Filho de boi

Compartilhe:

E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos leva novamente ao cinema, com texto e uma carta ao menino João, 14 anos, protagonista de “Filho de Boi”.

“Caro Editor, assisti no fim de semana ao filme “Filho de boi” (Dir. Haroldo Borges, 2020) no streaming do Sesc Digital. Imperdível, meu editor favorito, imperdível. Entre os muitos motivos, é um filme cujo protagonista tem catorze anos, a idade do meu filho e do menino que tirou a própria vida em São Paulo por não aguentar mais o bullying que sofria em sala de aula. Sabe como é que é, não tem vida fácil gente como ele, bolsista, além de gay, em uma escola de gente rica com mensalidade de 4 mil e quinhentos reais (tal quantia tem que ser escrita por extenso), uma tal de Bandeirante, se não me engano. Tudo isso tem o poder de uma pequena bomba na minha pobre cabecita de cabelos brancos. Um domingo só não basta.





“Filho de boi” foi gravado no sertão da Bahia com aquela vegetação repleta de galhos retorcidos, de traços de secura, de pouco pasto e alguns currais etc. Eu gostaria de perguntar ao diretor se ele optou por filmar pelas frestas, como se as pessoas estivessem quase que literalmente encurraladas.


E coincidentemente é um filme de circo. Eu, que escrevi uma pecinha sobre circo, me senti ali representado, como se eu tivesse feito um bom trabalho com meu livro. Imagine que até foto com importância na trama o filme tem. Que loucura. O circo tem a errância como moto-contínuo. O circo é o plano aberto, é a vastidão, é a estrada afora.


É um filme sobre um menino tímido de poucas palavras e sobre um Brasil profundo sobre o qual pouco se fala ou se vê: é um rincão do país que a gente só vê de passagem pelas frestas. Mas é um Brasil muito brasileiro, muito enraizado. A pele morena das pessoas, a simplicidade, a beleza brejeira, a simplicidade no vestir, a frouxidão no riso que é contagiante.


Com Lula, o Brasil se empenha outra vez em cuidar dos seus meninos de catorze anos. O fato de Lula estar ali faz a diferença. Não é pinçando um menino ou outro, não, como o projeto que contemplou o menino pobre da periferia com uma bolsa integral em uma das melhores instituições de ensino do país, esquecendo-se de combinar com os outros meninos que bullying é coisa feia que não se deve fazer.


Enfim, que esta moçada tenha condições de irem mais longe que a gente. Se joguem, moçada.
Por isso escrevi esta carta para o menino-ator que se chama João, o menino passarinho. Se eu tivesse a voz de Milton Nascimento, eu faria uma canção para ele.

Vamos lá!

Carta aberta para João Pedro Dias
João, João:
Eu gostaria de te escrever pra dizer que torci por você no filme. Que entendo muito a sua falta, a sua angústia. Que você no filme é um menino de poucas palavras.


Você, João, é a cara do Brasil. Você e aqueles meninos todos, os figurantes todos. O ator anão é a cara do Brasil. Vivo. Morto. Morto. Vivo. No filme, os meninos te querem mal, te pisam, mangam de ti, mas é no filme, João, é no filme apenas. Vocês devem ter dado boas risadas juntos nos intervalos das gravações.


João, João, eu já escrevi uma história sobre dois palhaços que não tinham onde cairem mortos. Que coincidência, João. A vida é assim mesmo, é como olhar por debaixo da saia do picadeiro antes do show começar. Você foi escolhido por ser o mais tímido, o mais suscetível aos encantos, o mais crédulo.

Eu falo da personagem, João, mas eu não sei mais quem é quem. Thiago Mariz, o menino-ator do filme “Mutum”, virou veterinário. Posso provar, falo com ele. E você, João, o que você vai ser? Veterinário também? Tem tanto bicho no mundo precisando de um bom veterinário. E se for de outro modo que assim seja. Digo isso porque você tem uma vida para o alto e avante além da do filme. Você é um João possível.


Sabe que eu gostei de você ter duas figuras paternas no filme? De você ter pai e ter o Salsicha? E do Salsicha ser bicha? Pai é quem ensina a gente, não é mesmo? Então você tem dois pais, duas figuras paternas. O seu pai é o melhor sanfoneiro da cidade. João, eu tenho um filho da sua idade, João. Ele também é quieto, ele também é profundo.


João, João. Chegarão os dias dos amores, dos infortúnios, das pequenas alegrias. Mas, por enquanto, a árvore está cheia de maritacas. É o que eu vejo pelas frestas.
Se joga,
Cícero”

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019), Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

O Bem Blogado precisa de você para melhor informar você

Há sete anos, diariamente, levamos até você as mais importantes notícias e análises sobre os principais acontecimentos.

Recentemente, reestruturamos nosso layout a fim de facilitar a leitura e o entendimento dos textos apresentados.
Para dar continuidade e manter o site no ar, com qualidade e independência, dependemos do suporte financeiro de você, leitor, uma vez que os anúncios automáticos não cobrem nossos custos.
Para colaborar faça um PIX no valor que julgar justo.

Chave do Pix: bemblogado@gmail.com

Tags

Compartilhe:

Categorias