Fascismo dá as caras, direita se reconfigura: a conjuntura pós-eleição em Portugal

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Por Daniel Giovanaz, compartilhado de Brasil de Fato – 

Necessidade de investimento público na pandemia aprofunda diferenças entre o atual governo e a esquerda

Marcelo Rebelo de Sousa [esq.] e António Costa [dir.]: presidente e primeiro-ministro de Portugal – PATRICIA DE MELO MOREIRA / AFP

reeleição do presidente Marcelo Rebelo de Sousa, do Partido Social Democrata (PSD), no último domingo (24), embora fosse previsível, reflete mudanças significativas na correlação de forças em Portugal.

pandemia, que já fez 11,6 mil vítimas fatais no país, contribuiu para uma abstenção de 60% na eleição e vem escancarando as diferenças de projeto entre a esquerda e o atual governo.




O crescimento da extrema direita, que alcançou o terceiro lugar, e a não apresentação de um candidato próprio pelo Partido Socialista (PS) sinalizam o reposicionamento de peças importantes no tabuleiro político do país.

Contexto

Em Portugal, o presidente é o chefe de Estado, com mandato de 5 anos, mas quem governa na prática é o primeiro-ministro. É ele quem coordena as atividades a nível nacional, designa e demite membros do governo. Desde novembro 2015, o cargo é ocupado por António Costa, secretário-geral do PS.

Costa assumiu o governo em uma composição apelidada de Geringonça, que congregou o PS, o Partido Comunista de Portugal (PCP), o Bloco de Esquerda e partidos verdes. Juntos eles tinham maioria no Legislativo, e criaram uma plataforma para tentar reverter as políticas de austeridade dos governos anteriores.

O termo Geringonça foi criado por adversários, de forma pejorativa, mas logo se popularizou – assim como o próprio governo.

Gradativamente, foi possível recuperar parte dos direitos sacrificados no período em que Portugal foi governado pelo PSD e pela Troika, equipe composta por Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Central Europeu e Comissão Europeia para enfrentar os efeitos da crise de 2008.

“O PS, apesar de ter feito acordos de ingerência parlamentar com o Partido Comunista e com o Bloco de Esquerda, nas grandes questões é aliado do PSD”, afirma Alfredo Campos, líder camponês e dirigente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA).

“Quando mexe com o grande capital, o PS tem posições idênticas ao PSD. Chamamos essa aliança de centrão, porque são os dois maiores partidos.”

Joana Mortágua, deputada pelo Bloco de Esquerda, ressalta os limites da Geringonça. “O PS tem uma visão diferente da nossa sobre os tratados europeus de fundo neoliberal, arquitetados de maneira a conter despesa pública, os salários e apoios sociais”, explica.

“Esses tratados desregulamentam a economia e o sistema financeiro, criam prisões orçamentarias que não permitem, por exemplo, a nacionalização de setores estratégicos privatizados no período de austeridade, como correios e telecomunicação”, completa a deputada.

O rompimento que provocou o esfacelamento da Geringonça não explica por si só, mas tem tudo a ver com a reeleição de Rebelo de Sousa – político conservador, da direita tradicional, apoiado pelo secretário-geral do PS.

António Costa, secretário-geral do PS e primeiro-ministro de Portugal, tem boa relação com o presidente reeleito Rebelo de Sousa / ANDRÈ KOSTERS / POOL / AFP

Resultado previsível

Nenhuma pesquisa de intenção de voto colocava em dúvida a reeleição do presidente português, que fez 60,7% dos votos e venceu em 1º turno.

Todos os chefes de Estado que se candidataram à reeleição, na história de Portugal, foram reeleitos. Além do apoio do PSD e do líder do segundo maior partido do país, Rebelo de Sousa aparecia todos os dias na televisão, em telejornais e inserções ao vivo, para falar da pandemia.

Com 10 anos de experiência como comentarista político, antes de ser presidente, ele gozava de uma visibilidade que nenhum outro candidato teria.

Para completar, a esquerda estava dividida. Apesar do apoio informal de António Costa, o PS liberou que sua base escolhesse qualquer uma das opções e não lançou candidato próprio.

A socialista Ana Gomes concorreu de forma independente, à revelia da direção do partido, e alcançou o 2º lugar, com 12,97% dos votos.

Diante da ameaça da extrema direita, que começava a aparecer no retrovisor, é provável que milhares de eleitores socialistas tenham votado em Rebelo de Sousa.

“E muitos votos da direita não foram para Marcelo, mas para a extrema direita. Ele só teve uma votação tão grande porque contou com os votos da esquerda”, analisa Mortágua.

“Marcelo Rebelo de Sousa afirmou-se como presidente durante o período da Geringonça e foi, na prática, apoiado pelo PS”, enfatiza a deputada.

“A ideia, na base popular antifascista, foi não deixar que houvesse um 2º turno, mesmo que isso significasse eleger um presidente de direita – que pelo menos não é hostil à esquerda.”

O candidato do PCP, João Ferreira, ficou em 4º lugar com 4,32% dos votos, seguido por Marisa Matias, do Bloco de Esquerda, com 3,95%.

