progressista durante os briefings diários realizados pela Sala de Imprensa do Vaticano. Um dos repórteres, o inglês Christopher Lamb, correspondente em Roma da revista semanal inglesa The Tablet, especializada no mundo católico, fez um pedido público de desculpa aos índios amazônicos pelos “comentários racistas e humilhantes por parte da mídia católica”.
As estátuas foram usadas numa cerimônia nos jardins do Vaticano, na presença do papa, e depois expostas numa igreja ao lado da basílica de São Pedro, de onde elas foram roubadas e jogadas no rio Tibre, que corta a capital italiana, por católicos tradicionalistas. A ação foi elogiada por veículos conservadores – um site italiano chegou a escrever que “justiça foi feita”. Algumas das estátuas foram recuperadas, e o Vaticano condenou a ação no seu site de notícias, classificando o gesto de “violento e intolerante”.
“Em nome da tradição e da doutrina foi jogada fora, com desprezo, uma efígie da maternidade e da sacralidade da vida.” O texto, assinado por Andrea Tornielli, diretor editorial do Dicastério (similar a ministério) da Comunicação da Santa Sé, criticou também “o ódio espalhado pelas redes sociais”.
Dias depois, um dos responsáveis pela ação se apresentou – também na rede: era o austríaco Alexander Tschugguel, um católico tradicionalista de 26 anos. Ele estava em Roma participando de eventos contra o sínodo e admitiu ter roubado as imagens porque elas eram pagãs e afrontavam os católicos. Tschugguel foi depois defendido pelos opositores de Francisco.
Após a confissão, o austríaco viajou para os Estados Unidos para participar de eventos realizados pela ala tradicionalista, como a TFP (Tradição, Família e Propriedade), o site LifeSiteNews e o acadêmico Taylor Marshall, um ex-protestante convertido ao catolicismo que bajula o presidente dos EUA, Donald Trump, na mesma medida em que ataca Francisco. No encontro com Tschugguel no mês passado, os dois apareceram no Texas segurando um rifle em protesto ao pedido de maior controle sobre armas por setores progressistas da Igreja americana.
Marshall é autor de um livro intitulado Infiltração: o plano de destruir a Igreja por dentro, em que cita teorias da conspiração entre comunistas, liberais e até a máfia para subverter a Igreja Católica por dentro. A obra foi publicada por uma editora que pertence à gigante americana EWTN, sigla de Eternal Word Television Network, a maior emissora católica do mundo e principal representante do conservadorismo cristão. Sua programação é retransmitida para mais de 6 mil afiliadas em 145 países e inclui jornais, rádios e sites.
Fundada no Alabama em 1981 por uma religiosa conhecida como Mãe Angélica, já falecida, a EWTN é considerada nos EUA a “Fox News” do mundo católico. Defensora de bandeiras pró-vida (contra o aborto e o feminismo, por exemplo), a rede apoia Trump desde a campanha presidencial de 2016.
Além de receber doações do clero norte-americano, a EWTN é a principal fonte de informação para mais de 60% de seus bispos, segundo pesquisa feita pelo episcopado local. A maior parte das doações recebidas pelo grupo vem de milionários e de grupos que apoiam pautas conservadoras, conforme mostrou neste ano uma série de reportagens do site National Catholic Reporter, publicação americana de viés progressista.
Geopolítica apocalíptica
Em 2017, a revista jesuíta La Civiltà Cattolica, editada pelo padre italiano Antonio Spadaro, considerado um confidente do papa Francisco, publicou um duro artigo – Spadaro era coautor – contra os católicos ultraconservadores dos EUA, acusando-os de uma aliança de “ódio” com Steve Bannon, ex-estrategista de Trump, apontado na publicação como o “defensor de uma geopolítica apocalíptica”. O papa, como já ficou claro na atuação de políticos próximos a Bannon (um ex-coroinha), como o presidente brasileiro Jair Bolsonaro e o italiano Matteo Salvini, é alvo dessa agenda.
Procurado, Spadaro não quis comentar o assunto. O artigo afirmava que os católicos radicais se baseavam numa interpretação literal da Bíblia que não os deixava “muito longe” dos jihadistas e que o objetivo era levar “influência religiosa para a esfera política”. Exemplos nos Estados Unidos não faltam: um desses sites, Church Militant, tem um braço de operação de base católica, intitulada “Resistance”, que se apresenta em luta contra as “heresias e abusos” que se infiltraram na igreja.
