“Mais um episódio da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Neste capítulo, Cícero mostra seus dotes de crítico de cinema, analisando o filme “Noite de Alface”, de Zeca Ferreira.
Meu caro Washington, não me leve a mal se eu lhe escrevo assim como um samba-jazz do coração. Assisti ao “Noites de alface”. Fazia tempo que eu queria ver o filme, cuja locação é toda em Paquetá. Com seu casario, suas ruas de terra batida, seu mobiliário cheio de badulaques, seus quintais, suas luzes e sombras, a ilha se torna um local propício para um filme sobre recordação, não é mesmo?
O fato do filme ter sido lançado durante a pandemia, comprometeu sua circulação. Eu mesmo decidi não ir aos cinemas, tamanho era o receio.
Entretanto, agora, com a missão cumprida, eu posso bater no peito de leve e dizer todo orgulhoso: “Meninos, eu vi!”
Até Ecotáxi é capaz de suscitar boas memórias. Paquetá é um lugar no qual a palavra “quermesse” não soa provinciana, fora de moda. Lá é outra parada.
Sei lá, é o subúrbio universal. Lá ainda pode se dormir de pijamas e de portas semiabertas. E que dias e que noites!
Mil vivas para o diretor e roteirista do filme, Zeca Ferreira.
Li certa vez que o filósofo Wittgenstein disse que, se quiséssemos falar da alma, deveríamos olhar para o corpo. É, o cara é meio materialista. Eu ainda não o li na íntegra, somente um de seus comentadores. Mas a sentença dele cabe como uma luva de pelica em relação ao filme, se descontarmos, é claro, a impropriedade de se usar luvas em calor como o que tem feito no verão.
Fala-se no filme da velhice com respeito e dignidade incomuns. Estou emocionado até agora, alguma coisa me bateu fundo e, creio, não é pedra nos rins, que tanto têm afligido o paquetaense-banguense Maurinho.
Acho que o que me bateu fundo foram os silêncios. A câmera fica um tempo a mais a fixar os objetos, como se abrisse a porta para a luz entrar. Isso é a cara da ilha.
De fato, para mim, o que pode vir a parecer encanto para alguns, em especial para quem nunca a conheceu, a ilha tem momentos que nos proporcionam tamanha beleza, como se o tempo fosse um beija-flor.
Estão soberbos Marieta Severo e Everaldo Pontes. E olha que ela fez durante muito tempo papel de dona de casa de subúrbio na tevê. Foram anos de exposição, não é mesmo? Mas basta ela falar “Estou cansada pra burro!” para se perceber que se está diante de uma atriz monstruosa. É o tal do espírito no corpo do filósofo.
Ela está cansada, sua alma também. Ela fala que seus braços estão flácidos. E ele tem sotaque nortista ou é impressão minha? Seja como for, ele defende com méritos sua personagem. Esse homem que parece ser de vidro de tão protegido que é. Esse homem que não é capaz de trocar uma lâmpada direito.
Em algum trecho de “When I am sixty-four”, canção dos Beatles, o eu-lírico diz, para persuadir a pessoa amada (Will you still need me / will you feed me?), que é bom ter alguém como ele por perto no caso de haver necessidade de se trocar uma lâmpada. Esse tempo chegou e foi ultrapassado no filme.
Como lhe falei, jazz do coração. Jazz, jasmim. Um sopro suave de melancolia que vai longe, penetra as narinas, mordisca a gente, que fica pensando na vida, cheio de cismas, de lembranças.
Os coadjuvantes também não fizeram feio. Reconheci-os de algumas novelas da Rede Globo de tempos idos. E os figurantes são o máximo. É gente da ilha, não é mesmo?
O cinema, se não eterniza, faz com que as coisas cheguem até nós, sei lá, como uma meia-sola, como um meio sol.
O cinema é foda.
Enquanto eu via o filme, chamei a minha filha para ver o tio Maurinho em um filme e ela quase não acreditou em mim. Ele aparece fumando um cigarro na entrada da igreja.
A gente aprendeu de uma vez por todas que a câmera não engorda nem faz crescer. Pelo menos em planos abertos, é a gente mesmo que aparece: a câmera é fiel como um Deus. E aquele ali é o Maurinho, o professor.
Gostei do fato do roteiro retornar à cena inicial. Dá um ar de explicação, mesmo que tudo depois se desmanche no ar com em um sonho.
Para mim, Ada (Marieta Severo) está morta mas vive nas recordações de Otto (Everaldo Pontes). Mas não tenho muita certeza, não. Parece até que tomei um chazinho de alface com umas pílulas para dormir bem batidinhas.
Se eu pudesse, eu perguntaria ao diretor: “As cenas de troca de lâmpada são simbólicas, não são? Você trabalhou bastante no filme o jogo de claro-escuro, não foi?” “Como é que é fazer um filme com um orçamento restrito?” O que se sente ao ver o filme pronto?” E faria outras indagações se ele assim me permitisse.
Pois é, tem espaço no roteiro até para mistério a ser desvendado, tipo filme noir. É legal e tudo, apesar de um tanto “far-fetched”. Mas diverte, não é mesmo? E cinema é diversão.
Aliás, o que ocorreu com a empregada ruiva, tão bonitinha? Por que tem tanta gente ruiva no filme? O carteiro que morreu, morreu porque era certinho demais, tipo relógio suíço?
O que ocorreu com o carteiro Aníbal? Será que voltou para a terapia? De vez em quando a gente bisbilhota sem motivo, não é?
São legais os nomes das personagens: Ada, Otto, Aydan, Iolanda, Aníbal. Nomes aos quais não estamos mais acostumados. Nada contra o Enzo Gabriel, mas um Aníbal tem lá sua importância também.
Eu quero um Aníbal para chamar de Báu. Os diminutivos estão ou estavam na essência de nosso linguajar à brasileira.
A trilha sonora é linda. Reconheci o Brás e a Salmaso à primeira audição, temas de Otto e de Ada, respectivamente. São as vozes que acompanham os sonhos dos anjos, se é que anjos sonham. Mas às quermesses de Paquetá, se não forem bobos, eles devem ir.
E que luas! E que sóis!
Noites de Alface: quatro estrelas para cinco
Onde assistir: Sesc Digital (Plataforma online)“
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.