Falar sobre Godard

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Mais uma sessão da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Pegue sua pipoca e leia Cícero César sobre Godard. Afinal de contas, com este nosso colunista jamais podemos falar “já vi este filme”.

“Eduardo e Mônica trocaram telefone/ Depois telefonaram e decidiram se encontrar/ O Eduardo sugeriu uma lanchonete/ Mas a Mônica queria ver um filme do Godard.” (Renato Russo)




Prezado Washington, gostaria de falar hoje sobre Jean Luc Godard, o extraordinário cineasta franco-suíço que se foi neste 13 de setembro de 2020, aos 91 anos. De saída, lhe digo que sairá um texto ao estilo “pulando de galho em galho”, não sei se ao estilo do mestre. Vamos ver.

Eu não tenho formação em Cinema, mas em Letras. Não posso falar na condição de especialista. Contudo, os poucos filmes de Godard a que assisti certamente me despertaram o interesse. Cheguei a escrever sobre o “Adeus à linguagem” (2014) a que assisti em streaming (!).  

Eu não vi o filme de Godard que mais me despertou o interesse. É o “Je Vous Salue, Marie” (1985), cuja exibição foi proibida no Brasil. Sarney. À época, a carolada não gostou nada de um filme que colocava a mãe de Jesus como uma mulher comum – meio que achando que ser comum, humana, com desejos, virtudes e pecadilhos a tornaria uma mulher qualquer, sem valor. Roberto Carlos defendeu o veto ao filme – também o que esperar de Roberto Carolas?

Caetano Veloso, por sua vez, o censurou veementemente. É o que argumenta o artigo “Fora de toda a lógica”, publicado orginalmente na Folha de S. Paulo de 2 março de 1986 e republicado em “O mundo não é chato” (Companhia das Letras, 2005. Organização de Eucanaã Ferraz), livro que reúne a prosa do compositor baiano. 

Anos depois da polêmica, eu comprei o DVD do filme, que estava uma bagatela nas Lojas Americanas. Entretanto, não o assisti e não foi por falta de tempo. É que o tempo já tinha passado.

Cá entre nós, não é segredo que a geração de Caetano Veloso (da qual Marco Aurélio, o Gigante do Sul, faz parte) cresceu ouvindo música popular e indo ver filmes no cinema. Se atualmente nós temos à disposição muito mais filmes do que aquela geração, a forma de recepção aos filmes mudou muito. Os grandes filmes falavam a seu público, que conseguia entendê-los profundamente.  

Não quero soar romântico. O nosso tempo é melhor, pelo menos em oportunidades, e está em aberto. Mas a impressão que tenho é que há pouco espaço para filmes que exijam uma maior reflexão. Não quero soar como a Mônica da canção “Eduardo e Mônica”, que é  a “papo-cabeça” do casal. Nada mais chato que intelectual se gabando de seu vasto saber que no fundo pode vir a ser um privilégio de classe.

A solução passa pela formação de público, o que quer dizer que a moçada precisa ir ao cinema, ao teatro, às exposições com olhos de aprender. Precisam ser expostos à complexidade da arte, em suma, e de muita mediação.   

Retomo agora o meu foco em Godard para dizer algo óbvio: ele é um daqueles cineastas que fazem a cabeça de qualquer cinéfilo que se preze. Não só ele, mas Bergman, Glauber, Nelson, Fellini,  Bunuel, Truffaut, Bergman, Allen, Costa Gravas, Kurosawa, Einstein, Welles, Antonioni, Eduardo Coutinho, Chris Marker, entre outros. Correndo por fora estão Pedro Almodovar, Claudio Assis, Karin Anoiuz e Kleber Mendonça Filho, grandes realizadores que estão entre nós.

É uma constelação. E olha que é a lista de alguém limitadíssimo em cinema. Não sou nem quero ser especialista. Godard está morto, e pelo que dizem os jornais, decidiu morrer. A permanência e a pertinência de sua obra dependem de nós.

Em vez de lhe falar sobre os filmes importantes, indispensáveis, mencionarei um trecho de filme, quase um curta-metragem, de Godard que vi recentemente: é o “Weekend, 1967”.  Cerca de sete minutinhos são mais que suficientes para dar um bom recado para quem queira escutar.

O acento cômico do trecho está tão na medida que nos prepara mal para o epílogo: a gente ainda está rindo quando percebe que os carros capotados, as poças de sangue no asfalto, os mortos pelo caminho são obstáculos para o tão desejado fim de semana na roça dos ocupantes do carro escuro conversível. É o que me diz a cena final em que o carro, depois de ter se desvencilhado do engarrafamento,  sai em disparada por uma estrada de terra ao som de uma trilha sonora triunfal.

Moral da história: o mineiro só é solidário no country.

Os carros franceses eram lindos. Mesmo os pequenos, mesmo os capotados.

Tudo isso me tocou. Acabei pensando em um argumento para um filme de época. Pelo menos, é uma maneira de mostrar para o pessoal de fora o Rio de Janeiro da Região dos Lagos. É mais ou menos assim:

QUE INVEJA! FIM DE SEMANA EM IGUABA

(Um fusquinha na Ponte Rio-Niterói)

Está longe o pedágio. Sol escaldante de verão. As duas crianças a bordo já se cansaram de procurar os navios afundados na Baía de Guanabara, de jogar Adedanha, já estão emburradas, enjoadas, já querem se esbofetear. O marido fuma um cigarro atrás do outro, como comprova o cinzeiro do carro cheio de guimbas. No rádio, Bee Gees. A mulher lê de óculos escuros uma revista da moda. Ela  olha por cima dos óculos a Elizabeth Savalla de maiô. Que inveja, que inveja. O banco traseiro do carro está cheio de farelos de biscoito de polvilho. Já vai dando sede, uma das crianças está morrendo de vontade de fazer xixi.

Finalmente chegam ao pedágio. Pagam. Arrancam. O trânsito dá sinais que irá fluir. Falso alarme. Já está tudo parado de novo perto da fábrica de cimento. Um helicóptero que parece uma libélula passa perto do campo de visão deles. Que inveja, que inveja.

Tudo parado até no acostamento. O marido desliga o carro. Abre a porta e caminha medindo o a extensão do engarrafamento, que é a perder de vista. A mulher se abana com a revista. Um dos meninos sai para fazer xixi entre os carros. Na pista oposta o trânsito está fluindo que é uma beleza.

Obviamente, uma produção como esta só pode estar atrasada. Veja que mal cheguei a São Gonçalo, ainda não passei por Itaboraí. Talvez fosse melhor para a família abandonar tudo, pegar uma balsa clandestina e desembarcar em Paquetá. Quem sabe eles não topam com a Elizabeth Savalla de maiô fumando Hollywood? E na Amendoeira dá para fazer xixi sem se preocupar. Não há carros engarrafados no acostamento.

Um abraço.

P.S. 1 Acho que dá para fazer um filme semelhante tendo como cenário uma viagem à Baixada Santista.

P.S.2  Parte deste texto era uma mensagem para Roberto Bozzetti, professor de Literatura da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Foi ele quem, ao repostar o vídeo do trecho de  “Weekend, 1967”, me inspirou a escrever sobre Godard.

link para um trechinho do filme Weekend:

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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