Fim da ‘saidinha’: “Queremos mesmo ressocialização?”, questiona pesquisadora

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Às portas de ser aprovada em definitivo pela Câmara, após aval do Senado, medida que põe fim às saídas temporárias de detentos tornou-se assunto central no país

Por Henrique Rodrigues, compartilhado de Fórum




Créditos: Wilson Dias/Agência Brasil

O Senado Federal aprovou há pouco mais de duas semana uma mudança na Lei de Execução Penal que colocará fim à chamada ‘saidinha’ de presos no país, uma forma de saída temporária, realizada em datas comemorativas específicas, à qual uma parte dos condenados brasileiros que estão nos presídios tem direito. A matéria precisa ir ainda para uma última votação na Câmara dos Deputados, onde deve passar com facilidade, para depois ir à sanção presidencial.

Numa sociedade em que cada vez mais os assuntos de segurança pública têm peso nas discussões cotidianas, o tema relacionado a essa medida que beneficia alguns apenados está no centro de um debate acalorado. Os diversos episódios em que presos, uma vez na rua porque foram agraciados com o tal benefício, cometem crimes violentos e bárbaros, servem de munição para uma significativa parcela da população que grita pela mudança e fim da ‘saidinha’. Do outro lado, uma intensa discussão sobre a real finalidade do sistema prisional, que deveria ser a de ressocializar os indivíduos que cometem crimes, também ganha intensidade.

Fórum entrevistou uma acadêmica especialista da área de segurança pública e de questões prisionais para tentar compreender os motivos pelos quais um assunto tão sério e vital está sendo tratado com tanta ‘emoção’ e ‘comoção’, em vez de abrir possibilidade para uma discussão séria e racional.

Mayara Gomes, pesquisadora do Grupo de estudos em Segurança, Violência e Justiça da Universidade Federal do ABC (SEVIJU-UFABC), começa explicando que tal benefício para alguns presos nada mais é do que o cumprimento de uma das premissas relacionadas à aplicação de penas no país: a de que aquele indivíduo será ressocializado para voltar ao convívio com o restante das pessoas.

“A pessoa que cumpre pena no Brasil, passa por um processo progressivo de reintegração à sociedade. É o formato adotado pela nossa legislação até então e tem o objetivo principal de que a ressocialização seja atingida. O processo de ressocialização é dever do Estado e por isso, o estado deve criar mecanismos de atender isso, seja atendendo direitos mínimos à pessoa presa (alimentação, água, condições salubres de confinamento etc.), quanto se envolver no processo de reintegração social. A “saidinha” seria parte deste processo progressivo, inclusive, na atual legislação a pessoa só sai se cumprir regras legais (período de pena cumprida, bom comportamento). Além disso, quem tem acesso ao benefício da “saidinha” é um universo muito pequeno de pessoas se comparado com o total dos indivíduos que estão presos no país, que cresce ano após ano e não qualquer perspectiva de melhora neste cenário. Outro fato é que segundo registro das próprias secretarias de administração penitenciária dos estados ou equivalentes, a esmagadora maioria dos presos volta desse período em que fica em liberdade. Retirar esse direito é primeiro romper com a lógica da pena no país, que é de ressocializar. Ressocializar, sem que que a pessoa possa conviver novamente em sociedade, é, por si só, uma contradição. Superando a visão abstrata, que é própria da lei, temos um contexto fático que a maioria das pessoas beneficiadas por essa medida, as cumpre, ou seja, em termos de evidências, o saldo é positivo. Outro ponto é que o direito a “saidinha” não é um benefício apenas para a pessoa que cumpre pena, mas também para seus familiares, como filhos, esposas e esposos, uma vez que os processos de reintegração social também contam com a família”, começou explicando Mayara.

Para a especialista, há algo que se aproximaria de uma hipocrisia quando praticamente toda a sociedade fala no direito de um criminoso se reintegrar ao convívio coletivo e não voltar a delinquir. As condições das prisões brasileiras, a privação de direitos mínimos e, agora, o fim de um direito fundamental para a reintegração social faz a acadêmica perguntar o que de fato queremos.

“Qual incentivo é dado à pessoa que cumpre pena? Qual interesse haverá para que ela se comprometa com a ordem na prisão, que tenha bom comportamento, se no fim do dia isso não serve para nada… Na atual configuração, as prisões possuem condições subumanas, falta tudo, a violação de direitos é constante. Então, a pergunta que fica é de que forma suprimir um direito da população presa pode ser benéfica para o sistema como um todo? Queremos mesmo a ressocialização de alguém?”, questionou.

