Mais um episódio da sessão “Coisa De Cinema”, de Lourenço Paulillo, cronista, cinéfilo, administrador de empresas aposentado
“Minhas memórias, reforçadas por várias e preciosas fontes de pesquisa sobre as antigas salas de cinema de São Paulo. A inspiração para este texto nasceu ao assistir o filme Retratos Fantasmas, do Kleber Mendonça Filho, que documenta as transformações da cidade do Recife, em especial dos “velhos” e inesquecíveis cinemas de rua.
Assim como nas projeções de filmes em ritmo acelerado, em que vemos uma flor desabrochar em questão de segundos, ocorreu-me utilizar do mesmo processo para registrar a gradativa deterioração dos históricos edifícios do Centro da cidade de São Paulo. Em particular, dos enormes e elegantes cinemas de rua do passado. Veríamos, em velocidade acelerada, o enegrecer da pintura, o surgimento das primeiras fissuras, as falhas nos luminosos das marquises, e finalmente o vandalismo, as invasões, o abandono ou mesmo a demolição, após fechados.
Esse pensamento me bateu ao decidir percorrer os endereços de alguns cinemas do Centro, os que eu mais frequentava quando bem jovem.
Comecei por fotografar quatro deles:
– O Ipiranga, que ficava bem em frente ao Marabá, este restaurado e reaberto em 2007, dividido em várias salas. Inaugurado em 1943, na Av. Ipiranga 786, com o filme Seis Destinos, no térreo de um moderno edifício de 22 andares, que até hoje sedia o Hotel Excelsior. Além da imensa plateia, havia dois balcões, um deles chamado Pullman, de primeira classe. Lá me lembro ter visto vários filmes do Hitchcock, como Janela Indiscreta, O Homem que sabia demais e Um corpo que cai. Fechado em 2005, é tombado pelo patrimônio histórico. Há promessa de ser reaberto como espaço de múltiplas funções, mas com a pandemia tudo parou.
– O Marrocos, na Rua Conselheiro Crispiniano 397, inaugurado em 1951, com o filme Memórias de um médico, e considerado então o mais luxuoso da América do Sul. Escadarias de mármore, vasto saguão com uma fonte e obras de arte.
Decorado em estilo Mil e uma Noites, em 1954 – IV Centenário da cidade de SP – sediou o primeiro Festival Internacional de Cinema do Brasil, com a presença de astros e estrelas de Hollywood, como Erroll Flynn e Joan Fontaine.
Fechou em 1994. Chegou a ser ocupado por integrantes de movimento por moradia, e hoje está cercado por grades, por onde se vê as paredes rabiscadas e montes de entulho. Todo o belo edifício está tombado e aguarda há anos novo destino, na área cultural.
– O Olido, inaugurado em 1957, na Av. São João 473, o primeiro dentro de uma galeria. Havia orquestra ao vivo antes das sessões noturnas. Lá estive na primeira sessão da tarde, vendo o filme Tarde Demais para Esquecer. Os pés afundavam no alto carpete.
A sala, embora bem descuidada, ainda está ativa e faz parte da rede pública SP Cine, da Prefeitura.
– O Paissandu, também aberto em 1957, com o filme Guerra e Paz. Considerado referência cultural na década de 1960, no térreo de belo edifício, que até hoje mantém o nome Paissandu na vertical, em grandes letras. Lá estive no primeiro dia e me lembro de ter visto Noites de Cabíria, do Fellini, com Giulietta Masina. Fechou em 2008.
Há uma semana dei continuidade à minha pequena maratona. Desci na estação Marechal Deodoro do metrô e vim caminhando pela Av. São João, em direção ao Centro. Procurava o fantasma do cine Comodoro Cinerama. Deste não há mais vestígio. O edifício lá permanece, no. 1462.
Inaugurado em 1959, trouxe a tecnologia inédita composta de três projetores simultâneos, larga tela em curva e som de nome “sensurround”, com amplificadores espalhados por toda a sala. O filme inaugural foi Isto é Cinerama, com impressionantes cenas de montanha russa e a beleza dos canais de Veneza. Outro sucesso, por quase um ano, foi Terremoto. Fechou em 1997.
Prosseguindo a caminhada, cheguei ao edifício que abrigava o cine Metro, na Av. São João. Inaugurado em 1938, com o filme Melodia da Broadway, pertencia à MGM – Metro-Goldwin-Mayer, que lá exibia com exclusividade seus filmes, por longas semanas. Lembro-me que, além de reprisar todos os anos E o Vento Levou, trazia de novo as Semanas Greta Garbo e Tom & Jerry. Havia ainda anualmente a semana de pré-estreias, um filme por dia, extensas filas, esperas até a sessão seguinte. Sucessos como Quo Vadis, Ben Hur, Mogambo, Sete Noivas para Sete Irmãos, Cantando na Chuva e tantos mais. Fechado em 1997, há muitos anos é sede da Igreja Internacional da Graça de Deus.
