Por Rafael Neves, compartilhado de The Intercept –
Uma enorme coleção de materiais nunca revelados fornece um olhar sem precedentes sobre as operações da força-tarefa anticorrupção que transformou a política brasileira e conquistou a atenção do mundo.
Aforça-tarefa da operação Lava Jato em Curitiba recebeu uma investigação sigilosa sobre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva antes de fazer um pedido formal para o compartilhamento dela. O caso ocorreu durante os preparativos para a operação que obrigou o petista a prestar depoimento, em 2016. Semanas antes da condução coercitiva de Lula, os procuradores de Curitiba obtiveram a cópia de uma apuração que, oficialmente, só seria compartilhada um mês depois por colegas do Ministério Público Federal no Distrito Federal.
A apuração sigilosa era um Procedimento Investigatório Criminal, ou PIC, instrumento usado pelo Ministério Público Federal para iniciar investigações preliminares sem precisar de autorização da justiça. Os PICs estão no centro da disputa entre o atual procurador-geral da República, Augusto Aras, e a força-tarefa de Curitiba.
Desde que foi obrigada a entregar seu banco de dados à Procuradoria-Geral da República, no início de julho, a força-tarefa afirma que o compartilhamento de PICs é indevido e que deveria ser pontual, feito apenas mediante justificativa cabível e pedido formal. O compartilhamento atualmente está suspenso por decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal.
Quando lhe foi conveniente, porém, a equipe liderada por Deltan Dallagnol se aproveitou da falta de normas claras sobre compartilhamento de provas no Ministério Público para “dar uma olhadinha” em investigações de colegas, mostram conversas de Telegram entregues ao Intercept. Na prática, isso quer dizer que os procuradores de Curitiba não julgaram necessários os ritos e formalidades que agora exigem da PGR.
As mensagens também sugerem que a Lava Jato chegou a se perder – mais de uma vez – em meio aos procedimentos de investigação que tinha em andamento. Aras tem alegado que a Lava Jato acumula dados de 38 mil pessoas e sugere que boa parte deles se originam de um excesso de investigações paralelas abertas em Curitiba. Não é uma crítica inédita – já foi feita, em 2017, pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal.
Pois ainda em 2015, no segundo ano da operação, tal excesso foi notado pelos próprios procuradores, revelam as conversas no Telegram.
14 de outubro de 2015 – Chat FT MPF 2
Paulo Roberto Galvão – 15:42:08 – Caros. SobrSOBRE O EXCESSO DE PICSe NFs, PPs, PICs e Cia. Desde que SUPRIMIDO assumiu a CC-2, ele está cuidando das novas entradas, com Januário. Porém, o que havia antes está um pouco bagunçado. Tenho notado que há diversos autos esquecidos, com prazos vencidos. A Secretaria não sabe quem seriam os grupos responsáveis por cada auto, e os grupos muitas vezes não sabem que há autos instaurados de fatos sob sua responsabilidade. Concordo que não é nossa prioridade se preocupar com prazos administrativos e correicionais, mas também é possível corrigir a situação com pouquíssimo esforço, evitando possíveis dores de cabeça adiante. Esses dias recebi reclamação de precatória cumprida que ficou aqui 5 meses antes de retornar à origem, apenas aguardando despacho de encaminhamento. Assim, minha sugestão é que SUPRIMIDO coordene, com uma estagiária cedida do meu grupo, uma distribuição dos autos administrativos instaurados entre os grupos existentes na FT, sejam eles cíveis ou criminais. A partir daí, os assessores de cada grupo ficam responsáveis por colocar em dia os seus autos. A Secretaria passa a ter uma tabela indicando qual o grupo responsável por cada auto. As novas entradas na FT já estão sendo direcionadas a SUPRIMIDO, que as destinará aos grupos responsáveis quando houver. Há um estoque de correspondências não autuadas com a SUPRIMIDO, que tentará também dar baixa. Tudo isso com expressa recomendação de que não percam muito tempo com essa organização. Havendo discordâncias ou sugestões, avisem, pois o plano já está em prática
Em momentos críticos, como nas investigações que desaguaram na operação contra Lula em 2016, isso foi percebido até na Receita Federal. Num grupo de Telegram que reunia procuradores e policiais federais, os participantes se deram conta de que vinham fazendo pedidos idênticos ao fisco para alimentar as respectivas investigações, que corriam em paralelo.
