Por Alexandre dos Santos , compartilhado de Projeto Colabora –
Movimento de ocupação no Instagram amplia a discussão sobre preconceito e ganha cada vez mais adeptos
Era início da madrugada de uma noite de maio de 2020 quando o telefone da filósofa, acadêmica e escritora Djamila Ribeiro tocou. Do outro lado da linha o voz do ator e roteirista Paulo Gustavo soava ansiosa e urgente.
—Djamila, tudo bem? Tive uma ideia muito maluca aqui e quero dividir com você!
—Oi Paulo, tudo bem. Claro, me conta…
Alguns dias depois, numa terça-feira dia 2 de junho de 2020, Djamila assumia, por um mês, o perfil do Paulo no Instagram. A mensagem publicada nesse dia já dava o tom do ineditismo do projeto.
A ideia de, como pessoa branca, fazer algo que chamasse a atenção sobre o debate racial e também despertasse o interesse de outras pessoas brancas para questões como “lugar de fala” e “racismo estrutural”, já estava martelando a cabeça do ator há tempos. A morte do segurança George Floyd no EUA e a comoção mundial que ela causou com o reforço do movimento “vidas negras importam” (black lives matter), foram os catalisadores.
“Eu já era fã da Djamila e fiquei ainda mais depois que li o ‘Quem tem medo do feminismo negro?’ É um assunto que a gente, que é branco, não domina. E a gente precisa se informar para se incomodar, porque o racismo está em tudo que é lugar! Eu fiquei mais atento, comecei a perceber o racismo mais rápido. Se eu consegui ficar com o olhar menos ingênuo eu tinha que tentar sensibilizar mais gente. Era a minha obrigação como figura pública!”, resume Paulo Gustavo.
E foi o que ele fez. Numa atitude sem precedentes nas redes sociais, cedeu o público de 14 milhões, à época, para serem “sensibilizados” pelas mensagens e debates que Djamila já propunha e compartilhava com as 500 mil pessoas que acompanhavam o perfil dela no Instagram até maio de 2020.
Paulo Gustavo. Foto Wikipedia
“Falar com esse público gigante de pessoas que não necessariamente tinham despertado para assuntos foi uma proposta um pouco assustadora, mas que eu aceitei na hora”, conta Djamila. “Criei um grupo com os meus assessores só para cuidar dos conteúdos que eu iria produzir para esse mês de ocupação Paulo Gustavo. Tudo foi muito pensado, desde o design das artes até a maneira coloquial de tratar assuntos sobre os quais muita gente já tinha ouvido falar, mas não sabia exatamente o que era, e assuntos que, para muita gente, era de total desconhecimento.”
O primeiro conteúdo específico produzido e divulgado no instagram do Paulo Gustavo foi um vídeo explicando o que era “racismo estrutural”, como reconhecê-lo e enfrentá-lo. Para isso, ela citou o próprio livro “Pequeno Manual Antirracista” (que chegou ao topo e continua há semanas na lista dos mais vendidos em não-ficção) e o livro do advogado e professor Silvio Almeida, publicado na coleção feminismos plurais (coordenada pela própria Djamila). Fez disso uma constante durante todo o mês de ocupação: para todos os assuntos apresentados e debatidos, Djamila sugeria livros que aprofundavam o assunto e apresentava autores negros.
A revolução de Paulo e Djamila formou uma pororoca no Instagram. A ideia e a execução bem-sucedida inspiraram outros atores e atrizes a formarem duplas com formatos próprios. Outra ocupação de um mês foi proposta pela atriz Tatá Werneck à artista multimídia Linn da Quebrada; Ingrid Guimarães abriu espaço semanal, durante o mês de junho, ao ativista Spartakus Santiago; Bruno Gagliasso vem cedendo seu perfil, aos sábados, para personalidades negras e fará isso até o fim de 2020; Fábio Assunção abriu a conta do Instagram, durante uma semana, à atriz e ativista, Preta Ferreira.
“Fabio já era meu amigo. Quando esse movimento começou ele me convidou e eu aceitei na hora porque quem é preta e mulher já nasce pronta para tudo”, conta Preta Ferreira, para quem a semana de ocupação serviu como um tratamento de choque. “Conversei muito com o Fabio e disse para ele que o meu objetivo era causar desconforto mesmo! Porque essa nossa sociedade é racista e machista há muito tempo. Então abri o leque para falar de todos as lutas que coubessem no meu tempo no perfil dele. E o Fabio me deu força e carta branca pra falar de música preta, da situação de solidão da mulher preta, do feminismo preto, da segregação dos povos indígenas, das LBGTs, das trans… fui longe!”