A comunista Sandra Pereira, deputada ao Parlamento Europeu por Portugal, ressalta que a pandemia atrapalhou, em grande medida, essas candidaturas:

“Nossa forma de fazer política é falar com as pessoas, ir ao contato, e agora, em tempos de pandemia, isso não é possível.”

Fascismo dá as caras

A extrema direita foi representada na eleição pelo deputado André Ventura, presidente do partido CHEGA e oriundo da direção do PSD. Apoiado por grupos fascistas, defensores do colonialismo e anticomunistas, ele ficou em 3º lugar com 11,9% dos votos.

“Não há uma vitória da extrema direita. Temos que relativizar as coisas”, pondera Alfredo Campos.

“De fato, há um crescimento significativo do partido de extrema direita. O fato é que, em uma democracia, quando os governos não conseguem dar resposta aos anseios e necessidades da população, abre-se um campo fértil para o populismo, a extrema direita, capitalizar esse descontentamento”, enfatiza.

Segundo dados de novembro de 2020 do Instituto Nacional de Estatística (INE), a população desempregada – aproximadamente 375 mil pessoas – cresceu 8,1% em relação ao mesmo mês do ano anterior.

Sandra Pereira lembra que a extrema direita já estava representada na Assembleia desde outubro de 2019, com uma cadeira, e que “eles não podem fazer nada com esse terceiro lugar, porque só um se elege.”

“Ele [Ventura] tem tido muito palco, visibilidade, por dizer uma série de disparates. Diz aquilo que as pessoas querem ouvir, aposta no discurso de ódio. Traz problemas reais, como o desemprego e os baixos salários, mas não propõe soluções”, analisa a deputada do Parlamento Europeu, que considera que a extrema direita atingiu seu teto, com 496 mil votos. “Espero não estar enganada”, finaliza.

Reconfiguração da direita

As primeiras declarações dos candidatos após a confirmação do resultado eleitoral indicam um “namoro preocupante” entre o PSD e o CHEGA, na avaliação do dirigente da CNA. “Na própria noite das eleições, isso ficou evidente”, lamenta Campos.

“O CHEGA dizendo que a direita não poderia fazer governo sem a participação deles, e o PSD dizendo que não poderia ignorar o crescimento do CHEGA.”

Joana Mortágua observa um fenômeno que caracteriza como reconfiguração da direita. Segundo ela, o PSD e o Partido do Centro Democrático Social (CDS), também da direita tradicional, devem enfrentar um período conturbado à medida que perde parte de seu eleitorado para candidaturas extremistas.

“A reconfiguração da direita consiste aqui num crescimento de uma força à direita desses dois partidos, extremista, que pertence à frente fascista europeia, vai ganhando espaço e conseguindo polarizar a direita”, afirma.

“Os partidos da direita moderada, tradicional, que responderam com austeridade à crise de 2008 e foram afastados do poder pela Geringonça, têm enfrentado muita dificuldade de recuperar sua posição eleitoral”, lembra a deputada do Bloco de Esquerda.

Portugal vive nova etapa de restrições sanitárias para evitar disseminação da covid-19 / PATRICIA DE MELO MOREIRA / AFP

Mortágua também lamenta a aproximação entre PSD e CHEGA, que pode legitimar ideias extremistas. “Em vez de fazer um cordão sanitário e dizer que não aceitam governar com partidos fascistas, eles veem nessa aliança radicalizada uma forma de continuar no poder”, critica.

Desafios à esquerda

O afastamento entre António Costa e os partidos de esquerda ficou claro na votação do orçamento para 2021. O Bloco de Esquerda votou contra a proposta do governo, e o PCP absteve-se.

“O PS não consegue sozinho viabilizar o orçamento. Nesse último, optamos por não votarmos contra e nos abstivemos, porque avaliamos que haviam sido garantidos avanços que contribuem para melhoria da vida dos trabalhadores”, explica Sandra Pereira.

Ao mesmo tempo, ela lamenta que o governo compactue com o “desmantelamento do sistema nacional de saúde, que permite que grandes grupos privados invistam no setor.”

Para Mortágua, a pandemia radicalizou as diferenças entre o projeto do atual governo e dos partidos esquerda.

“Não que ela tenha quebrado a tendencia que já existia, do PS governar cada vez mais ao centro, afastando-se progressivamente da Geringonça”, pondera.

“Mas a pandemia, que agrava as desigualdades sociais e impõe a necessidade de investimento, radicaliza a nossa diferença em relação ao PS, que segue respeitando os limites de déficit, segundo a política europeia.”

Alfredo Campos lembra que, embora a esquerda esteja disposta a se mobilizar por essas pautas, provocar instabilidade a ponto de derrubar o atual governo pode ser temerário, afinal a extrema direita mostrou-se uma força emergente.

Questionado se a esquerda deve fortalecer o governo contra um possível avanço do fascismo, o dirigente da CNA é categórico:

“Tudo depende da prática política do governo. Se ele quiser o apoio dos partidos de esquerda, terá que adotar políticas em defesa dos interesses do país e da população. Medidas em relação ao ensino, ao emprego, ao serviço nacional de saúde”, finaliza o dirigente da CNA.

Edição: Leandro Melito

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