Associação se propõe a financiar processos judiciais e a promover ações de conscientização para garantir a liberdade de expressão
Por Carla Lencastre, compartilhado de Projeto Colabora Tornavoz: associação de defesa jurídica de jornalistas é lançada durante o Festival 3i (Arte: Miréia Arruda)
Mais de cem ações ao mesmo tempo em minúsculas cidades espalhadas pelo interior do Brasil. Uma indenização que nunca chega por um tiro de bala de borracha no olho. Processos constantes de uma mesma pessoa ou entidade ao longo de anos. Estes são apenas alguns exemplos de desafios jurídicos que jornalistas podem enfrentar durante o exercício da profissão. Histórias contadas por seus protagonistas no lançamento da associação Tornavoz durante a edição 2022 do Festival 3i de Jornalismo Inovador, Inspirador e Independente, promovido pela Ajor (Associação de Jornalismo Digital).
Além da defesa jurídica, a organização se dispõe a conseguir financiamento para quem não puder arcar com despesas de processos judiciais. Em parceria com a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e com apoio institucional do Google, a associação também pretende desenvolver e fortalecer a jurisprudência e combater ameaças à liberdade de expressão, participando de ações de conscientização diversas. Afinal, como a Tornavoz deixa claro na apresentação no site, “a definição dos contornos para o exercício seguro e livre das garantias relativas à expressão do pensamento, em suas diversas vertentes, é questão essencial para o funcionamento das instituições democráticas”. Para se der uma ideia da dimensão do problema no Brasil, em 2020 a organização não-governamental Repórteres sem Fronteiras identificou 580 ataques contra a mídia. A ONG classificou o ano como “sombrio”.
“A intenção do Tornavoz é preparar também os advogados para que eles saibam manter o que o jornalista disse. O jornalista precisa saber que existe uma rede de apoio. Não há nenhuma atitude jurídica que trave todas as ações. A única maneira é fazer trabalho de formiguinha e ir contestando e recorrendo em cada processo”, diz Taís Gasparian.
A perseguição jurídica sofrida pela jornalista Elvira Lobato depois de ter publicado na Folha de S. Paulo uma reportagem sobre o patrimônio dos executivos da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) mostra como pode ser o assédio jurídico.
“Levantei o nome de pessoas da cúpula da igreja que tivessem empresas. Ao longo de dois meses, identifiquei 32 bispos. Tentei ouvir a Iurd detalhando todas as informações”, conta Elvira. A Iurd disse que não ia se manifestar e a reportagem foi publicada em dezembro de 2007. Em janeiro do ano seguinte, a jornalista começou a receber notificações judiciais de juizados especiais em lugares de difícil acesso espalhados por todo o país:
“Eram pessoas pedindo reparação moral. Mas a reportagem não era sobre fé ou religiosidade. As ações tinham o mesmo texto, ainda fossem ações individuais. A igreja não pediu correção de nada. Não contestou nenhuma informação. Perdeu as 111 ações. Mas no final a Iurd ganhou porque tive que sair de campo, não era mais imparcial para cobrir telecomunicações”.
Enquanto Elvira teve que enfrentar o assédio judicial, o fotojornalista Alex Silveira foi vítima de violência física: levou tiro no olho de bala de borracha disparada por policial militar enquanto cobria manifestação de professores na Avenida Paulista. Na época, ele trabalhava no jornal Agora, do Grupo Folha. Alex ficou com apenas 10% da visão e o processo se arrasta há 21 anos. O fotojornalista chegou a ser julgado culpado por estar trabalhando na manifestação. Ganhou no Supremo Tribunal Federal, mas até hoje não foi indenizado:
“Se eu não tivesse o respaldo de uma empresa, um backup jurídico, não teria conseguido levar o processo adiante. A polícia me feriu, mas a morosidade da justiça é uma tortura”.
O jornalista Juca Kfouri encerrou os depoimentos do painel de lançamento do Tornavoz no Festival 3i contando um pouco como lida com processos constantes ao longo de décadas:
“Perdi muito do meu idealismo, mas você não pode se intimidar. Daí a importância de os jornalistas terem apoio jurídico para interromper o assédio judicial. Só não quebrei financeiramente porque as empresas para as quais trabalho têm equipes de advogados. Preferia não ter processo nenhum. Mas não depende de mim. O que depende de mim é fazer meu trabalho. O compromisso do jornalista com os fatos é inalienável”.