“Houve uma aliança informal. É um grupo misto, com diferenças nos detalhes, mas a mesma finalidade: são contrários a Francisco e tentam deslegitimá-lo”, afirma o professor Massimo Faggioli. “Nos Estados Unidos, essa crítica é fruto de uma Igreja doente, trata-se de uma expressão de ódio. Não é uma questão de liberdade de expressão.”
Na Itália, cuja relação umbilical com o Vaticano a tornou conhecidamente internamente como “o jardim da igreja”, também há uma profusão de sites, blogs e jornais especializados contrários ao papa, embora todos sejam modestos em comparação à EWTN. Há muitos apoiadores, como o jornal Avvenire, que, editado pela Conferência Episcopal Italiana (CEI), endossa abertamente a agenda do pontífice em temas como imigração e a defesa do meio ambiente.
“O Vaticano parece preocupado, pois essa força na internet provoca impacto na opinião pública”, afirma Roberto de Mattei, presidente da Fondazione Lepanto e protagonista do ultraconservadorismo italiano. Responsável pela agência de notícias Corrispondenza Romana, De Mattei reconhece o “óbvio” paralelo entre o mundo político e religioso.
O italiano Giuseppe Rusconi, jornalista vaticanista responsável pelo blog Rosso Porpora, é outro crítico da agenda de Bergoglio. Durante o sínodo, ele questionou a abertura da Igreja com os povos indígenas, já que algumas etnias ainda praticariam infanticídio em casos específicos.
“Não sou um crítico prejudicial. Há uma crítica hostil, que não considera Bergoglio um verdadeiro papa, sem condições para o cargo”, diz Rusconi. “Não é o meu caso. Eu o critico pela maneira de comunicar; ele é um que fala de qualquer assunto e muitas vezes se expõe demais. É um papa que reage por instinto.”
A divisão central no papado de Francisco, e que vaticanistas ressaltam como fundamental para entender a fratura atual na Igreja Católica, remonta ao Concílio Vaticano II, que, realizado na primeira metade da década de 1960, ainda hoje não foi completamente implementado.
Seu objetivo era modernizar a Igreja, aposentando velhos ritos e abrindo o catolicismo para o diálogo com outras religiões e para a inculturação, que pode ser definida como o esforço da Igreja para fazer penetrar sua mensagem em determinado meio, desde que conciliável com o Evangelho. Como se viu no Sínodo da Amazônia, há uma ala que vê com ressalvas e até rejeita propostas de inculturação (indígenas e outros povos) como as propostas desde o concílio. Os críticos de Bergoglio afirmam que ele dá muita importância a aspectos do Concílio Vaticano II que não ganharam a mesma atenção de antecessores como Bento XVI e João Paulo II.
O temor dos tradicionalistas, particularmente forte no clero dos Estados Unidos, é de a Igreja se abrir demasiado ao mundo (como deseja o papa) e perder sua essência. Por isso, muitos o acusam de desvirtuar a doutrina católica.
Para Agostino Giovagnoli, professor de história contemporânea da Universidade Católica do Sacro Cuore, o tradicionalismo católico demonstra uma “contradição clamorosa” por ser uma oposição frágil, sem substância. Para ele, os verdadeiros opositores do papa estão fora, e não dentro da Igreja. “Na Itália, hoje, o principal expoente contra Francisco é Matteo Salvini, não há nenhum cardeal ou padre nessa posição. Ocorre o mesmo nos Estados Unidos: o opositor é Trump.”
Direita populista na América Latina
A atuação da mídia conservadora, ou anticonciliar, como muitos se referem a ela em Roma, vem ganhando terreno também na América Latina – e parte dela recorre às mesmas táticas da direita populista.
O golpe na Bolívia contra Evo Morales, em novembro, evidenciou o ódio de católicos tradicionalistas (e evangélicos) contra a Pachamama, figura reconhecida na Constituição elaborada pelo primeiro indígena a presidir o país. Um dos líderes do golpe boliviano é o empresário Luis Fernando Camacho, expoente local do conservadorismo católico e com conexões latino-americanas. No Brasil, a presença do debate religioso – sobretudo nas redes sociais – ganhou projeção sob o governo Bolsonaro. Alguns dos protagonistas tiveram relevância com o bolsonarismo, como é o caso de Bernardo Küster, um youtuber que fez campanha contra o Sínodo da Amazônia. Ele esteve em Roma durante o evento, credenciado pelo Centro Dom Bosco, uma instituição do Rio de Janeiro que promove cursos na internet.
