Por Marcella Fernandes, compartilhado de Huffpost Brasil –
Sem liderança do Ministério da Saúde, efetividade da vacina contra covid-19 será limitada, mesmo com esforços dos governadores.
Ainda que o STF (Supremo Tribunal Federal) decida pela obrigatoriedade de uma vacina contra covid-19 e pela autonomia dos estados para desenvolverem seus planos de vacinação, o financiamento, a logística e o aval da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) são entraves para saída estudada pelos governadores. Sem liderança do Ministério da Saúde, responsável pelo Programa Nacional de Imunização (PNI), uma solução para alcançar a imunidade coletiva no Brasil se mostra menos promissora.
O plano B seria uma forma de contornar a disputa política entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria, ambos de olho nas eleições presidenciais de 2022.
Como o SUS (Sistema Único de Saúde) é pensado de forma nacional, há alguns empecilhos para essa alternativa. Em geral, cabe ao Ministério da Saúde, dentro do PNI, definir a estratégia de vacinação, o que inclui decisões sobre grupos prioritários, número de doses e o calendário de distribuição em todos os estados, em coordenação com as secretarias estaduais de Saúde.
Diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Renato Kfouri, lembra que “o Programa Nacional de Imunização sempre funcionou em nível federal”. “O Ministério da Saúde que compra, distribui, determina o calendário e hierarquiza o fornecimento de vacinas para o país”, resume ao HuffPost.
De acordo com o sanitarista, a pasta deve assumir o protagonismo dessa discussão até porque é provável que seja adotado mais de um tipo de imunizante — tanto devido ao resultado dos estudos, de acordo com grupos populacionais, quanto por questões da cadeia de fornecimento. “Se chegarem 30 milhões de doses de uma vacina, 10 milhões de outra e 20 milhões de outra, teremos que definir que população – de acordo com os dados de cada vacina – vai receber qual delas, em que ordem de prioridade”, afirma Kfouri.
O especialista destaca que nenhuma vacina teve eficácia comprovada ainda e que há cenários diferentes de compra. “Fica difícil prever até porque a gente não sabe se as vacinas vão ser eficazes. Estamos falando sobre hipóteses de desfechos [de estudos]: vacinas que podem se mostrar eficazes em idosos ou que são melhores em crianças. Definir estratégia sem conhecer o produto é absolutamente um exercício de adivinhação, de futurologia”, completa.
Definir estratégia [de vacinação] sem conhecer o produto é absolutamente um exercício de adivinhação, de futurologia.Renato Kfouri, da Sociedade Brasileira de Imunizações
O governo federal já fechou outras duas estratégias de acesso a imunizantes. O acordo com a farmacêutica britânica AstraZeneca, responsável pelo produto desenvolvido pela Universidade de Oxford, prevê acesso a 100,4 milhões de doses para o primeiro semestre e insumos que permitirão a produção de outras 110 milhões de doses no segundo semestre de 2021, por Bio-Manguinhos, laboratório da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).
Já a Covax-Facility garantiria outras 42 milhões de doses. A iniciativa global funciona como uma coalizão em que os países participantes dividem o risco de investimento tecnológico e apostam em várias iniciativas de imunizantes. Em troca, podem ter acesso à vacina que se provar segura e eficaz.
Entre as candidatas à vacina na Covax, está a desenvolvida pela Universidade de Oxford e outras 8. O grupo não inclui a produzida pela Sinovac. No caso tanto do imunizante chinês quanto do britânico, devem ser necessárias duas doses, de acordo com os resultados dos testes até o momento.
Nos bastidores, governadores acreditam que o Ministério da Saúde irá ceder e incorporar a CoronaVac ao PNI, se ela obtiver registro da Anvisa. Isso só será possível se houver comprovação científica de sua segurança e eficácia.
O acordo do governo federal com a AstraZeneca não permite que ministério feche outro compromisso de transferência tecnológica. Devido a essa restrição, a pasta só pode incluir a vacina desenvolvida pelo Butantan ao PNI após o aval da Anvisa.
O impasse sobre a campanha de vacinação será discutido pela comissão tripartite – que inclui representantes do Ministério da Saúde, de secretarias de saúde estaduais e municipais – em reunião marcada para esta quinta-feira (29).
Autorização da Anvisa para vacina
Há uma desconfiança de que a Anvisa possa inviabilizar ou atrasar o registro da CoronaVac por pressão política. Ainda que legalmente ela tenha autonomia, os diretores são indicados pelo presidente da República. O Senado aprovou na última semana, 4 dos 5 nomes que compõem a diretoria.