O músico transgênero MC Linn da Quebrada posa para uma foto nos bastidores após se apresentar no Museu de Arte do Rio. Foto Apu Gomes/AFP
O cruzamento entre as ancestralidades indígena e negra, bem como o racismo e a segregação que atingem ambas foi o tema da cantora e atriz sergipana Héloa, que ocupou o perfil do ator, modelo e DJ Jesus Luz durante um mês, mas às segundas, quartas e sextas: “Eu, como artista e mulher negra e indígena, procurei trazer os debates que traduzissem essa encruzilhada entre as realidades das minhas duas ascendências. Fui do ‘vidas negras importam’ ao ‘vidas indígenas importam’, bem como as representações religiosas, passando também pela música e pela moda negras e indígenas, assuntos que têm a ver com os interesses do próprio Jesus Luz e que chama a atenção dos seguidores dele. Separei as quartas-feiras para as lives, debatendo não só as questões atuais, mas também falando da importância do resgate das ancestralidades, das histórias e do orgulho do pertencimento”, afirma Héloa.
Assim como Djamila e Preta Ferreira, Héloa confirma que também teve total liberdade na escolha dos assuntos e dos convidados: “A gente abriu o projeto com uma live juntos”, explica Jesus Luz, “e daí por diante eu só fui o instrumento para amplificar a voz e as mensagens da Héloa. Foi importante para mim esse momento de aprendizagem porque somos muito diferentes e essa diferença é enriquecedora. Eu sou um cara privilegiado. Isso é fato. Sou um cara hétero e branco, mas o fato de eu fazer uma parceria com uma mulher negra e indígena é a forma mais legítima que eu encontrei para quebrar preconceitos – inclusive os meus – e trazer esses assuntos para casa das pessoas que me acompanham”.
A atriz e roteirista Mônica Martelli apostou numa “ocupação” de outro calibre. Ela vem compartilhando vídeos de líderes negras no próprio perfil. “O Paulo Gustavo foi pioneiro na iniciativa e eu resolvi ceder espaços pra mulheres negras, líderes e ativistas porque eu acredito que despertar a empatia com a causa da luta antirracista é uma construção intelectual. A gente tem que ler, tem que se informar e tem que ouvir… ouvir muito para aprender”, resume Mônica. O projeto não tem data para terminar e foi aberto pela escritora, psicóloga e educadora Kiusam de Oliveira, militante do Movimento Negro Unificado.
Para além da questão do racismo, Mônica também quis amplificar a voz de mulheres fora das regiões Sul e Sudeste, que sofrem uma espécie de “preconceito regional”. Auxiliada pela própria Djamila, a atriz já compartilhou vídeos de Flávia Ribeiro, jornalista e feminista negra de Belém, no Pará; Jayce Brasil, socióloga, feminista e educadora de Rio Branco, no Acre e Carla Akotirene, assistente social e doutoranda em estudos de gênero da UFBA, em Salvador.
“Esse movimento da Mônica, uma mulher da mídia, envolvida até então com o feminismo branco, é importante para desconstruir o imaginário que o Sul e o Sudeste têm de nós: pessoas exóticas que vivem no meio da floresta”, conta Jayce Brasil, “até porque as pessoas acham que por aqui não há pessoas negras.” Jayce faz questão de lembrar dois momentos que marcaram o movimento antirracista em Rio Branco: o lançamento do livro “Negros na Amazônia Acreana”, do escritor e professor da Universidade Federal do Acre (Ufac) Jorge Fernandes, em 2012, e a presença da Djamila Ribeiro em uma palestra na Ufac, em 2018. “Esses assuntos ganharam força na época e, agora, com a ajuda dos brancos conscientes e envolvidos na luta antirracista, como a Mônica Martelli, estamos abrindo varadouros (caminhos abertos pelos seringueiros nas florestas) não só para a negritude amazônica, mas de toda a região Norte do Brasil”.
Além de Jayce, que viu o número de seguidores aumentar nas redes sociais, todos os entrevistados confirmam que saíram ganhando com as iniciativas. “Muita gente passou a me seguir depois da ocupação, o que reflete que as pessoas estão realmente abertas para aprender e entrar no debate sobre racismo e privilégios brancos”, comenta Djamila Ribeiro.