27 de janeiro de 2016 – Chat PF – MPF Lava Jato 3
Érika Marena – 11:41:28 – Procs, o pessoal da Receita disse que quanto aos pedidos da PF pedidos quanto ao sítio, feitos no âmbito do inquérito, já há pedidos iguais do MPF…
Marena – 11:42:07 – notadamente quanto às notas fiscais
Marena – 11:42:22 – Me parece que vocês têm PICs ai dos mesmos temas de IPLs
Marena – 11:43:07 – como podemos resolver essa questão e assim evitar pedido igual de diligências aos demais órgãos ?
Marena – 11:43:24 – Quem sabe concentremos nos IPLs, que estão já formalizados e eprocados ?
Januário Paludo – 11:44:20 – Falei sobre isso na reunião na segunda. Que íamos vir para Sp para adiantar os depoimentos.
Paludo – 11:46:46 – Quanto às notas fiscais estamos obtendo direto com os fornecedores sem precisar de quebra.
Paludo – 11:47:28 – Na sexta passo um panorama do que obtivemos.
Marena – 12:02:02 – E vão mandar para o IPL ? Dai liberamos o pedido feito para a Receita
Paludo – 12:06:00 – Ok.
Marena – 12:07:40 – Thanks!
A ‘PERNINHA’ INFORMAL DA LAVA JATO
Um PIC pode ser prorrogado se o MPF achar necessário e não passa pelo controle do Judiciário. Por meio deles, procuradores podem fazer inspeções, vistorias e pedidos de documentos, inclusive sigilosos, e terceirizar tomadas de depoimento de testemunhas para polícias e até guardas municipais.
Os PICs em regra são públicos, mas procuradores podem decretar sigilo (também sem precisar de aval da justiça) e mantê-los em segredo pelo tempo que bem entenderem. A investigação sobre Lula à qual a Lava Jato teve acesso antecipado, por exemplo, está em sigilo até hoje, cinco anos após ter sido aberta.
Em um desses PICs, aberto por procuradores do MPF em Brasília, apurava-se um possível tráfico de influência de Lula para ajudar a empreiteira Odebrecht a fechar contratos com financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, no exterior.
Um dos documentos do PIC é um relatório que listava correspondências trocadas entre o Itamaraty, de 2011 a 2014, e autoridades de cinco países onde a construtora tinha interesses. Ele já circulava no grupo de Telegram exclusivo dos procuradores de Curitiba em 12 de fevereiro de 2016, mas a Lava Jato só teve acesso formal à investigação quase um mês depois, em 10 de março, como mostra um ofício emitido naquele dia pelo MPF do Distrito Federal.
Ou seja, o documento foi obtido por fora dos canais oficiais.
A ideia da força-tarefa era juntar essas informações ao material que já tinha sobre Lula. Os procuradores sonhavam em compor um caso forte que servisse para reforçar a competência deles nos processos contra o petista. É algo que a defesa do ex-presidente sempre contestou, alegando que os casos deveriam ser concentrados na Justiça Federal de São Paulo, onde ele mora e estão o triplex (Guarujá) e o sítio (Atibaia). Sergio Moro e a Lava Jato, porém, sustentavam que havia conexão entre esses casos e a corrupção na Petrobras, tese que acabou prevalecendo, não sem críticas.
Naquele momento, porém, os procuradores queriam colocar “a perninha da Lava Jato” nessas investigações, nas palavras de Roberson Pozzobon.
As discussões dos procuradores indicam que o material foi recebido de duas formas: primeiro por meio de cópias digitalizadas e, dias depois, pelo correio. Ambos os envios foram articulados via Telegram antes do ofício que regularizou o acesso.
‘aí já sabem, colocou a perninha da LJ lá com força, teremos ótimos trabalhos para mais uma década. Rsrsrs’
No início de fevereiro de 2016, quando a Lava Jato já preparava a condução coercitiva de Lula, o procurador Paulo Galvão consultou o chat FT MPF Curitiba 3, de uso exclusivo dos membros da força-tarefa, sobre a possibilidade de receberem investigações contra o ex-presidente que corriam em Brasília.
Em mensagem no dia 2 de fevereiro, Galvão avaliou que a equipe do Paraná já conhecia os fatos que vinham sendo apurados na capital federal, exceto por “telegramas do itamaraty que mencionam benefícios às empreiteiras e o uso do 9 para lobby”. Era uma referência a Lula, assim apelidado por causa do dedo amputado num acidente de trabalho.
