Por Bruna Martins, compartilhado de Projeto Colabora –
No centenário de Clarice Lispector, conto da escritora escrito 70 anos atrás se aproxima de episódios vividos por duas meninas da Zona Oeste do Rio
Era uma manhã ainda mais fria e escura que as outras, ela estremeceu no suéter. A branca nebulosidade deixava o fim da rua invisível. Tudo estava algodoado, não se ouviu sequer o ruído de algum ônibus que passasse pela avenida. Foi andando para o imprevisível da rua. As casas dormiam nas portas fechadas.
Luiza (nome fictício, pelas mais óbvias razões), 21 anos, lembra que quando era adolecente costumava ir a uma lan house a poucos minutos de sua casa jogar videogame. Era conhecida do gerente e de alguns frequentadores. Geralmente ia sozinha porque sua família não via perigo na caminhada até lugar tão próximo. Era um dia ensolarado de 2012 quando Luiza, aos 13 anos, saiu de casa para se divertir.
Ana (nome também fictício), 17, irmã de Luiza, estava em casa com seu irmão mais velho e sobrinha. Eles decidiram comer pizza e ela foi a encarregada de ir ao mercado mais próximo, a cinco minutos de sua casa, comprar refrigerantes. Saiu por volta de 21h, mas a rua ainda estava movimentada, especialmente pelas pessoas nos bares.
Ela não estava sozinha. Com os olhos franzidos pela incredulidade no fim longínquo de sua rua, de dentro do vapor, viu dois homens. Dois rapazes vindo. Olhou ao redor como se pudesse ter errado de rua ou de cidade. Mas errara os minutos: saíra de casa antes que as estrelas e dois homens tivessem tempo de sumir.
Luiza gostava muito de jogar Grand Theft Auto, GTA. Usando um headphone cinza, estava completamente imersa com os sobressaltos do jogo: assaltos, tiros, músicas, brigas de rua, e não percebeu um rapaz mais velho a observando.
Já na volta e com a bebida na mão, Ana percebeu a aproximação de um carro. Dentro havia dois homens. Com o vidro já aberto e o veículo quase parado, o acompanhante chamou por ela.
O que se seguiu foram quatro mãos difíceis, foram quatro mãos que não sabiam o que queriam, quatro mãos erradas de quem não tinha vocação, quatro mãos que a tocaram tão inesperadamente que ela fez a coisa mais certa que poderia ter feito no mundo dos movimentos: ficou paralisada.
De repente uma mão passou por dentro dos cabelos de Luiza e forçou sua cabeça para frente. Sem entender a situação, ela se viu diante de um rapaz que, pressionando a cabeça dela, simulou uma cena de sexo oral, afirmando que um dia aquilo aconteceria entre eles. Com vergonha e assustada, a menina fugiu para casa, mas antes ouviu a bronca do gerente: “Você está maluco, garoto?”
Da janela do carro, o homem jogou beijos para Ana, compartilhando risadinhas com seu colega. Na reação instintiva, ela levantou a mão e mostrou o dedo do meio a ambos. Acostumado com os privilégios do gênero, ele pediu ao seu colega para acelerar o carro e ultrapassar a menina. À frente dela, apontou uma arma para fora do veículo e a encarou. Sozinha perto de tantas pessoas, Ana manteve passos firmes e apressados em direção a sua casa. “Queria que as pessoas tivessem me ajudado, mas elas, assim como eu, ficaram intimidadas por causa da arma”, desabafou.
Não foi a primeira experiência de assédio enfrentada pela menina. Aos 13 anos, Ana conta que estava na casa de sua tia se arrumando para a escola quando um homem, amigo da família mas desconhecido para ela, estava no quintal a observando trocar de roupa. “Eu estava vestindo o sutiã quando percebi ele me olhando; corri para o cômodo ao lado, mas ele ainda ficou bisbilhotando de lá”, explicou. “Era muito ingênua nessa época, pensei que ele não estava fazendo isso por maldade, mas fiquei muito mal nesse dia, lembro que fui para o banheiro chorar. Eu cresci com essas situações acontecendo”. Anos antes esse mesmo homem tinha dado um “tapinha” na sua bunda diante de familiares inertes.
Então saiu. Sem saber com que enchera o tempo, senão com passos e passos, chegou à escola com mais de duas horas de atraso. […] Foi para o lavatório. Onde diante do grande silêncio dos ladrilhos, gritou aguda, supersônica: Estou sozinha no mundo! Nunca ninguém vai me ajudar, nunca ninguém vai me amar! Estou sozinha no mundo!
