Um dos filmes mais importantes e aguardados do ano, “Argentina, 1985”, de Santiago Mitre, relembra o importante e histórico Julgamento das Juntas, que levou aos tribunais civis generais e articuladores militares de perseguições, sequestros, torturas e desaparecimentos sumários ocorridos durante a ditadura militar argentina.
Por Fer Kalaoum, compartilhado da Revista Bula
Enquanto o Brasil anistiou e recompensou torturadores e seus herdeiros com gordas aposentadorias, no território vizinho os julgamentos ocorrem ainda nos dias de hoje, conforme investigações se desenrolam. Afinal, foram dezenas de milhares de pais, mães, esposas e esposos, filhos, filhas, irmãos e irmãs subtraídos de suas casas, escolas, trabalhos e faculdades que jamais foram vistos novamente.
O imprescindível Ricardo Darín interpreta Julio Cesar Strassera, um promotor de Justiça que é incumbido de investigar e comprovar o planejamento e execução do plano de desaparecimento de pessoas por importantes e ainda influentes membros do Exército. À princípio, Strassera recua da tarefa, duvida da efetividade do trabalho e sente medo das ameaças que sua família passa a receber após ele assumir o caso. Vale ressaltar que a história se passa em 1985, apenas dois anos após a retomada democrática no país. Depois de aceitar, Strassera abraça como quem está diante de uma missão messiânica e da qual não se pode dar um passo para trás.
Ao seu lado, o promotor adjunto Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani), que recruta uma equipe de advogados recém-formados e sem experiência para montar o caso, porque todos os nomes mencionados por Strassera são fascistas, mortos ou muito fascistas. Em 17 semanas o grupo realiza uma força-tarefa para coletar testemunhos e evidências de 709 casos.
Mas as investigações seguem pela equipe com um sentimento nada heroico, porque além de receberem constantes ameaças, o grupo é desmotivado por familiares que admiram os militares e pela nação, que vê os torturadores como representantes da ordem e do patriotismo. Qualquer semelhança com os tempos atuais não é mera coincidência, mas uma construção de mentalidade que vem sido trabalhada há séculos no mundo inteiro. Vide Napoleão Bonaparte, um militar golpista visto por muitos como estadista e celebrado ainda hoje na França.
Com uma linguagem bem parecida com a do cinema hollywoodiano, discursos inflamados influenciados por Aaron Sorkin e inserções de filmagens reais, dando a sensação de documentário, o filme de Mitre segue a mais perfeita receita para o cinema de Oscar e deve disputar como filme internacional. Sua melhor habilidade, talvez, tenha sido medir de maneira correta os alívios cômicos em meio às tensões dos testemunhos das vítimas. Grande parte deles foram reduzidos e cortados, dando maior ênfase ao de Adriana Calvo de Laborde (Laura Paredes), que deu à luz algemada em uma viatura e foi obrigada a faxinar nua um lugar usado pelos militares antes de poder segurar sua filha recém-nascida pela primeira vez, mostrando o nível de crueldade dos réus. Talvez Mitre tenha tido respeito por familiares, não querendo expor situações ainda mais dolorosas como um espetáculo.
Apesar do peso dessa história e de deixar o espectador angustiado e curioso sobre o destino dos torturadores, cenas hilárias, como da esposa de Strassera zombando do homem que os ameaça por ligações telefônicas faz tudo parecer menos grave, mas não menos importante do que é. Isso demonstrou o bom-gosto de Mitre em narrar com algum humor, mas sem desrespeitar a história.
“Argentina, 1985” é um filme necessário para examinarmos nosso próprio contexto e talvez nos envergonhar dele e de como o Brasil lidou com o fim da ditadura, sem punições e sem dar os nomes corretos nos livros de história. Afinal, não foi regime, foi ditadura. Não teve ordem e nem progresso, teve censura, tortura e uma intensificação das desigualdades sociais.
Filme: Argentina, 1985
Direção: Santiago Mitre
Ano: 2022
Gênero: Thriller, drama
Nota: 10 /10