Assim como anunciado em locais como Dinamarca, França e Reino Unido, várias cidades e Estados brasileiros começaram recentemente a relaxar todas as medidas restritivas contra a covid-19.
Por André Biernath, compartilhado de BBC News Brasil em Londres
Em alguns municípios, como no Rio de Janeiro, o uso de máscaras não é mais obrigatório em locais abertos ou fechados desde o dia 8 de março.
Medidas semelhantes foram implementadas recentemente em Estados como Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Maranhão, além do Distrito Federal.
Em outros locais, como Minas Gerais e Rio de Janeiro, o governo estadual delegou às prefeituras a decisão de manter ou não o uso desse equipamento de proteção.
A ideia dos gestores é substituir aos poucos as obrigações da lei por recomendações e orientações.
Em postagens feitas nas redes sociais, o presidente Jair Bolsonaro também declarou que “o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, estuda rebaixar para endemia a atual situação da covid-19 no Brasil”.
Essas modificações nas políticas públicas acontecem na esteira da onda da variante ômicron, que provocou um recorde de novos casos da doença nas primeiras semanas de 2022 no Brasil, mas arrefeceu e está em queda livre desde a segunda quinzena de fevereiro.
Entenda a seguir o atual estágio da pandemia no Brasil, como os especialistas interpretam esse momento e se as medidas que começam a ser tomadas fazem sentido ou não.
Tsunami de infecções
Detectada pela primeira vez em novembro de 2021, a variante ômicron carrega uma série de mutações que deixaram o vírus ainda mais infeccioso.
O resultado disso foi observado na prática: em vários países, o número de novos casos superou de longe todos os recordes observados até então.
O Brasil, por exemplo, registrou uma média móvel de 189,5 mil infecções no dia 3 de fevereiro de 2022, de acordo com o painel sobre covid-19 do Conselho Nacional de Secretários da Saúde, o Conass.
Até então, o limite máximo que esse número havia alcançado era 77,3 mil, em 23 de junho de 2021.
Ou seja: a onda da ômicron levou a um pico de casos 2,4 vezes maior em comparação com o recorde anterior.
O epidemiologista Pedro Hallal, professor da Universidade Federal de Pelotas, destaca que essa linhagem cumpriu à risca todas as projeções que foram feitas sobre ela logo no início.
“Quando a ômicron apareceu, surgiram informações de que ela teria uma capacidade de transmissão absurda, conseguiria infectar vacinados, levaria de forma geral a quadros menos agressivos e provocaria uma onda rápida, que subiria e diminuiria em poucas semanas”, lista.
“E foi exatamente isso o que vimos nesses meses”, completa.
Felizmente, quando observamos a mortalidade, o tamanho do estrago da ômicron foi significativamente menor. A média móvel de mortes bateu em 951 no dia 11 de fevereiro de 2022 — em 12 de abril do ano passado, o país chegou a registrar uma média de 3.124 óbitos.
Fato é que, passada a pior fase da onda da variante ômicron, os números voltaram a despencar.
Assim como observado em outras partes do mundo, a detecção de novos casos de covid está em queda desde o início de fevereiro: a média móvel do Brasil passou de 189,5 mil em 3/2 para 40,2 mil em 7/3.
Mas será que essa melhora nas estatísticas já é suficiente para relaxar de vez e decretar o fim da pandemia?
‘Um tiro no pé’
Embora reconheçam que estamos numa situação relativamente melhor, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil entendem que ainda é cedo demais para considerar a covid-19 como uma doença endêmica no país.
“Endemia significa que determinada enfermidade está presente numa região de forma permanente, com números constantes por vários anos”, explica o cientista de dados Domingos Alves, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP).
O pesquisador entende que, entre as subidas e as quedas das curvas da atual pandemia, ainda não chegamos num platô por um tempo prolongado, que indique um nível de transmissão mais estável do coronavírus no longo prazo.
É isso o que acontece com outras enfermidades que são consideradas endêmicas, como a dengue, a tuberculose e aids.
“Essas medidas que estão sendo anunciadas no Brasil e no resto do mundo, portanto, estão alinhadas primeiramente a uma retomada econômica, mas não seguem necessariamente a saúde pública”, avalia Alves.
“São tentativas de mostrar à população que as coisas melhoraram o suficiente para voltar à normalidade. E isso pode se transformar num tiro no pé”, critica.
O professor lembra de outras ocasiões nos últimos dois anos em que as previsões otimistas sobre os rumos da pandemia se mostraram absolutamente equivocadas.
“Falou-se, por exemplo, que atingiríamos a imunidade de rebanho só com a infecção natural pelo coronavírus. E, mesmo com a vacinação, ainda não chegamos nem perto desse cenário”, diz.
Para o advogado e professor Carlos Lula, presidente do Conass, o relaxamento total das medidas é, no mínimo, precipitado.
“Assim como tivemos a corrida para ver quem conseguia vacinar antes, temos agora uma disputa para quem vai decretar primeiro o fim da pandemia, com o objetivo de colher os frutos políticos disso”, entende.
