A festa na Argentina, pela conquista da Copa do Mundo, entrou madrugada adentro. Nenhum outro acontecimento da história do país levou tantas pessoas às ruas num clima de união. Novas comemorações estão previstas a partir desta segunda-feira (19), quando os jogadores chegarem do Catar. Para muitos, o grito de tricampeão, contido por 36 anos, evoca um milagre operado por Maradona.
Por Márcio Resende, compartilhado de RFI
Na foto: Mais de 90 mil pessoas assistiram ao jogo da final da Copa do Mundo do Catar na principal Fan Fest do país, em Buenos Aires. © RFI/Márcio Resend
A manifestação popular foi a maior da história argentina. Milhões de pessoas se reuniram nas principais praças e avenidas de todo o país.
Só na cidade de Buenos Aires foram mais de dois milhões de torcedores, dos quais mais da metade concentrou-se na Avenida 9 de Julho, a mais larga da Argentina e tradicional ponto de manifestações do futebol.
Pelas ruas, a maioria dos torcedores exibiam orgulhosos a camisa 10 de Lionel Messi. Bandeiras, vuvuzelas, buzinas e todo tipo de demonstrações de euforia compõem o estado de graça de uma nação.PUBLICITÉ
União sem fissuras
Não há registros de uma união e de um clima de confiança tão forte no país nem mesmo no bicampeonato de 1986, muito menos no campeonato de 1978, em plena ditadura. A seleção argentina em geral e Lionel Messi em particular conseguiram a proeza de superar a divisão social e a polarização política, pelo menos enquanto esta festa durar.
“Sinto uma alegria enorme. É a primeira vez que toda a sociedade, jornalistas, jogadores, torcida, todos incentivaram a seleção. Os jogadores conseguiram unir a Argentina que sempre caiu na polarização”, apontou à RFI o torcedor Luis Percul, de 58 anos.
“Em 1986, havia muita alegria, mas a equipe chegou ao México jogando mal e tendo perdido vários jogos amistosos. Poucos gostavam daquela seleção que ganhou com um gol de mão. Muitos odiavam o técnico Carlos Bilardo. Milagrosamente, fomos campeões. Agora, no entanto, jogamos muito bem, sempre sofrendo, mas jogando bem”, diferencia Luis.
Sofrimento
Rafael Santamaría, de 45 anos, também vê o país unido graças ao futebol e destaca a importância desta carícia na alma argentina, assolada por problemas econômicos.
“Acredito que esta festa vai durar muito tempo. A Argentina precisava muito ter uma alegria. Há muito que não vejo as pessoas a sorrirem assim. Viemos de problemas muito pesados. Agora vejo todos unidos e isso é fabuloso”, indica Rafael à RFI.
Ele tinha acabado de raspar a vasta cabeleira como promessa se a Argentina, finalmente, fosse campeã. Ao seu lado, a esposa Soledad, de 45 anos, destacou o valor de um grito que ficou entalado durante 36 anos.
“Nós somos um tango. Sofremos, sofremos, mas, no final, temos esta recompensa porque somos isto. Somos puro coração. E as coisas assim terminam tendo mais valor”, afirma Soledad enquanto todos ao seu redor cantam “somos campeões outra vez”.
Taça para a América do Sul
O clima de união surpreende os próprios argentinos numa sociedade marcada pela polarização política.
“Esta é a primeira vez que eu vi tanta gente tão eufórica, tão confiante. Todo mundo. É uma felicidade muito grande”, festeja Maxi Bender, de 32 anos
Filho de pai brasileiro, Maxi destaca a importância da conquista para o futebol sul-americano que agora tem 10 títulos, enquanto a Europa continua à frente com 13, um desequilíbrio atenuado com o pentacampeonato do Brasil em 2002.
“E pensar que o (Kylian) Mbappé disse que o futebol sul-americano não tinha o nível do europeu. Essa vitória é para ele ver”, dispara Maxi. “Uma Argentina campeã é muito bom para o futebol sul-americano. Os melhores jogadores da história são sul-americanos”, frisa.
“Não importa a rivalidade Brasil x Argentina. Hoje torcemos pela Argentina porque é a América do Sul”, reforça a brasileira Mariana Leite, de 32 anos, residente em Buenos Aires.
Maradona divino
Nicolás Adi, de 28 anos, desabafa emocionado com o grito de “campeão do mundo”.
“Um dos meus sonhos foi cumprido. Algo que pensei jamais acontecer, aconteceu. Ainda não acredito que somos campeões. Tenho 28 anos e nunca vi a Argentina campeã do mundo. Agora, acabo de ver e ainda não acredito”, descreve Nicolás à RFI.
Durante todo o Mundial, Nicolás pedia que Diego Maradona operasse, do céu, um milagre. A cada nova vitória da Argentina, dizia que uma parte do milagre tinha sido realizada.
“O milagre aconteceu porque Diego nos ajudou, porque Diego nos escutou. Messi respondeu em campo. A equipe mostrou determinação. A torcida confiou. Tudo se alinhou”, acredita.
Glória eterna
A incógnita é quanto esse estado de graça vai durar entre os torcedores argentinos, famosos pelo fanatismo. A conquista do título, depois de 36 anos, foi classificada no país como “conquistar a glória eterna”.
“Esta festa vai durar pelos próximos três anos e meio, até o próximo Mundial. Mas no meu coração, a glória desta Copa vai durar a vida inteira. É a glória eterna de ter chegado ao ponto mais alto. Isso ninguém nos tira jamais”, garante Nicolás.
Porém, para Abdulaziz, de 37 anos, da Arábia Saudita, o milagre foi outro. Nesta final, ele torceu pela Argentina com a camisa do Messi, mas recordou o susto que a Arábia representou para a Argentina logo na primeira partida do campeonato.
“A Arábia Saudita ganhou da Argentina. A Arábia ganhou do campeão”, cutuca.
Foi depois desse jogo perdido que Nahuel Ponce, de 21 anos, fantasiou-se de homem-aranha como superstição. Para esta Final, Nahuel levou vários outros torcedores vestidos de homem-aranha, já que eram necessários muitos gols para vencer a França.
“No primeiro jogo, eu não me vesti assim e a Argentina perdeu para a Arábia Saudita. Desde o segundo jogo, eu mudei e deu certo. A superstição funcionou. Já posso tirar a máscara porque os jogadores tricampeões são os verdadeiros super-heróis”, diz Nahuel.
Os jogadores, agora heróis nacionais, chegam a Buenos Aires na noite desta segunda-feira (19).