Em momentos mais extremos da crise sanitária, como quando Bolsonaro queria mudar a bula da cloroquina de forma ilegal, o presidente da agência, Antonio Barra Torres, não cedeu. Por outro lado, na semana passada, o diretor-geral do Butantan, Dimas Covas, afirmou que a Anvisa atrasou a importação da matéria-prima para produção da CoronaVac. A liberação só foi concedida nesta quarta-feira (28).
A lei que estabelece o estado de emergência de saúde pública devido à pandemia permite “a importação e distribuição de quaisquer materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de saúde sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa considerados essenciais para auxiliar no combate à pandemia do coronavírus”, desde que registrado em pelo menos uma das seguintes agências internacionais: Food and Drugs Administration (Estados Unidos), European Medicines Agency (União Europeia), Pharmaceuticals and Medical Devices Agency (Japão) e National Medical Products Administration (China).
De acordo com o pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário da USP (Universidade de São Paulo) Daniel Dourado, para fins de registro, as vacinas são medicamentos imunobiológicos, porém essa autorização excepcional só poderia ser concedida pela própria Anvisa. “Não é possível comprar e distribuir vacina sem aval da Anvisa. Sem registro sim, mas precisaria de uma autorização excepcional, que só a própria Anvisa pode dar”, explica ao HuffPost.
Como financiar a vacina?
As 46 milhões de doses da CoronaVac seriam viabilizadas por meio de uma medida provisória (MP) para disponibilizar crédito orçamentário de R$ 1,9 bilhão, de acordo com o anúncio feito na semana passada. Com o recuo do governo federal, ainda não se sabe como a iniciativa seria financiada.
Uma possibilidade seria alterar a MP 994, que prevê R$ 1,9 bilhão para compra da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford. Uma emenda do deputado Vinicius Poit (Novo-SP) prevê que R$ 997 milhões sejam destinados ao Butantan. Outra emenda do deputado Arnaldo Jardim (Cidadania-SP) estabelece R$ 500 milhões com o mesmo objetivo. As propostas, contudo, não têm apoio político no Congresso.
A vacina do Butantan é viável?
De acordo com a Secretaria de Saúde de São Paulo, os R$ 1,9 bilhão seriam para custear a compra das doses, os estudos clínicos e os processos envolvendo a transferência de tecnologia. Segundo a pasta, os R$ 80 milhões prometidos anteriormente pelo governo federal para construção de uma fábrica para produção da vacina, não foram liberados, mas R$ 97 milhões foram arrecadados com a iniciativa privada para essa função.
O acordo entre Butantan e Sinovac prevê a compra de 6 milhões de doses prontas do imunizante e importação de insumos para que outras 40 milhões sejam finalizadas no Brasil, até dezembro. Já para viabilizar todas as etapas de fabricação, é necessária a construção de uma fábrica própria, por questões de biossegurança. A conclusão da obra está prevista para 2022. Nesse meio tempo, não há previsão de acesso a doses adicionais.
Ainda que as primeiras doses cheguem ao Brasil na próxima semana, conforme anunciado pelo governador de São Paulo, são necessárias algumas etapas até que o imunizante esteja disponível nos postos de saúde. Para obter o registro na Anvisa, o Butantan precisa apresentar dados que comprovem a eficácia do produto. Dos 13 mil voluntários previstos para participar do ensaio clínico, 9 mil foram recrutados até o momento.
É necessário chegar ao mínimo de 61 casos confirmados de covid-19 nesse grupo para analisar dados de eficácia. Quando esse patamar de contaminados alcançado, os pesquisadores irão verificar quantos dos 61 voluntários receberam placebo e qual a resposta imunológica. O patamar mínimo é de 50%, de acordo com critérios anunciados pela OMS (Organização Mundial da Saúde).
Caso esse valor não seja alcançado neste grupo, o ensaio clínico segue para próxima etapa, para analisar a eficácia quando for atingido o marco de 150 casos confirmados entre os voluntários. De acordo com a Secretaria de Saúde de São Paulo, essas metas estão previstos no protocolo do ensaio clínico autorizado pela Anvisa e pela Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa).
A obrigatoriedade da vacina
O STF deve julgar 3 ações sobre vacinação. Uma delas, apresentada pela Rede Sustentabilidade, pede que o governo federal apresente um plano de vacinação. O relator, ministro Ricardo Lewandowski, pediu informações ao presidente da República, além de manifestação da Advocacia-Geral da União (AGU) e da Procuradoria-Geral da República (PGR).
O magistrado remeteu as outras duas ações ao plenário do Supremo. Ainda não há data para o julgamento. Em uma delas, o PDT pede que seja reconhecida a competência de estados e municípios para determinar a vacinação compulsória. Já o PTB pede que essa possibilidade, prevista na Lei federal 13.979/2020, sobre o estado de emergência em função da pandemia, seja declarada inconstitucional.