“Foi a oportunidade de eu me apresentar e apresentar o meu trabalho como cantora e ativista, que representa o encontro dessas duas forças: a negra e a indígena”, lembra Héloa.
“As pessoas passaram a me seguir também para acompanhar a ‘live do povão’, que eu fiz no perfil do Fabio Assunção e continuo fazendo no meu, onde eu plugo qualquer um, de qualquer lugar do Brasil, que tenha alguma coisa para falar, seja o que for. Uma experiência maravilhosa que faz até alguns brancos antirracistas se sentirem à vontade pra se expressarem”, conta Preta Ferreira.
As reações dos “haters” já eram esperadas e, para muitos, foi tirada de letra. “O povo já me conhece, quando alguém vem de gracinha eu já dou um coió. Todo mundo já pensa duas vezes antes de escrever merda no meu perfil”, conta Paulo Gustavo, referendado por Djamila: “Quando alguém começava de graça, aqueles que estavam acompanhando pediam respeito ou sugeriam que a pessoa saísse.” Preta Ferreira usou a tática do amor, “mesmo sabendo que quem se esconde atrás de perfil de rede social para atacar os outros é rato! Se a pessoa está ali para falar o que quer, também acaba ouvindo o que não quer… e eu procurei devolver tudo de bom que eu tenho para dar.” Héloa seguiu a mesma linha, “eu simplesmente ignorava e era indiferente. Se a pessoa quer distribuir mesquinhez, eu estou ali para distribuir respeito, sensibilidade e consciência. O meu melhor.” Ela encontra coro em Jesus Luz, “Passei a ignorar, nem deleto mais o comentário porque a pessoa tem que ficar ali com o seu egoísmo bem explícito. Deu até um certo alívio saber que algumas deixaram de me seguir. Prefiro assim, que só fique quem tem afinidade comigo e com os assuntos que a Héloa trouxe para o debate no meu perfil”.
Mas e depois das ocupações? Que legados ficam para quem ocupou e para quem foi ocupado? Como manter o engajamento das pessoas que foram sensibilizadas e as discussões ainda vivas?
“Eu continuo ‘exigindo’ que a Djamila não me deixe! É importante manter o engajamento. Eu quero aprender mais e acho que quem me segue também está mais exigente”, comenta Paulo Gustavo. “O Paulo está me cobrando”, confirma Djamila, “e isso é bom. Tivemos boa procura dos livros da coleção femininos plurais. Isso mostra que o debate continua vivo e uma vez conscientes da questão, as pessoas não voltam a enxergar o mundo como antes”, completa.
“O fato de muita gente comentar nos meus posts, é prova de que a rede de afeto e empatia está se alastrando”, completa Preta Ferreira, “esses assuntos que antes eram só nossos agora estão na boca de cada vez mais gente.”
Héloa acrescenta, “abri um canal de diálogo não só com o Jesus Luz, mas com algumas pessoas que o seguem. Me coloquei como aprendiz na minha própria ocupação para que as pessoas pudessem se sentir aprendendo comigo. Para trazer a perspectiva de um outro olhar sobre os saberes. E eu acho que isso é que fica para além da ocupação.” No que Jesus Luz concorda, “Eu não posso mais abandonar esses conteúdos. A Héloa me despertou e agora esses assuntos também são meus. Experimentei o desconforto de perceber a extensão dos meus privilégios.”
“É muito importante que a branquitude fique desconfortável. Só assim a gente age.” Concorda Mônica Martelli. “E não estou falando do engajamento de sofá. Como dizia o Betinho: ‘quem tem fome tem pressa!’, quem sofre violência todos os dias, quem é vítima de racismo e de segregação há décadas também tem pressa!”
Apesar dos avanços significativos, Jayce Brasil alerta para o momento em que o debate começar a esfriar. “Percebo a empolgação diminuindo e temo que a gente caia no que o professor Sílvio Almeida chamou de ‘micareta racial’ – na já antológica entrevista ao Roda Viva – o envolvimento da branquitude no momento mais midiático e depois volta tudo ao status que era antes. Precisamos defender que se pratique o Estatuto da Igualdade Racial, que acaba de completar 10 anos. É a hora de pedirmos pessoas negras nas redações dos jornais, das revistas e das TVs, nas curadorias de conteúdo de sites e blogues… ajudando a criar conteúdo. Sem conteúdo, não há mudança possível”, conclui.