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O último dia 10 marcou o centenário de nascimento da escritora brasileira (nascida na Ucrânia) Clarice Lispector. Entre os diversos contos que reforçam a atualidade de sua obra, “Preciosidade”, do livro “Laços de Família”, traz à tona a dimensão do assédio, mais precisamente, do assédio infantil (como mostram os trechos destacados no texto acima). Mais do que falar sobre mazela presente na alma da sociedade brasileira, a autora mergulha nas consequências das experiências de assédio, que transformam as mulheres, retirando delas, desde cedo, a preciosidade. O texto do conto casa tristemente com a vida real do Brasil. Apesar dos 70 anos de distância entre a ficção e as histórias de Ana e Luiza, medo, insegurança, solidão, amadurecimento precoce e falta de ajuda são traços comuns dos dois relatos.
O assédio do conto desvenda como uma adolescente de quase 16 anos enxerga insegura o mundo à sua volta. Apesar da inocência típica da idade, a menina conhece e sente as transformações tanto do seu próprio corpo quanto da forma como as pessoas passam a vê-la. Ana Cristina Chiara, Professora Associada de Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), explica que a jovem da ficção clariceana “passa por uma crise de autorreconhecimento por causa de uma avassaladora transformação corporal”. Essa mudança não só é percebida por ela como também pelas pessoas que a cercam, em especial os homens que com frequência causam desconforto, humilhação e violência às mulheres.
Como consequência disso, desde cedo as mulheres aprendem a construir estratégias de autopreservação. Para Claudia Nina, escritora e crítica literária, o conto é marcado por situações em que a protagonista se sente segura, como na sala de aula, em casa e lugares nos quais reconhece. Já a rua surge como lugar de batalha, de medos e incertezas na qual ela não possui controle e que marca uma relação paradoxal e simultânea de invisibilidade e de centro das atenções. “Vale pensar no quanto as mulheres enfrentam as escuridões da rua independentemente da idade. A protagonista do conto está o tempo todo vencendo etapas”, analisa.
Em 2019, mais de 17 mil crianças sofreram violência sexual segundo relatório do Disque 100. Desse número, 806 casos aconteceram na rua e 640 foram cometidos por um desconhecido, situação que remete tanto ao assédio enfrentado pela personagem clariceana quanto por Ana e Luiza. Para Sandra Erli de Azevedo, coordenadora do projeto “Bem Me Quer”, de Teresópolis, assédios sexuais do tipo são subnotificados, pela dificuldade de identificar o agressor e também devido ao desconhecimento das pessoas sobre o que de fato é o assédio. “É verdade que a maioria dos abusos sexuais acontece dentro de casa e o agressor é alguém próximo à criança, mas isso não é uma regra”, explica. “Esse crime faz parte da cultura machista presente na nossa sociedade. Os adultos, na grande maioria das vezes homens, buscam estabelecer uma posição de poder sobre as crianças por elas serem mais vulneráveis e fáceis de silenciar”.
O assédio, apesar de não ser um abuso recente, tem ganhado espaço na legislação somente nos últimos anos. Antes disso, o crime era visto como algo mais generalizado e só agora assumiu tipificações e penas mais específicas, como por exemplo, o crime de importunação sexual e da exposição da intimidade sexual. No Estatuto da Criança e do Adolescente, a abordagem do assédio passa quase despercebida, por estar enquadrada no abuso sexual.
Segundo Silvia Vieira, psicóloga e conciliadora da Vara da Família de Petrópolis, a grande dificuldade de recorrer à Justiça em casos de assédio está exatamente na falta de definição do crime. Ela reforça que esse abuso tem um elemento cultural que define a forma como crianças e adolescentes, além dos pais, irão reagir. “Não é muito comum, por exemplo, que famílias mais conservadoras falem sobre sexo, cuidado com o corpo e violência com os filhos. As crianças crescem sem conhecer a autoridade que possuem sobre si mesmas e como podem dizer não a abusos ou procurar ajuda”, sublinha. As duas especialistas destacam a importância da educação sexual para reduzir os casos de abuso, principalmente da desmistificação da estrutura patriarcal que condiciona mulheres e crianças à vulnerabilidade e objetificação.
O projeto “Bem me Quer”, de Teresópolis, atende crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, numa cooperação entre Conselho Tutelar, Ministério Público e Polícia Civil. Em 2017 a iniciativa foi selecionada pela Childhood Brasil como uma das seis experiências de atendimento integrado às vítimas de abuso infantil, assim como o Centro de Atendimento ao Adolescente e à Criança (RJ), o Centro 18 de Maio (DF), o Centro de Referência em Atendimento Infanto-Juvenil (RS), Pro Paz Integrado Criança e Adolescente (PA) e o Centro Integrado de Vitória da Conquista (BA).