Além de municiar os repórteres norte-americanos com supostas informações sobre o “comunismo” no Brasil e o financiamento de organizações internacionais consideradas “esquerdistas”, ele se dedicou a questionar o sínodo, alegando ser parte de uma conspiração “socialista” promovida por defensores da Teologia da Libertação, como o cardeal brasileiro dom Claudio Hummes, bispo emérito de São Paulo e relator da assembleia.
Na internet, vídeos do Centro Dom Bosco exibem depoimentos como o de um ex-evangélico que conta ter se convertido ao catolicismo graças a Olavo de Carvalho, ideólogo do bolsonarismo, ou mesmo do padre Paulo Ricardo, vigário de Cuiabá (MT) e apoiador declarado do governo (no início do ano, o sacerdote gravou um vídeo defendendo o direito da população de adquirir armas).
O tom é o mesmo de instituições como a TFP (fundada no Brasil e apoiadora do golpe de 1964, que depois criou braços na Europa e nos Estados Unidos) e do instituto que leva o nome de seu fundador, Plínio Corrêa de Oliveira. A TFP tem organizado atos e palestras contra Francisco e atrai bolsonaristas.
A gigante norte-americana EWTN tem um pé no Brasil por meio da ACI Digital, versão brasileira do grupo peruano ACI Prensa, presente na Europa, na África e nos Estados Unidos e dirigida pelo jornalista peruano Alejandro Bermúdez.
Baseado em Denver, no Colorado, Bermúdez, um laico consagrado (que não tem as funções de padre, mas vive como tal, inclusive adotando o celibato) há 29 anos, é membro do Sodalício de Vida Cristã, grupo católico conservador que sofreu intervenção do Vaticano após uma série de denúncias de abusos sexuais e morais contra seus integrantes. Comentarista da EWTN, que incorporou a ACI Prensa em 2014, Bermúdez faz questão de se distanciar dos sites radicais (como LifeSiteNews e Church Militant) e de agitadores como Küster.
Ele condenou os abusos cometidos no Sodalício e disse que desde 2015 é o único membro da organização que trabalha na ACI Prensa, ressaltando que as duas não têm nenhuma relação. Para o peruano, o LifeSiteNews “não produz jornalismo”, além de ser “profundamente carente de profissionalismo”. Sobre as grandes doações recebidas pela EWTN, Bermúdez diz que não responde por ela, mas observa que a soma das doações é menor que as destinadas pelo megainvestidor George Soros e sua Open Society para instituições liberais ou progressistas.
“Falar em mídia que está contra o papa é algo simplista e incorreto. Os que são mais favoráveis ao papa provavelmente dizem que minha agência o ataca. Não é verdade. Somos uma agência católica, logo papista”, conta.
Bermúdez reconhece ser crítico de alguns burocratas da Santa Sé. “Essa dicotomia [no debate] é impulsionada por aqueles que dizem representar Francisco e inclusive por alguns dicastérios do Vaticano. É uma divisão que terá influência no futuro da Igreja.”
Como o Sodalício de Vida Cristã, outro grupo ultraconservador alvo de intervenção do Vaticano é o brasileiro Arautos do Evangelho, que, fundado há vinte anos pelo monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, chegou a reunir mais de 3 mil pessoas. Os arautos foram alvo recente de investigação – também jornalística – por abuso sexual e maus-tratos contra os seguidores. Vídeos divulgados mostram até um dos integrantes pregando num culto a morte de Bergoglio. O grupo conta com o apoio de veículos especializados como a Gaudium Press, que reivindica ser a primeira agência de notícias católicas do Brasil.
O jornalista Austen Ivereigh lembra que uma das praxes da mídia conservadora é “identificar linhas-duras na hierarquia da Igreja, mesmo que eles sejam obscuros”, e transformá-los em guardiões da doutrina e da tradição católica. Alguns dos religiosos que atuam abertamente contra o papa – caso dos cardeais Raymond Burke, norte-americano, e Walter Brandmüller, alemão, além do bispo Athanasius Schneider, do Cazaquistão, mas ordenado sacerdote no Brasil – são figuras constantes na programação das redes oposicionistas.
“Eles criam uma espécie de magistério paralelo para combater o do papa”, acrescenta Ivereigh. Segundo ele, esses grupos são barulhentos e bem financiados e não podem ser superestimados, já que o objetivo é “criar escândalos e confusão”.
A Sala de Imprensa do Vaticano não quis comentar o assunto, pois ele “pede uma leitura da situação que vai além da nossa competência”.