Os tais telegramas eram um conjunto de correspondências trocadas de 2011 a 2014 entre o governo brasileiro e autoridades de Angola, Cuba, Panamá, República Dominicana e Venezuela. Eles foram reunidos pelo MPF de Brasília de forma sigilosa, em outubro de 2015, numa investigação aberta três meses antes para apurar se Lula havia favorecido a Odebrecht em obras financiadas pelo BNDES.
Ninguém respondeu à mensagem de Galvão naquele momento, mas o assunto voltou à tona quatro dias depois num grupo de Telegram criado especialmente para discutir as investigações em andamento contra Lula:
6 de fevereiro de 2016 – Chat 3plex
Roberson Pozzobon – 14:34:50 – Precisamos acessar esse relatório da Cpi, por incrível que pareça pode vir a contribuir
Pozzobon – 14:34:54 – http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/02/relatorios-da-cpi-do-bndes-pedem-indiciamento-de-luciano-coutinho.html
Pozzobon – 14:36:51 – É mais, acho que esse esquema Lula e Coutinho, tb estará diretamente relacionado com o Italiano
Pozzobon – 14:38:45 – Seria excelente se o pessoal de BSB declinasse par anos aquela investigação do lobby do Lula para a CNO. Salvo engano o colega contatou Deltan para isso, vcs se lembram disso?
Júlio Noronha – 14:58:16 – Tb acho uma boa intensificarmos o foco no antecedente mesmo, especialmente BNDES. Desse mato sairá cachorro!!!
Noronha – 14:59:00 – Acho Q o PG disse Q queriam mandar da pr-df para FT! Vamos v com ele na volta
Pozzobon – 15:01:08 – Com certeza valerá a pena. Coutinho tem foro especial será?
Noronha – 15:02:55 – Acho Q não
Athayde Ribeiro Costa – 17:07:00 – Tem nao
Costa – 17:00:08 – É todo nosso… Heheh
Januário Paludo – 17:39:15 – Quanta maldade.
Em outro trecho do mesmo chat, no dia seguinte, ficaria claro por que a Lava Jato desejava assumir aquela investigação. Primeiro, o procurador Júlio Noronha reforçou a importância de a força-tarefa receber “aqueles documentos do Itamarati que podemos usar para cruzar com convites para palestras no exterior”. Em resposta a essa sugestão, houve a seguinte conversa:
7 de fevereiro de 2016 – Chat 3plex
Roberson Pozzobon – 14:32:41 – Exatamente. Tvz pudéssemos dar uma “olhadinha” antes. Pedir para os colegas mandarem informalmente uma cópia integral digitalizada.
Pozzobon – 14:35:08 – To lendo um relatório paralelo da Cpi do BNDES. Acho que teremos muito coisa para trabalhar lá. É uma pouca vergonha. Tão ou mais revoltante que a Petrobras.
Pozzobon – 14:35:08 – E digo mais. Nada melhor para nós, LJ, minimizarmos ao máximo o risco de perder o caso por competência, do que entrarmos com CNO e LULA. Se entrarmos fraco, ou com um caso satelitario, é capaz de não nos deixarem trabalhar.
Júlio Noronha – 14:37:40 – Concordo!
Pozzobon – 14:37:48 – aí já sabem, colocou a perninha da LJ lá com força, teremos ótimos trabalhos para mais uma década. Rsrsrs
Pozzobon – 14:38:23 – Temos que expor as entranhas dessa ODEBRECHT. Mostrar que é a pirata das piratas. Demonstrar que espoliou o Brasil desde sua origem.
Athayde Ribeiro Costa – 15:02:36 – Boa
Pozzobon fez duas confissões: sobre a intenção de dar “uma olhadinha” informal na investigação sigilosa de Brasília e a ânsia de manter no Paraná as investigações contra o ex-presidente.
Logo em seguida a essa conversa, Dallagnol já combinava com Galvão, num chat privado, como botar as mãos naqueles autos. Quatro dias depois, em 11 de fevereiro, Dallagnol passou aos colegas um relato das investigações em andamento em Brasília “sobre o nono elemento” (outra referência ao dedo amputado de Lula) e avisou que o MPF de Brasília iria “mandar tudo digitalizado amanhã”.