“E, por mais que exista muita vontade política por trás desses anúncios, quem deve pautar essa decisão é a Organização Mundial da Saúde (OMS). É ela que determina quando a pandemia vai terminar, assim como aconteceu em outros episódios do passado”, complementa Lula, que também é secretário de Saúde do Maranhão.
Já Hallal entende que é preciso modular as medidas de acordo com cada momento — entre obrigar e liberar o uso de máscaras há uma série de políticas públicas que podem ser adotadas a depender do local, das características individuais, do número de vacinas aplicadas…
“Pode ser que, em ambientes abertos, não seja mais necessário usar máscara. Agora, num local fechado com pessoas não vacinadas ou mais vulneráveis, talvez seja uma lei que ainda precise vigorar por um tempo”, explica.
“O que não dá pra entender é a falta de critérios dos responsáveis pelas políticas públicas no Brasil. Em outubro de 2021, antes de a ômicron aparecer, tínhamos uma média diária de 200 óbitos e havia obrigação de usar máscaras até em ambientes abertos. Agora estamos com 400 a 500 mortes por dia e eles querem tirar esse equipamento de proteção”, continua o epidemiologista.
“O caminho é esse: conforme os números melhoram, aliviaremos as restrições e não será mais obrigatório usar máscara. Só precisamos ter cuidado com as precipitações”, completa.
Mas, se ainda não chegamos lá, o que é preciso acontecer para que a covid vire realmente uma endemia?
O fim da crise sanitária
Por ora, não existe uma definição exata entre as instituições ou os especialistas de quais são os requisitos mínimos para que a covid deixe de ser considerada uma pandemia.
Numa série de postagens no Twitter, o médico sanitarista Nésio Fernandes, que é secretário de Saúde do Espírito Santo e vice-presidente do Conass, propôs alguns critérios para determinar essa transição.
Na visão dele, precisaríamos ter pelo menos 90 a 120 dias com baixa incidência de novos casos de covid, sem o surgimento de novas variantes de preocupação, uma cobertura vacinal acima de 90% com o esquema completo, um controle na taxa de óbitos, a incorporação de medicamentos ao sistema público de saúde, a manutenção da capacidade de assistência em saúde dos Estados e um consenso internacional com organismos multilaterais (como a OMS).
“Lutamos pelo fim da pandemia e ela acabará, não temos dúvidas. [No momento certo,] será reconhecido o comportamento endêmico real e viveremos a nossa normalidade pós-pandêmica”, escreveu.
Se considerarmos o cenário atual da pandemia, o Brasil parece estar na direção desta nova realidade, mas o país ainda não alcançou a maioria desses requisitos listados por Fernandes.
A incidência de novos casos da doença, por exemplo, está em descenso, mas não se estabilizou por um tempo prolongado, como três ou quatro meses, para ser considerada baixa ou estável.
Nenhum medicamento aprovado contra a covid-19, como os anticorpos monoclonais e os antivirais, foi incorporado no Sistema Único de Saúde (SUS). Muitos deles já estão amplamente disponíveis em outras partes do mundo.
Para completar, embora a taxa de vacinação do Brasil no geral seja boa, existem alguns Estados com números bem preocupantes, apontam os especialistas.
“Tocantins, Amazonas, Maranhão e Acre têm menos de 60% da população vacinada com duas doses. Em Roraima e no Amapá, essa porcentagem ainda não chegou aos 50%”, calcula Alves.
“E isso sem contar que apenas 31% dos brasileiros tomaram a terceira dose, o que é um número bem baixo”, chama a atenção.
A endemia não é o fim
Um outro aspecto que os especialistas fazem questão de esclarecer é que, mesmo quando a covid-19 se tornar uma endemia, isso não significará que estaremos 100% livres da doença.
“O que muda num cenário endêmico é a postura do sistema de saúde e dos cidadãos. Do ponto de vista individual, é possível relaxar um pouco, pois falamos de doenças com uma incidência menor e para as quais existem formas de prevenção e tratamento”, explica o sanitarista Christovam Barcellos, da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz).
Do ponto de vista prático, pode ser que o uso de máscaras continue a ser recomendado em alguns lugares, como no transporte público e nos hospitais. Nessa mesma linha, hábitos como lavar as mãos constantemente e ficar em casa quando aparecerem sintomas típicos de infecção respiratória se incorporarão à rotina de todos.
No sentido oposto, o cuidado maior de alguns grupos vulneráveis, como idosos e imunossuprimidos, tende a ser maior nesse novo cenário. E medidas muito rígidas, como o lockdown e o fechamento total de estabelecimentos e escolas deixam de fazer qualquer sentido.
“Já o sistema de saúde incorpora aquela doença na sua rotina e possui as ferramentas necessárias para lidar caso a caso”, diferencia o especialista, que também é membro do Observatório Covid-19 da FioCruz.
“Ou seja: não há nenhum relaxamento para o sistema de saúde quando a covid virar uma endemia. Precisaremos, na verdade, de mais recursos para absorver essa demanda e cuidar das pessoas”, completa.
Hallal concorda. “Doenças que estão nesse estágio também demandam controle constante das autoridades.”
“Não é porque entraremos numa endemia que não vamos nos preocupar nunca mais com a covid”, finaliza o epidemiologista.