A fome no Brasil em documentário

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Por Marcelo Menna Barreto, publicado em Extra Classe – 

Com lançamento no próximo dia 9 de dezembro, filme atesta que a fome não é resultado de uma fatalidade e que pode ser revertida com projetos de incentivo ao pequeno agricultor 

“A miséria é uma produção humana.
Miséria e fome é um problema ético”.

Betinho – ONU, 1994

Cena do documentário História da fome no Brasil, dirigido por Camilo Tavares

Cena do documentário Histórias da fome no Brasil, dirigido por Camilo Tavares

Foto: Reprodução/Divulgação

Com roteiro e direção de Camilo Tavares, estreia no próximo dia 9 de dezembro, no tradicional cinema Odeon, no Rio de Janeiro, Histórias da Fome no Brasil. Idealizado por Daniel de Souza, presidente da Ação da Cidadania e filho de Herbert José de Souza, o Betinho, o documentário mostra uma cronologia da fome no país – do Brasil Colônia até as políticas públicas recentes que culminaram na saída do Brasil do Mapa da Fome divulgado pela ONU, assim como o seu enfrentamento por parte da sociedade.

O lançamento no Cinema Odeon, também conhecido como Centro Cultural Luiz Severiano Ribeiro e Odeon Petrobras, na Cinelândia, centro da capital fluminense, é, na opinião de Daniel de Souza, ao mesmo tempo, um alerta e um protesto: “com o risco de o país voltar ao Mapa da Fome da ONU”, desabafa.




O documentário será apresentado em todo o Brasil dentro da campanha Natal Sem Fome. A ONG Ação da Cidadania já está preparando a exibição no Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Paraíba, Roraima, Bahia, São Paulo, Maranhão e Distrito Federal. As sessões serão gratuitas e arrecadarão alimentos não perecíveis para o Natal sem Fome deste ano que, após dez anos voltou a ser realizado (confira a matéria Fome volta rondar o Brasil). A ideia, segundo Souza, é que as apresentações se iniciem, dentro do possível, em 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.

“A importância da superação da fome pode ser dimensionada quando consideramos que este flagelo, que perdurou durante séculos em nosso país, era considerado até recentemente como uma fatalidade e não se vislumbrava que seria revertido”, afirma o presidente da Ação da Cidadania. Segundo ele, o filme ainda aponta o pensamento daqueles que “nadaram contra a corrente”, como Josué de Castro, Dom Helder, Betinho e tantos outros, que acreditaram que a fome era um mal reversível, ocasionada pelos próprios homens e suas políticas. Veja o vídeo promocional:

ENTREVISTA | Camilo Tavares

A fome no Brasil em documentário

Camilo Tavares, diretor de cinema e documentarista

Foto: YouTube /Reprodução

Nascido no México em 1971, Camilo Tavares é referência na história do cinema documental brasileiro. Em março deste ano, a Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) inclui O dia que durou 21 anos (2013) entre os 100 melhores documentários brasileiros de todos os tempos. O filme, inicialmente pensado para registrar a história de seu pai, o jornalista Flávio Tavares, preso político, banido do país em troca do embaixador americano Charles Burke Elbrick, sequestrado por movimentos contra a ditadura militar estabelecida no Brasil em 1964, acabou mudando de foco. Ao tomar conhecimento da existência de um gigantesco acervo documental aberto ao publico pelo governo dos Estados Unidos sobre a deposição do presidente João Goulart, o documentarista acabou desvendando um episódio nebuloso na história do Brasil: a participação do governo norte-americano na conspiração que resultou em uma ditadura de 21 anos. A obra arrebatou quatro prêmios: Melhor Documentário Estrangeiro no St Tropez International Film Festival (França); Prêmio Especial do Júri no 22° Arizona International Film Festival (EUA); Prêmio Especial do Júri no 29° Long Island Film Festival (EUA) e Melhor Documentário Brasileiro 2013 da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte). Abaixo, Camilo Tavares conta um pouco de sua trajetória e sobre a sua mais recente obra Histórias da Fome no Brasil.