Em 12 de fevereiro, dia seguinte ao anúncio de Dallagnol, o procurador Diogo Castor de Mattos usou o mesmo chat para narrar descobertas que vinha fazendo no relatório do MPF de Brasília sobre as correspondências do Itamaraty, o mesmo documento que os procuradores já vinham cobiçando.
12 de fevereiro de 2016 – Chat FT MPF Curitiba 3
Diogo Castor de Mattos – 18:38:20 – vcs sabiam? QUe o BNDES investiu nos últimos quinze anos USD 2, 5 bilhões na….
Castor de Mattos – 18:38:28 – Republica Dominicana
Castor de Mattos – 18:40:26 – que entre 2011 e 2015 o BNDES investiu USD 5 bilhões em Angola, sendo que aproximadamente USD 2 bilhões para pagar hidreletrica de lauca que foi construída por… ODEBRECHT
As informações sobre o BNDES que Castor citou no início da conversa foram retiradas do arquivo em pdf que ele dividiu com os colegas no mesmo chat minutos depois, às 19h05. O documento, que faz parte do PIC que a equipe de Curitiba vinha discutindo, só poderia estar naquele inquérito. O problema é que a Lava Jato foi autorizada oficialmente a acessá-lo somente em 10 de março. Até aquela data, portanto, o compartilhamento havia sido feito por baixo dos panos.
‘NÃO VAMOS DEIXAR TRANSPARECER Q TIVEMOS ACESSO’
Com o passar dos dias, ficou evidente que a Lava Jato queria manter em segredo que havia consultado aqueles autos. A primeira menção a isso foi em 20 de fevereiro, um dia após a investigação ter vazado para a revista Época. O procurador Paulo Galvão enviou o link da reportagem aos colegas de equipe e, logo em seguida, fez um pedido:
20 de fevereiro de 2016 – Chat FT MPF Curitiba 3
O diálogo revela que a Lava Jato pretendia estudar o caso furtivamente para poder, eventualmente, “esquentar” o material numa nova investigação ou denúncia. Nesse caso, segundo Galvão, a força-tarefa produziria novamente as provas, sem deixar à mostra de onde surgiram as informações.
Mais tarde, no mesmo dia, a equipe comenta uma manifestação da defesa de Lula, que protestava porque tentava conseguir uma cópia daquele caso, sem sucesso, desde dezembro de 2015. Desta vez é Noronha quem alerta os parceiros para manterem a manobra em segredo: “Pessoal, por favor, lembrem de não dizer que tivemos.acesso a esses autos! Só confusão que vem de lá”.
O assunto voltou no dia 4 de março, data da condução coercitiva de Lula, quando a força-tarefa voltou a discutir o que fazer com as investigações que corriam contra o ex-presidente em Brasília. Na ocasião, decidiram marcar uma videoconferência com os colegas, na semana seguinte, para tratar do assunto. A reunião, aparentemente, ocorreu no dia 9 daquele mês. Horas antes, Paulo Galvão voltou a pedir discrição. Sua intenção era esconder dos próprios colegas de Brasília que os procuradores de Curitiba tiveram acesso PIC:
9 de março de 2016 – Chat 3PLEX Restrito
Paulo Roberto Galvão – 10:29:22 – videoconf com prdf, vcs podem 17h? pq eles estão com aquele problema de fechar a pr às 18h
Júlio Noronha – 10:29:30 – Januário, Athayde, Robinho, Jerusa e eu
Noronha – 10:48:18 – Pode ser! De repente, quem não ficar na oitiva, poderia participar da vídeoconf
Galvão – 10:49:06 – seria importante alguém ver o que tem no pic da prdf antes da reunião, para ver se tem coisas interessantes mesmo e coisas que nós não teríamos dificuldade para reproduzir
Galvão – 10:49:24 – Obs.: ninguém mencionar que tivemos acesso ao Pic, pois foi passado em off
Noronha – 10:50:26 – Ok
No dia seguinte a essa conversa, depois de passar quase um mês em posse da investigação, a Lava Jato finalmente regularizou o compartilhamento, graças a um ofício do procurador Anselmo Cordeiro Lopes.
O conteúdo da investigação, segundo o pedido oficial, serviria para auxiliar Curitiba na condução de um PIC muito mais abrangente, que havia sido aberto em 2015 para apurar os pagamentos a Lula pela empreiteira OAS por meio da reserva ou reforma de imóveis. Foi o procedimento que iniciou as investigações sobre o triplex do Guarujá e o sítio de Atibaia.
