O longa francês, que venceu o Oscar de Melhor Roteiro Original, desanca com a misoginia presente na Justiça; produção entrou no catálogo da Amazon Primevideo
Por Marcelo Hailer, compartilhado de Fórum
Ao longo de sua carreira, o filósofo francês Michel Foucault se debruçou sobre as instituições modernas e a produção de discursos e saberes provenientes delas. Mais do que produzir discursos e saberes, há a construção de verdades e o impacto disso nas sociedades e claro, na vida dos sujeitos.
Uma das instituições modernas que mais recebeu atenção de Michel Foucault foi a Justiça, principalmente quando pensamos em sua obra mais conhecida, “Vigiar e Punir” (1975). Para o filósofo, antes do crime e do criminoso, há o texto da lei e a construção da verdade; há também a construção de biografias onde os sujeitos serão enquadrados a partir do texto da lei e de sua visão normativa da sociedade. Mas o que isso tem a ver com o filme que dá título a este texto?
Vamos por partes: “Anatomia de Uma Queda”, vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Original e dirigido pela cineasta Justine Triet, tem como ponto de partida a morte de Samuel (Samuel Theis), marido de Sandra (Sandra Hüller), que é encontrada pelo filho do casal, Daniel (Milo Machado). A partir daí, todo o trâmite jurídico-policial tem início e a mulher, que é uma escritora bem-sucedida, é tratada como principal suspeita. E é aqui que as coisas se complicam.
As biografias da Justiça e o controle dos corpos
Sandra passa então a enfrentar uma batalha jurídica e, desde o início, afirma que é inocente. Porém, aos olhos da Justiça, ela é culpada. Mas de que maneira a esfera judiciária vai construir tal culpa? Obviamente, o que passa a ser julgado é o modo de vida da escritora e não o crime em si.
O roteiro de “Anatomia de Uma Queda” trabalha de maneira magistral as teses em torno da ordem do discurso e das verdades produzidas pela Justiça a partir da vida daqueles que estão na mira dos tribunais.
Um exemplo – e que não vai estragar a sua experiência com o filme – é um dos depoimentos no julgamento de Sandra: uma jovem estudante a entrevista horas antes do acidente que tira a vida de Samuel. Ao promotor interessa colocar em perspectiva que a escritora estava alcoolizada e interessada sexualmente na entrevistadora. Ou seja, desqualificar a mulher e seu modo de vida para construir a figura/verdade sobre a “criminosa” que está em julgamento.
Misoginia, razão e desrazão
Uma das teses que será apresentada por Sandra e seu advogado é de que Samuel estava em uma profunda crise existencial e que, por causa disso, tirou a própria vida. Neste momento da obra, entra em cena novamente a maneira como a Justiça e o texto da lei enxergam mulheres, LGBT+, dependentes químicos e homens brancos heterossexuais: a mulher é apresentada como opressora (por ter sucesso em sua carreira) e tirânica por “não dar espaço para Samuel criar”; o homem como um “oprimido pelas tarefas domésticas”.
A operação desencadeada pelo promotor do caso da personagem Sandra é algo corriqueiro na Justiça ocidental: aos homens, a razão; às mulheres, a desrazão que, assim como o pecado original, são responsáveis pelos fracassos de terceiros (homens, é claro).
Calcado em um discurso e verdade profundamente misógino, o promotor não consegue conceber a imagem de um homem fracassado, que desistiu de tudo, que não deu conta do brilhantismo de sua companheira e, diante disso, tirou a própria vida. Essa concepção está no roteiro do filme, mas ela é cotidiana, dentro e fora dos tribunais.
A modernidade e a maneira como ela nunca conseguiu lidar com a desrazão – a não ser encarcerando e tirando de circulação – é o centro da trama de “Anatomia de Uma Queda”: a vida masculina, centro organizador da vida moderna, é um caminho linear de conquista e sucesso. O fracasso faz parte de todo o resto.
O controle dos corpos
Mas por que o fato de Sandra ter bebido alguns copos de vinho no dia da morte de seu marido torna-se tão importante para a promotoria? Quando trazemos para a discussão a ideia dos discursos e suas respectivas produções de verdades, nunca podemos esquecer que a maior parte da consequência de tal mecanismo de poder recai sobre mulheres, LGBT e pessoas negras, principalmente se estas forem artistas brilhantes e consumidoras de substâncias que alteram a sobriedade. A isso se chama controle dos corpos.
Não importa que o caso de Sandra esteja repleto de interpretações subjetivas, mas importa que ela é mulher bissexual, que consome álcool e outras drogas e que seja uma escritora brilhante. Como se vê, o crime torna-se secundário e o modo de vida da mulher na mira da Justiça é que se torna prioritário e, ao fim e ao cabo, pode fazê-la uma condenada. Ou seja, Sandra e outras vidas não masculinas e não heterossexuais já são suspeitas antes mesmo de se defenderem.
“Anatomia de Uma Queda” é um filme singular que consegue, em pouco mais de 2 horas de duração, ser um tratado sobre a modernidade, suas instituições, discursos, razão, desrazão e controle dos corpos.
O longa-metragem está disponível na Amazon Prime Video.