O sociólogo Betinho discursa na Assembleia da ONU em 1994

O sociólogo Betinho discursa na Assembleia da ONU em 1994

Foto: Reprodução/Divulgação

EC – Quais foram as suas motivações para roteirizar e dirigir o Histórias da Fome no Brasil?
Camilo – Foi, na verdade, um convite da MPC Filmes, que é a produtora, e do Daniel de Souza. Eu não conhecia muito bem o tema, tive que fazer uma pesquisa, uma imersão e aí eu fiquei encantado mesmo com esses movimentos sociais que estão aí por todo o Brasil, Minas Gerais, o Nordeste para onde a gente foi… E toda a política feita pelo Governo Federal de comprar a produção de alimentos do pequeno agricultor pra acabar um pouco com o mercado só dos grandes, da monocultura. O que mais me chamou a atenção foi a construção desse caminho que inclui o pequeno agricultor no processo de produção mesmo, de compra, que foi uma grande conquista da sociedade. Não é nem do governo…desde os anos 80, quando o Betinho começou as campanhas contra a fome, a sociedade começava esse modelo de produção agrícola, trabalhando para que desse certo.

Documentário aborda a fome a miséria no país em vários períodos da história

Documentário aborda a fome e a miséria no país em vários períodos da história

Foto: Reprodução/Divulgação

EC – Qual a sua expectativa com o seu novo trabalho?
Camilo – O importante é que ele mostre esse legado muito legal da luta pela erradicação da fome no Brasil e que isto siga como exemplo, ainda mais neste momento em que as políticas sociais vivem um retrocesso. Eu desejo mostrar que a fome ainda é um problema, que o Brasil estava caminhando num bom caminho nessa questão da produção agrícola, alimentando as escolas, e que esse programa deve continuar, tanto no Nordeste, no Sudeste, no Sul também. Importante também valorizar o Movimento dos Sem Terra, mostrar as boas iniciativas que deram certo, sejam do governo, sejam da sociedade. Lembro de comunidades aqui mesmo em São Paulo, no Vale da Ribeira, que passavam fome e que tiveram por iniciativa deles, por uma conquista de organização mesmo de base, sucesso nos programas, mas que isto depende mesmo de um estímulo do governo. O grande objetivo do filme é alertar e conscientizar que existem conquistas importantes, às duras penas, nesses 20, 30 anos, e que começou com o Betinho. Mas também é importante mostrar a parte histórica do filme que mostra Josué de Castro. Eu mesmo não conhecia o Josué de Castro que foi superimportante; uma pessoa que devia até ser mais estudada, reconhecida. Lá fora ele é mais conhecido e aqui poucos o conhecem.

EC – Seria uma das iniciativas positivas que você citou antes e que teve pouca divulgação?
Camilo – Então, o que mais me maravilhou foi isto. Ver que nos movimentos organizados, os pequenos agricultores que precisavam de incentivo para a compra da produção receberam. Nisto, os governos Lula e Dilma tiveram um grande mérito mesmo, o de conseguir com que o pequeno agricultor tivesse um mercado, o que só é possível realmente com uma certa proteção mesmo, até porque não tem como competir com o preço do arroz produzido a partir de uma Monsanto. E o que é legal é que este pequeno agricultor está seguindo a linha do orgânico, ele está muito preocupado com a qualidade da comida e essa produção está chegando na escola, chegando nos hospitais. Com essa mudança desse governo aí, o programa ficou bastante prejudicado, mas é uma coisa de relevância nacional. Se você quer que uma criança na escola possa comer um produto orgânico, de qualidade, sem agrotóxico, feita pelo pequeno agricultor que se fixa na terra, não vai para a cidade, o governo tem que apoiar.

EC – É a típica coisa que puxa a outra?
Camilo – Sim. Tem que se pensar que o êxodo rural que ocorreu nos últimos 20, 30 anos, que provoca a violência e todas as suas consequências, ocorre muito por essa falta de perspectiva do agricultor ficar na terra dele. Então, o que mais me encantou foi ver a juventude lá na Paraíba e em outros lugares do Nordeste querendo ficar no campo, querendo produzir. Isto porque eles tinham o estímulo de que os produtos locais, a acerola, o caju, enfim a história de que é melhor tomar suco natural do que industrializado; só que isso aconteceu com o fomento da questão dos alimentos. O Ministério do Desenvolvimento Social, que era ligado aos programas de erradicação da fome, criou um programa que foi reconhecido no mundo inteiro; a própria ONU o reconheceu como importantíssimo. É importante falar isto e desvincular de um partido ou outro. Ou seja, é uma coisa que deu certo e deveria continuar. Acho que a grande função do filme para mim é apontar os ganhos que esses programas de aquisição de alimentos trouxeram.

EC – É verdade que seu nome é uma homenagem ao sacerdote católico colombiano Camilo Torres, que pegou em armas na guerrilha em seu país?
Camilo – Sim! O Camilo Torres. É uma homenagem a ele.

