Feminismo negro: muito além da questão de gênero

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Ativistas questionam feminismo branco ou hegemônico e destacam importância de celebrar o 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra

Manifestação no Dia Internacional da Mulher Negra Negra Latino-Americana e Caribenha em São Paulo em 2017: feminismo negro em busca de protagonismo (Foto Cris Faga/NurPhoto)
Manifestação no Dia Internacional da Mulher Negra Negra Latino-Americana e Caribenha em São Paulo em 2017: feminismo negro em busca de protagonismo (Foto Cris Faga/NurPhoto)

As comemorações do Dia Internacional da Mulher ocuparam ruas e espaços públicos e institucionais, mas também voltaram a levantar discussões sobre a luta feminista. Mulheres negras, cada vez mais, questionam um feminismo branco ou hegemônico, como tratam as pesquisadoras do assunto, estabelecendo pautas que se pretendem universais ao gênero feminino. Entretanto, o feminismo negro coloca também questões raciais e sociais e não só questões de gênero, o que causa discordâncias sobre um feminismo universalizante.  “A definição de mulher sempre foi sob a ótica da mulher branca ao longo da história. Assim, as mulheres negras precisam demonstrar que pautas feministas estão além da discussão sobre gênero”, afirma Raquel Barreto, historiadora e doutoranda em História pela Universidade Federal (UFF).

Nós sempre tivemos que tentar cobrir os nossos corpos. Porque o corpo que foi estuprado durante a colonização, o corpo que é visto como o corpo de iniciação sexual de homens brancos, durante a colonização e o século XX, é o corpo negro. Então, enquanto a mulher branca quer deixar de ser imaculada ou quer poder circular nos espaços, o corpo negro têm outro olhar.

Taís de Sant’Anna
Pesquisadora da UnB

Mesmo não sendo uma ideia unânime entre mulheres negras feministas, há um movimento crescente de busca por um feminismo que trate de problemas que atingem em especial a mulher negra, segundo Taís de Sant’Anna Machado, doutoranda em Sociologia na Universidade de Brasília. Este feminismo negro, inclusive, passa a celebrar o 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, oficialmente reconhecido no Brasil em 2014, e não o 8 de março. “Existe uma tensão entre as negras do movimento, que vêem a experiência da mulher negra como um conjugado de sistemas opressores, como o sexismo e o racismo.  Em uma sociedade de supremacia branca, coisas que não têm uma qualificação, como o feminismo, são brancas. Por isso, a necessidade de se falar de uma feminismo negro”, argumenta Taís de Sant’Anna Machado. “Quando falamos das nossas questões parece que estamos apartados da sociedade brasileira, mas não estamos; o que está apartado é a definição de um feminismo hegemônico que só pauta a discussão a partir de um eixo: o gênero. Contudo, a experiência da mulher negra não se resume ao gênero; a mulher negra está submetida as questões raciais, o que torna a análise do ser mulher negra mais complexa.”, afirma Raquel Barreto.

Taís de Sant'Anna: 'Em uma sociedade de supremacia branca coisas que não tem uma qualificação, como o feminismo, são branca' (Foto: Matheus Alves/divulgação)
Taís de Sant’Anna: ‘Em uma sociedade de supremacia branca coisas que não tem uma qualificação, como o feminismo, são branca’ (Foto: Matheus Alves/divulgação)

As pesquisadoras frisam que questões sobre a emancipação do corpo feminino e sua sexualização trazem discordâncias entre mulheres negras e brancas. Mesmo partilhando o mesmo gênero, as mulheres negras sempre tiveram tratamento diferenciado em relação aos seus corpos, vistos como objeto de prazer, enquanto as brancas deveriam manter seus corpos castos e intocáveis. Como consequência, enquanto o feminismo hegemônico busca a emancipação do corpo branco como livre de pudores, o feminismo negro luta pela não sexualização do corpo negro. Assim, Taís de Sant’Anna marca mais uma das consequências deixadas pelo colonialismo. “Mulheres negras nunca estiveram no lugar da respeitabilidade. Nós sempre tivemos que tentar cobrir os nossos corpos. Porque o corpo que foi estuprado durante a colonização, o corpo que é visto como o corpo de iniciação sexual de homens brancos, durante a colonização e o século XX, é o corpo negro. Então, enquanto a mulher branca quer deixar de ser imaculada ou quer poder circular nos espaços, o corpo negro têm outro olhar. Assim, pautas sobre o corpo acabam sendo muito diferentes”, afirma a doutoranda da UnB.




Existe uma relação de poder dentro do movimento feminista, controlado pelas mulheres brancas de elite, no sentido de levantarem suas pautas como únicas. Então, há uma relação ainda de um racismo muito forte no movimento.

Fernanda Thomaz
Professora da UFJF

O feminismo negro busca ainda demonstrar que as relações raciais influenciam diretamente na feminilidade negra e, portanto, precisam de pautas específicas que o feminismo hegemônico não debate, necessariamente. Temas como o fim do genocídio de jovens negros e direitos trabalhistas para empregadas domésticas são preocupações da mulher negra. Mães de jovens negros convivem diariamente com o medo de perder seus filhos de forma violenta – um jovem negro é morto a cada 23 minutos no Brasil – o que faz com que haja um grande movimento das mulheres negras em enfrentar esse drama. Além da exploração do trabalho da mulher negra, como destacam Taís de Sant’Anna e Raquel Barreto: as pesquisadoras lembram que foi necessário que as mulheres negras fossem trabalhar como domésticas nas casas de mulheres brancas para que estas tivessem garantido o direito ao trabalho – uma conquista que não foi nenhuma novidade para a mulher negra, que ao longo da história, sempre trabalhou, desde a escravidão.

Fernanda Thomaz: 'Existe uma relação de poder muito forte, quando as mulheres brancas colocam suas pautas como universalizantes' (Foto:Arquivo Pessoal)
Fernanda Thomaz: ‘Existe uma relação de poder muito forte, quando as mulheres brancas colocam suas pautas como universalizantes’ (Foto:Arquivo Pessoal)

É visível que o feminismo hegemônico já conseguiu muitas conquistas para as mulheres de forma geral: direitos como o voto feminino em 1932, e mais recentemente a lei do Feminicídio sancionada em 2015, demonstram o valor da luta feminista. “Contudo, é necessário ao feminismo negro lutar pela reparação dos erros históricos e estruturais do racismo brasileiro, pensando que a maior parte da população feminina brasileira é negra” destaca Taís de Sant’Anna. Professora de história da África na Universidade Federal de Juiz de Fora, Fernanda Thomaz também frisa que há muita diferença entre as pautas das mulheres brancas e negras.  “É claro que existe toda uma discussão por acesso, mas quando pensamos em parte das pautas das mulheres negras, elas querem o básico. Enquanto, muitas vezes, as mulheres brancas querem se igualar ao lugar dos homens brancos,” afirma Fernanda Thomaz.

A professora de história da África lembra que o racismo existe até no movimento feminista. “O que diferencia e demarca a importância do dia 25 de julho é pensar que existe uma relação de poder dentro do movimento feminista, controlado pelas mulheres brancas de elite, no sentido de levantarem suas pautas como únicas. Então, há uma relação ainda de um racismo muito forte no movimento. De uma forma geral, eu acho que se a gente percebesse essas diferenças a gente poderia pensar em um movimento muito mais conjunto. Para mim, ainda existe essa relação de poder muito forte, quando as mulheres brancas colocam suas pautas como universalizantes”, afirma Fernanda Thomaz.

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