Mas o material sobre o BNDES, colhido com o MPF de Brasília, não chegou a ser usado nos procedimentos da força-tarefa que vieram a público. Até hoje, a Lava Jato do Paraná não fez contra o ex-presidente nenhuma denúncia ligada às obras financiadas no exterior pelo banco estatal.
A investigação em que a Lava Jato deu uma “olhadinha” gerou uma denúncia feita pelo MPF de Brasília em outubro de 2016. Taiguara dos Santos, sobrinho da primeira mulher de Lula, foi acusado de ganhar indevidamente um contrato com a Odebrecht em Angola, financiado pelo BNDES. Em junho de 2020, porém, a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região decidiu trancar a ação contra Taiguara e outro acusado. O TRF1 viu “inépcia da denúncia”. Lula segue respondendo ao processo.
‘VOCAÇÃO PARA A CLANDESTINIDADE’
Aespiada na investigação de Brasília sobre o BNDES foi a única a deixar um rastro no Telegram, mas as conversas no aplicativo sugerem que outros quatro procedimentos contra Lula também chegaram às mãos da força-tarefa naquele momento.
A norma mais recente do MPF sobre os PICs determina, em um de seus artigos, que o procedimento precisa ser compartilhado por meio de “expedição de certidão, mediante requerimento” de qualquer interessado, inclusive do próprio Ministério Público. Não há nada, porém, proibição expressa ao repasse das informações da maneira adotada pela Lava Jato de Curitiba.
Procurada, a PGR reconheceu que o ofício é o caminho correto para a troca de informações dentro da procuradoria, mas não vê uma violação flagrante no procedimento informal. “Provas pertencem à instituição Ministério Público Federal, e não a determinados membros ou grupos. Foi nesse contexto que a PGR solicitou, por meio de ofícios, o compartilhamento de dados das forças-tarefas em 13 de maio”, afirmou o órgão, em nota que aproveita para defender a tese do atual chefe do órgão, Augusto Aras.
A falta de um enquadramento legal não impede, porém, que a conduta da Lava Jato seja considerada reprovável. “Uma coisa é você fazer a cooperação dentro do canal legal, deixando tudo registrado por escrito. Outra coisa é combinar isso pelo Telegram, onde não há nenhum tipo de controle. É algo muito grave e que mostra, digamos, uma vocação para a clandestinidade”, avalia o jurista Cristiano Maronna, doutor em Direito pela USP e conselheiro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, o IBCCrim, a quem apresentamos o caso.
Perguntamos à Lava Jato no Paraná se reconhecia ter acessado os autos por antecipação, se esse expediente era comum e se os procuradores consideram o procedimento adequado.
Lava Jato diz que troca de informações não depende de ‘formalidades especiais’, mas as adotou. E só após envio informal do inquérito.
Em nota, a força-tarefa não negou o recebimento informal dos autos e nem o fato de que eles estavam sob sigilo, mas eximiu-se de culpa. Segundo a resposta do grupo, “cabe ao próprio procurador que é titular da investigação conferir acesso às informações quando e da forma que entender pertinente, não sendo necessárias formalidades especiais para tanto”.
É uma alegação que não resiste ao confronto com o procedimento adotado pela própria Lava Jato em seguida. Mesmo considerando que a troca de informações sigilosas entre procuradores não depende de “formalidades especiais”, a força-tarefa as adotou após receber os autos de maneira informal, emitindo um ofício a Brasília.
Já o MPF do Distrito Federal se recusou a comentar o caso. Perguntamos ainda ao Conselho Nacional do Ministério Público se o órgão vê problema no procedimento. O CNMP limitou-se, no entanto, a citar as normas que tratam dos PICs e informou não poder comentar o caso concreto, porque pode eventualmente ser chamado para julgá-lo.
A PGR está investigando as manobras da Lava Jato para se apropriar de investigações, como no caso de Lula. No último dia 30, a corregedora-geral da instituição, Elizeta de Paiva Ramos, mandou abrir uma sindicância sobre o trabalho das forças-tarefa devido à suspeita de que a equipe de São Paulo ignorava a distribuição regular dos casos para assumir aqueles de seu interesse, algo que os procuradores negam.
