Por Celso Sabadin, de Brasília –
O título acima pode soar estranho para o público em geral. Vale a explicação: o Festival de Cinema de Tiradentes, realizado sempre em janeiro, já se firmou como o grande evento lançador de novas estéticas, tendências e experimentalismos do cinema brasileiro. É palco consagrado de jovens cineastas que rejeitam as fórmulas tradicionais e buscam novos conceitos de realização cinematográfica. Algo que se convencionou chamar de “Novíssimo Cinema Brasileiro”. Assim, Tiradentes já se tornou a praia (embora fique em Minas Gerais) de realizadores, estudiosos e imprensa sintonizados com a vanguarda.
Na outra ponta deste raciocínio, o Festival de Gramado busca exatamente o contrário: a comunicação direta com o público. Prefere selecionar filmes com elenco consagrado e roteiros mais assimiláveis. Menos tradicional, o Festival de Paulínia percorre a trilha gramadense, mesmo porque ambos têm o jornalista Rubens Ewald Filho como ponto de intersecção na curadoria.
Cada qual à sua maneira, Tiradentes e Gramado (este, principalmente nos últimos 3 anos) têm importância fundamental para a produção cinematográfica brasileira. Tiradentes como vanguarda e Gramado/Paulínia como instrumento de diálogo com as plateias são polos fundamentais para a diversidade do nosso cinema.
Neste cenário, onde se encaixa atualmente Brasília, um dos festivais mais importantes, fortes e tradicionais do país? As tônicas do evento brasiliense sempre foram a luta política, a polêmica e a fortíssima participação de um público inquieto e ativo, formado principalmente por estudantes. O que nem poderia ser diferente, num festival que nasceu dentro da Universidade de Brasília, no ano seguinte à implantação da ditadura militar.
Porém, a julgar pela seleção deste ano, Brasília está cada vez mais Tiradentes: a curadoria optou por filmes mais experimentais, de leitura mais fechada, que nem sempre conseguem o diálogo com o público, por mais que a plateia daqui seja preparada, diferenciada e aberta a provocações.
Não me parece que caibam dois grandes festivais anuais deste tipo no Brasil. Principalmente pelo fato de Tiradentes já ter sua imagem bastante consolidada neste sentido.
Mesmo porque o filme autoral, experimental, vanguardista, de invenção, ou seja lá o rótulo que nós, críticos, coloquemos neles, parte da premissa que o resultado de bilheteria é irrelevante. O que, aliás, é a base de toda a experimentação.
Não parece saudável que Brasília se transforme em “Tiradentes 2”. Na condição do único grande festival brasileiro, fora o próprio Tiradentes, exclusivamente voltado ao cinema nacional, Brasília precisa reencontrar a própria identidade.
Cabe aqui um parêntese. Gramado, que ao lado de Brasília era o mais conhecido festival brasileiro de cinema, teve de forçosamente se internacionalizar em 1990, em função da “quebra da safra” da nossa produção, após as lambanças do governo Collor. Brasília conseguiu resistir. Num curto período de tempo de, digamos, 5 anos, os festivais de Ceará, Pernambuco e Paulínia, que também eram 100% brasileiros, também decidiram se internacionalizar, de modo que hoje só temos Brasília e Tiradentes como as grandes vitrines exclusivamente nacionais para o nosso cinema. Não é saudável que elas entrem em competição pelos mesmos tipos de filmes.
Na minha forma de pensar, Brasília precisa resgatar sua vocação de exibir grandes filmes polêmicos e políticos, e abrir mão de um excesso de experimentalismo (muitas vezes juvenil) que cabe melhor em Tiradentes. O Festival de Brasília deve retomar suas raízes dentro do espírito contestatório de seu fundador, Paulo Emílio Salles Gomes, e transformar todos os seus espaços em palcos de discussões, mais que cinematográficas, sociais e políticas. É preciso resgatar o DNA do evento.
É preciso que os grandes festivais do Brasil voltem a demonstrar força suficiente para mobilizar o mercado cinematográfico em particular e a população em geral no sentido da revalorização do nosso cinema. Sob pena de acontecer exatamente o que aconteceu esta semana: a notícia da indicação da indicação de “Hoje eu Não Quero Voltar Sozinho” para o decadente e patético prêmio Oscar receber da mídia milhares de vezes mais atenção que qualquer coisa que esteja acontecendo aqui no Festival de Brasília.
“Viver de frente para o mar, de costas pro Brasil, não vai fazer deste lugar um bom país”, já dizia a canção. E enquanto a imprensa e o público acharem que a indicação para a indicação do Oscar for mais importante do que a análise da nova safra do nosso cinema que se exibe aqui em Brasília, nosso futuro continuará o de babar ovo para tudo o que vem de fora, pelo simples fato de vir de fora. Como faziam nossos avós.
Celso Sabadin viajou a Brasília a convite da organização do evento.