Ao lado do Largo do Paissandu, na própria Av. São João, 419, o Art-Palácio, inaugurado em 1936 como UFA-Palácio, pois foi construído com recursos da empresa alemã Universum Film AG. Tornou-se um cinema popular, exibia faroestes, e passou a lançar anualmente os filmes do Mazzaropi, sempre com estreia no dia 25 de Janeiro, aniversário da cidade, e com infindáveis filas. Fechado em 2012, após muitos anos de decadência, hoje cercado de tapumes. É tombado pelo patrimônio.
Tantas outras salas são hoje fantasmas, ou simplesmente foram demolidas.
O República, na praça homônima, de 1920, que modernizado lançou em 1954 a “maior tela do mundo”, com o filme O Manto Sagrado, em Cinemascope, e som estereofônico, que em certos momentos nos fazia pular de susto na poltrona. Hoje no local há um complexo de recentes edifícios.
O Ópera e o Jussara, ambos na Rua Dom José de Barros. No Ópera vi os antigos filmes em 3D, com óculos retornáveis.
O Coral, na Rua 7 de Abril, filmes de arte.
O Normandie e o Rio Branco, na Av. Rio Branco. No primeiro me lembro ter visto o francês Se Versalhes Falasse, longo e elogiado, de Sacha Guitry, com enorme elenco de atores e atrizes franceses da época, inclusive participações de Edith Piaf e da então iniciante Brigitte Bardot.
O Broadway, demolido em 1967, o Rivoli, no local do antigo Ritz São João, e inaugurado em 1958 com A Volta ao Mundo em 80 Dias.
E ainda o Oásis, o Regina, o Windsor, o Ouro, ex-Bandeirantes.
Doses duplas:
Certo dia o colega de classe Assad Abdalla Neto, o Assadinho, sabedor do meu interesse por cinema, emprestou-me sua permanente por uma tarde. Feliz, fui ver Hiroshima, Mon Amour, no Majestic, e corri pra outra ponta da Augusta pra ver a reprise de uma comédia musical com a Doris Day! No final da tarde, meio cansado, mas bem satisfeito, devolvi a permanente em sua casa da al. Santos.
Outra dose dupla:
Com a então namorada Miriam, após vermos o um tanto complexo Fellini em Satyricon, quis aproveitar a última sessão do Adeus, Meninos, lindo, de Louis Malle, e lá fomos nós correndo pela rua. Bem jovem na época, Miriam não reclamou, mas deve ter me achado um maníaco.
Censura:
Na época não havia a esferográfica, ou não era comum. As cadernetas de estudante eram preenchidas com caneta-tinteiro. Certos filmes hoje “ingênuos”, como A Caldeira do Diabo e mesmo algum Fellini, tinham censura 18 anos. A solução era apagar com cândida e alterar o ano de nascimento. Só que perto de casa o porteiro já me conhecia, então tinha que encarar uma sala mais distante. O barato é que com 16 ou 17 eu tinha cara de 14!
Revistinha:
Como eu não via nas capas as estrelas minhas preferidas, criei minha própria revistinha, chamada O Que há de novo. Recortava fotos da Cinelândia e com elas fazia minhas próprias capas. Nesta revista passei a escrever pequenas críticas de filmes que via. Estas infelizmente também “sumiram”.
A chamada Cinelândia paulistana era motivo de presença maciça do público. A elite comparecia às festivas inaugurações, muitas delas com a presença de convidados e até das Forças Armadas à frente. A fase áurea motivou a construção de tantos cinemas, projetados pelos mais renomados arquitetos, como Rino Levi e João Bernardo Ribeiro.
As cadeias de cinema Serrador e Paulo Sá Pinto eram poderosas e traziam as inovações tecnológicas.
As salas eram ricamente decoradas, havia confortáveis salas de espera, não faltava mármore, lustres, cortinas de veludo.
Com o passar do tempo, novas salas surgiram em bairros nobres, na Av. Paulista e nas Ruas Augusta e Consolação. Nesta avnida, quase com a Paulista, resiste, como um grande cinema de rua, o Belas Artes. Inaugurado em 1943 como Cine Ritz, cinco anos depois teve o nome mudado para Cine Trianon e, em 1967 foi batizado de Cine Belas Artes.
Ao contrário dos icônicos cinemas, que atraíam as famílias para o Centro, a televisão levou as pessoas para dentro das casas. Os shopping centers trouxeram inúmeras salas, padronizadas e sem graça, mas procuradas à medida que o Centro foi se esvaziando e se tornando menos seguro.
O glamour do Centro infelizmente se extinguiu. O afastamento do público inviabilizou a manutenção do padrão de qualidade das luxuosas salas do Centro, que assim foram desaparecendo.
Ficarão na história e em nossa memória, até que também viremos fantasmas.
Mas o futuro é sempre desconhecido. Quem sabe haverá um dia em que nosso Centro possa ser novamente motivo de orgulho. A palavra otimismo ainda consta dos dicionários.”
Antigo prédio do Cine Ipiranga
Cine Olido, ainda existente
Cine Paissandu
Prédio do extinto Cine Comodoro
Prédio do extinto Cine Metro