EC – Alguma relação do teu pai com a esquerda católica na época?
Camilo – Com a religião cristã, aquela história do homem novo. O Che Guevara bebe também um pouco nessa fonte, nos valores cristãos de ajudar ao próximo, que se assemelha um pouco ao socialismo.

EC – Qual é a sensação de O Dia que durou 21 Anos já estar na lista dos 100 melhores documentários da história do cinema nacional?
Camilo – Olha, eu falo primeiro que é uma satisfação muito grande, mas o principal que eu acho é que o filme tem uma função social. Eu vejo muito pouco essa função social da arte, principalmente no Brasil, que a gente conhece tão pouco a história recente dos 21 anos da ditadura. Eu me senti muito contente porque o filme teve uma circulação muito boa entre os jovens. Ele foi usado nas escolas, nos vestibulares… A gente usou uma narrativa que buscasse sensibilizar os jovens. O jovem precisa conhecer a história, não é? Quando eu estava no Estados Unidos, o pessoal me perguntava qual era o meu maior medo, se era a repressão, por exemplo. Eu diria que o meu maior medo é o esquecimento mesmo. Aqui no Brasil a gente tem pouca memória e eu acho que o 21 Anos contribui para preencher essa lacuna, um pouco na linha do pra que isto não aconteça. Veja a Alemanha. Tudo o que se faz contra o nazismo, sobre o Holocausto, etc. Aqui no Brasil a gente teve uma ditadura que até hoje apresenta sequelas na nossa sociedade e quanto mais a geração nova conhecer o passado, mais consciente ela vai estar.

Na grande seca (1915 a 1917) morreram mais de 100 mil nordestinos

Na grande seca (1915 a 1917) morreram mais de 100 mil nordestinos

Foto: Reprodução/Divulgação

EC – Você falou na juventude, mas existe um movimento chamado MBL que de certa forma é tocado por muitos jovens e influencia muita gente. Eles agora entraram numa cruzada moralista e alguns jovens influenciados por eles inclusive defenderam uma intervenção militar no Brasil. Qual a sua opinião sobre isto?
Camilo – Acho que é um resultado dessa falta de conhecimento, ignorância. Qualquer pessoa que viveu esse período, até mesmo o pessoal de direita retratado no 21 anos, o Jarbas Passarinho por exemplo, faz uma reflexão, uma autocrítica sobre este período. Para quem vivenciou os horrores da ditadura, os desaparecimentos, as mortes, é inconcebível que no século 21, com a democracia se fortalecendo, veja que uma pessoa possa defender um absurdo destes. Então, eu acho que falta realmente uma conscientização no sentido de despertar o outro lado.

EC – Por Exemplo…
Camilo – Muito se fala de Bolsonaro, sobre essas coisas militares, mas tem um movimento interessante forte de participação social, movimentos bacanas da juventude. Eu acho que a mídia dá muito destaque, muito holofote para esses absurdos, retrocessos, e aí acaba aquela coisa do falem mal mas falem de mim. De tanto falar do Bolsonaro, o Bolsonaro acabou ganhando uma repercussão que ele não merece. Enquanto que tem muita coisa bacana que os telejornais não noticiam, como a juventude mais engajada, esse pessoal mais participativo, enfim, o próprio Movimento dos Sem Terra, a questão agrária, a história do combate à fome, muitas iniciativas boas pra tirar aquele estigma que o MST vai invadir a sua terra, vai ocupar a sua terra. Então o que eu vejo assim é pouca divulgação na mídia das coisas positivas. Você tem um interesse sensacionalista muito grande que acaba dando muita trela, muito espaço pra essas coisas negativas e aí eu acho que os jovens, pouco informados, acabam julgando errado.

EC – Que tipo de julgamento errado?
Camilo – Por exemplo, agora, toda essa questão do golpe contra a Dilma. Se bateu muito nessas coisas, a mídia só falava mal, mal, mal durante um, dois anos; a mesma coisa que aconteceu com João Goulart, toda a mídia comprada mesmo. A Globo teve muita responsabilidade nisto. Não mostrava os dois lados. Ora, pode criticar o governo da Dilma, mas também devia mostrar as coisas positivas. A própria questão do combate a fome mesmo nunca foi muito mostrado porque, para eles, parecia como se fosse uma propaganda do governo em vez de ser visto como uma coisa positiva mesmo porque envolvia toda a sociedade. Eu quero dizer isto: que falta mostrar as coisas boas também, até pra estimular os jovens a pensar na participação democrática porque o jovem está muito desiludido e eu acho que isto é um pouco responsabilidade da mídia, sim, que mostra muito pouco os movimentos sociais, as suas coisas positivas que existem mas não aparecem muito.

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