Em julho de 2017, o atual regulamento do Ministério Público Federal sobre os PICs foi alterado, permitindo ao órgão delegar tomadas de depoimento de testemunhas para polícias e até guardas municipais. A mudança foi duramente criticada pela advogada Janaina Paschoal, atual deputada estadual pelo PSL de São Paulo e na época já famosa por ter sido uma das autoras do pedido de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
Em texto que publicou num site jurídico um mês após a edição da norma, Paschoal argumentou que a mudança deu aos procuradores “poderes não contemplados nem pela Constituição Federal, nem pela legislação ordinária”, e, na prática, transformou o MPF “em polícia paralela com ascendência sobre as demais”.
‘LEVOU TUDO PRA UMA SALA DE POA’
Em Curitiba, mostram as conversas via Telegram, o excesso de procedimentos era notado especialmente na hora de prestar contas à corregedoria do MPF. Trata-se da única instância à qual os procuradores precisam dar satisfações sobre investigações paradas ou deixadas pelo caminho.
Em maio de 2016, por exemplo, o veterano procurador Januário Paludo estava incumbido de sanear a papelada. Pelo aplicativo, ele avisou que havia levado a Porto Alegre, de onde também despacha, todos os documentos do gabinete de Dallagnol e “zerado” suas pendências. Em resposta, o coordenador da Lava Jato fez uma piada: “Zerado pq levou tudo pra uma sala de POA que tá com a porta que não fecha de tanta coisa? Kkkk”.
As mensagens mostram que a Lava Jato também deixava acumular denúncias externas, recebidas de terceiros. Numa tarde em novembro de 2017, Dallagnol anunciou aos colegas que Paludo faria uma triagem dessas informações para “enterrar com devidas honras as centenas de esqueletos” da força-tarefa.
17 de novembro de 2017 – Chat Filhos do Januario 2
Deltan Dallagnol – 16:48:08 – Januário e colegas, Sob a coordenação de Januário, estamos tentando enterrar com devidas honras as centenas de esqueletos da FT, coisas que estavam no setor pendentes de análise. Há centenas de casos que vêm do setor de atendimento ao cidadão. Haverá um mutirão da sede para fazer resumos para que SUPRIMIDO e SUPRIMIDO possam fazer mais rapidamente encaminhamentos propostos ao Januário. Meta continua sendo fechar tudo até o fim do ano.
De tempos em tempos, Paludo chamava a atenção do grupo para o estoque de PICs que mofavam nas gavetas dos colegas por períodos superiores a seis meses – e que chegavam a dois anos. As informações recebidas de outros órgãos, como a Receita Federal, também se amontoavam às centenas.
6 de fevereiro de 2019 – Filhos do Januario 3
Deltan Dallagnol – 14:52:21 – #REUNIÃO 1. RFFP – tudo gerará notícia de fato (estatística). São 400 casos (e 400 potenciais mencionados num ofício, mas deixaremos pra um segundo momento). Januário analisará tudo e separará joio de trigo. Vai arquivar sonegação quando houve pagamento, p ex, o que já tem inquérito ou PIC, o que vale a pena desenvolver investigação… verá o que deve ser declinado e o que deve ir pros grupos. Investigações sem grupo e com bom potencial vão pro grupo da Laura e Felipe. Daqui a 2 meses retornará para reavaliarmos. Douglas apoiará nas providências administrativas, coordenando com secretaria, e Januário cuidará do mérito. 2. SIRF – pedir para instalar na máquina de todos. E temos APTUS-X e o sisdelatio dentro. 3. Segunda que vem teremos reunião geral às 16h para discutir distribuição e instauração urgente de PIC sobre pessoas que perderam foro e investigações cíveis contra pessoas com foro
Questionamos a força-tarefa sobre o aparente descontrole sobre as investigações, tanto as abertas pelos procuradores como as informações recebidas de terceiros.
Em resposta, o MPF do Paraná argumenta que o trabalho da equipe “cresceu exponencialmente ao longo do tempo”, e que os procedimentos são auditados anualmente pela corregedoria, “inclusive no tocante à regularidade formal dos procedimentos e eventuais atrasos”. Ainda segundo a Lava Jato, “casos são arquivados quando não há linhas de investigação ou por outras causas como atipicidade e prescrição”.
Também questionamos perguntamos se era comum que o MPF de Curitiba abrisse PICs sobre assuntos já vinham sendo apurados pela Polícia Federal, ou vice-versa. A Lava Jato confirmou que isso era uma ocorrência comum, “dado que ambos os órgãos têm poderes investigatórios”.