A lei desde ano prevê que as autoridades poderão adotar “vacinação e outras medidas profiláticas” e que esse tipo de medida é de responsabilidade dos “gestores locais de saúde”. A decisão de abril do STF, que definiu que os governos estaduais e municipais têm poder para determinar regras de isolamento, quarentena e restrição de transporte e trânsito em rodovias em razão da crise sanitária, também reforça esse entendimento.
Já a lei que regula o PNI, prevê que “cabe ao Ministério da Saúde a elaboração do Programa Nacional de Imunizações, que definirá as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório”e que “as vacinações obrigatórias serão praticadas de modo sistemático e gratuito pelos órgãos e entidades públicas, bem como pelas entidades privadas, subvencionadas pelos Governos Federal, Estaduais e Municipais, em todo o território nacional”.
Para o especialista em direito sanitário Daniel Dourado, ”os estados podem definir calendários e obrigatoriedade de vacinas”. Embora o PNI seja de responsabilidade do Ministério da Saúde, “o estado tem competência para legislar sobre os temas de interesse regional”.
No caso de São Paulo, o Código Sanitário do Estado prevê a regulamentação das vacinas obrigatórias por meio de norma técnica e uma lei local obriga a apresentação da caderneta de vacinação para matrícula em escolas. “O mecanismo para tornar obrigatória é o Estado incluir na lista dele e ter alguma lei que exija caderneta de vacina para algo”, afirma Dourado. Sem uma obrigatoriedade nacional, cada estado precisaria contar com essa previsão legal.
O Estatuto da Criança e do Adolesccente (ECA) também prevê que ”é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias” e o descumprimento resulta em multa para os pais ou responsáveis. A apresentação da caderneta de vacinação também é necessária para ter acesso ao Bolsa Família.
Ainda que os estados tenham capacidade legal para obrigar a vacinação e elaborar planos próprios, esse não é o caminho mais eficaz para alcançar a imunidade coletiva. ”Se chegamos a esse ponto, não é adequado porque você transforma numa condição assimétrica. Você vai ter bolsões de estados que não aderem [à vacinação]. A epidemia vai ser galopante”, afirmou ao HuffPost Brasil Flávio Guimarães Fonseca, pesquisador do CT Vacinas (Centro de Tecnologia de Vacinas) da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
De acordo com o virologista, “estados que transforma isso num movimento compulsório, vão ter taxas de cobertura maiores do que os que dependam de aderência voluntária”, o que poderá motivar inclusive o fechamento de fronteiras interestaduais. Sem uma campanha de imunização centralizada, o acesso à vacina dependerá tanto dos recursos financeiros do estado quanto da vontade política do governador.
Sem uma vacinação em massa, a transmissão do novo coronavírus não será contida. ”O país que não adotar a imunização em massa ou que a população não aderir [à vacinação] em massa, não vai estar livre da epidemia. Ela pode diminuir de tamanho, se transformar em uma doença endêmica, mas não controla”, alerta o pesquisador da UFMG.
O país que não adotar a imunização em massa ou que a população não aderir [à vacinação] em massa, não vai estar livre da epidemia.Flávio Guimarães Fonseca, pesquisador da UFMG
Isso porque o vírus irá infectar pessoas sem resposta imune. “Do ponto de vista da saúde pública, a única forma de conter a pandemia é se houve adesão em massa para vacinação porque não adianta manter bolsões de pessoas não protegidas. Tudo que o vírus precisa – e ele é muito eficiente nisso – é circular em populações não imunes. Pode se manter em populações mais reduzidas, mas não vai ser eliminado”, completa Fonseca.
Para o virologista, é preciso “pensar em estratégias para fazer com quem população adira de forma massiva à vacinação”. “Uma campanha de vacinação bem feita e bem orientada seria altamente preferencial a uma situação compulsória, mas estou um pouco assustado com a força que as inverdades científicas circulam nas redes sociais. Não vejo essa parcela da população que transmite esse tipo de conteúdo sendo conscientizada a tomar vacina”, afirma.
Para Renato Kfouri, da Sociedade Brasileira de Imunizações, a contaminação política em torno da vacinação coloca em risco alcançar a imunidade coletiva. “Vacina depende muito da confiança. As pessoas vão ser vacinar por confiarem. Você criar problemas com a vacina de A ou de B, de um político ou de outro, não ajuda nada”, afirma.
Na avaliação do especialista, “a obrigatoriedade é uma discussão que nem deveria estar tendo agora”. “Não têm vacina eficaz. Não têm vacina para todo mundo. É uma discussão vazia”, critica.