Mayara foi perguntada sobre como a “comunicação” sobre o tema com as pessoas poderia elevar o nível do debate, evitando generalizações e distorções da realidade. Ela lembra que, em outras áreas, como a saúde e a educação, o assunto é tratado de outra maneira, mas nas questões prisionais prevalece sempre um senso comum que prejudica a análise séria e realista, sem deixar de reconhecer, claro, que as pessoas têm medo da violência e que ele se tornou aspecto essencial na vida diária do povo.

“Acho que há formas de comunicar as pessoas. A questão da segurança pública e política prisional é complexa, exerce um papel cada vez mais central na vida das pessoas, com reações legítimas, porém, por vezes, mais individualizadas e emocionais. Há formas de esclarecer e informar se quisermos colocar para a população que a prisão é um fato em nossa vida. E que precisamos discutir como qualquer outra política pública. Afinal, a política penitenciária é uma ação estatal como qualquer outra. Os exemplos da recém história nacional poderiam ser ilustrativos nesse sentido. A prisão do presidente Lula, depois considerada ilegal, poderia servir para discutirmos, o erro judiciário, melhores condições nas prisões, presunção de inocência. O mesmo para as pessoas que estão presas por conta dos atos antidemocráticos de 08 de janeiro. Elas não poderão ser beneficiadas com a “saidinha”? Ou seja, há formas de informar a população e fazer disso um debate público, se houver interesse político, midiático…  A prisão não vai resolver todos os problemas sociais, não vai dar conta de todos os desafios de uma sociedade desigual e violenta como a nossa… Porém, é preciso entender que a prisão é um fato social, que é também uma política pública e que precisa de um debate sério, assim como levamos em consideração na hora de discutir políticas de saúde, educação… A “saidinha”, certamente não vai trazer uma sensação maior de segurança ou menos exposição à violência”, seguiu explicando a estudiosa.

A integrante do SEVIJU-UFABC relembra ainda que a ‘saidinha’ nunca foi uma medida generalizada e banal e que, tratá-la dessa forma, impedindo a ressocialização de muitos apenados, só favorece as diferentes facções do crime organizado no país.

“Como disse, um universo pequeno de presos usufrui desse benefício. Além disso, já existem regras legais para acessar esse benefício. Seguramente, há muitas pessoas que poderia ser beneficiárias da “saidinha” e sequer acessam a esse direito, pois o acesso à Justiça para fruição desse tipo de direito, e de outros, também é deficitário. Criar mais condições para as pessoas ficarem presas em condições péssimas é distorcer qualquer pressuposto de ressocialização, e mais, fortalece o discurso das facções criminosas de que o Estado oprime as pessoas em situação de prisão”, acrescentou.

“As mudanças legislativas ocorridas nos últimos anos têm buscado piorar e restringir direitos das pessoas presas, logo, as pessoas que sofrem mais diretamente com essas restrições são as pessoas presas. Por consequência, suas famílias também são afetadas, pois, neste caso, a “saidinha” não seria viabilizada para contato com a família ou convívio social. No mais, se limitaria a estudo, trabalho e educação, que são bastante importantes, mas é, novamente, um número pequeno de pessoas presas que consegue acessar oportunidades de trabalho e educação durante o cumprimento de pena”, disse ainda sobre a tendência de reduzir ainda mais os direitos básicos da população carcerária.

Por fim, a pesquisadora volta a questionar se, de fato, alguém quer incentivar o cumprimento de pena de maneira adequada pelos condenados, para que eles tenham um processo de ressocialização eficiente ao ganharem as ruas novamente, assinalando que o próprio surgimento do crime organizado no Brasil da forma como conhecemos hoje é fruto de um sistema prisional falido e repleto de problemas.

“Retomo, qual estímulo existe para cumprir pena? Qual política tem sido implementada nas prisões para reintegrar as pessoas? As facções criminosas têm sua origem nas prisões, valendo-se em boa medida do discurso de que o Estado oprime, com violência e falta de atendimento de condições mínimas de existência. Estou falando de falta de espaço físico, de falta de água, de falta de comida, de condições básicas… Restringir mais um direito serviria para alimentar ainda mais essa narrativa. Somos um país com um número enorme de pessoas em situação de prisão e isso, de modo algum, significou a sensação de mais segurança. Então, se continuamos com medidas populistas, contrárias às evidências que já mencionei, vamos continuar apoiando um modelo equivocado, ou precisamos assumir como sociedade, e aí principalmente, o sistema de Justiça e a elite que veem a prisão como algo que só serve para deixar à própria sorte pobres e pretos, que são a maioria das pessoas que estão nas prisões”, finalizou Mayara.

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