Operação Acolhida foi intransigente com os moradores e deu como opção serem levados para abrigos superlotados; indígenas venezuelanos temem contágio do coronavírus em novo espaço . Acima, indígenas venezuelanos são retirados da ocupação (Foto cedida por Caique Souza)
“Hoje, 21 de janeiro, há 429 indígenas no abrigo (Jardim Floresta), o que significa dizer que ainda existem 31 vagas disponíveis. Grande parte deste efetivo é oriundo da ocupação espontânea de Ka’ubanoco. Vale ressaltar que a transferência foi realizada de forma voluntária, graças a um trabalho de comunicação realizado pela Operação Acolhida e agências parceiras”, disse em nota oficial, a operação das Forças Armadas, à Amazônia Real .
O que os moradores relatam à Amazônia Real desmente essa versão da Operação Acolhida. “Estamos todos trancados em um espaço muito pequeno. São 11 pessoas em uma barraca e sem ventilador”, disse uma moradora do abrigo Jardim Floresta, localizada na zona oeste da capital. “É por isso que não dormimos desde que saímos de Ka’Ubanoko. Eles não estão cumprindo com o que nos prometeram, não queremos que nos tratem como animais. Somos humanos.”
A indígena venezuelana e os outros entrevistados pela reportagem terão seus nomes preservados nesta matéria. Eles temem por represálias, já que estão sendo vigiados por homens do Exército. “Os militares sempre entram e saem sem nenhuma proteção, estamos fazendo nossa comida fora do abrigo, porque só nos dão um pedacinho de pão pela manhã”, afirmou outra fonte ouvida pela reportagem.
Os indígenas apenas foram realocados, mas relatam que não existe qualquer preocupação por parte dos membros da Operação Acolhida em relação à Covid-19. No abrigo, eles não receberam álcool em gel ou sabonetes para lavar as mãos. No espaço superlotado, os indígenas temem pela explosão de contágios pelo novo coronavírus.
Dos 819 óbitos, conforme dados da Secretaria Estadual de Saúde de Roraima divulgados no dia 20, 66% foram de pessoas acima de 60 anos. Entre as populações indígenas, a Covid-19 já representa 13,7% das vidas perdidas no estado. A taxa de mortalidade entre os povos indígenas é de 2,25%. Entre os imigrantes, 52 pessoas morreram, sendo 42 delas venezuelanas.
A luta por criar uma comunidade no Brasil
Imigrantes e indígenas venezuelanos moradores da Ocupação Ka’Ubanoko, em Boa Vista(Foto: Yolanda Mêne/Amazônia Real)
Ka’Ubanoko era auto-gerida pelos indígenas venezuelanos que iniciaram uma imigração em massa, com a crise social, ecônomica e política daquele país. Da coordenação de limpeza, educação, saúde à segurança, tudo era feito pelos moradores. O espaço pertence ao Estado de Roraima e estava abandonado desde 2008. No local, funcionava o antigo clube do servidor público. Sem função social, os imigrantes venezuelanos chegaram, ocuparam e criaram a comunidade.
“Não podíamos mais trabalhar na Venezuela. Estamos aqui não como um aborrecimento para o governo brasileiro, estamos pedindo um auxílio para o governo, só queremos ajuda, não queremos ser maltratados, somos seres humanos e assim como todos merecemos respeito e dignidade de vida”, declarou um morador.
A comunidade foi criada em fevereiro de 2019 e era composta por mais de 900 moradores, sendo 150 famílias venezuelanas (a maioria indígenas do povo Warao). Mas o ‘espaço para dormir’ – significado de Ka’Ubanoko na língua Warao -, tornou-se um verdadeiro pesadelo desde que os moradores começaram a receber ameaças de despejo pela Operação Acolhida.
O primeiro aviso de que teriam de sair veio em 17 de setembro de 2019. A reação imediata das famílias de Ka’Ubanoko foi se organizarem para lutar pela permanência no espaço. Foram realizadas várias reuniões com a Operação Acolhida. Mas não encontraram espaço para negociação.
“Temos que cumprir a lei, estamos trabalhando e buscando uma estratégia para atender os indígenas, mas aqueles que não quiserem sair não é nosso problema, é problema da lei do Estado. O que o estado vai fazer eu não sei”, bradou o comandante da Operação Acolhida, o general Antônio Barros, ainda em setembro de 2019. “Se vocês quiserem ficar aqui em Ka’Ubanoko, eu lamento, vão ficar entregue aos seus próprios destinos. Isso não é mas problema meu, mas minha consciência vai estar tranquila que oferecemos opções, abrigo e interiorização.”
O caso se prolongou ao longo do ano pandêmico de 2020, até que o governo Bolsonaro voltou com as ameaças de despejo. Em dezembro, uma asssembleia convocada pelas lideranças indígenas de Ka’Ubanoko apresentou uma consulta livre, prévia e informada para a Operação Acolhida e ao Ministério Público Federal (MPF). Em situações como essa, era esperado que a Operação Acolhida desse alguma resposta às demandas apresentadas pelos indígenas.
A resposta da Operação Acolhida veio no início deste mês, já em 2021. Os militares informaram que o último prazo para permanecerem no local seria o dia 28. “Nos sentimos enganados, fizemos um trabalho, apresentamos e eles não nos falaram nada. Não houve diálogo”, desabafou uma mulher.
Sem saber o que fazer, as famílias começaram a deixar Ka’Ubanoko, ainda que muitos não tivessem destino algum. A Operação Acolhida chegou a oferecer como opções o chamado processo de interiorização ou a moradia no abrigo. As saídas causaram medo e apreensão nas famílias. A maioria delas já passou por um abrigo e não traz boas lembranças do local.
“Não queríamos vir para o abrigo. Nós sabemos como funciona aqui, não temos liberdade para viver. Passamos o dia com homens do Exército armados aqui dentro, as crianças não se sentem à vontade para brincar, as barracas são muito quentes, não conseguimos dormir à noite, aqui no abrigo não temos vida”, afirmou outro entrevistado.
A equipe da Amazônia Real acompanhou o processo dos moradores saindo da comunidade. Era notável a tristeza ao passar pelo portão para o lado de fora daquele espaço, onde foram construídos sonhos, histórias, vivências coletivas, e principalmente resistência. O local onde podiam dormir, viver e sorrir agora só permanece nas lembranças.
“Ka’Ubanoko será minha eterna casa, estou saindo triste, porém feliz em saber que ajudei a construir uma história de luta dos povos indígenas. O que mais me dói nesse momento é saber que esse espaço vai ficar novamente abandonado. Por que não nos deixam ficar aqui, cuidando desse lugar? Nós indígenas demos uma significância para esse espaço, que estava abandonado pelo estado, e agora vai continuar abandonado, e triste ver a falta de humildade das autoridades”, desabafou outro morador.
No dia 8 de janeiro, o Ministério Público Federal entrou com uma ação judicial pedindo a suspensão dos atos de deportação ou outra medida compulsória de saída de 55 indígenas não nacionais interessados em obter refúgio no Brasil. Entre eles, 32 são crianças, que agora encontram-se também no abrigo Jardim Floresta, realocados com outros moradores de Ka’Ubanoko.
O que diz a Operação Acolhida
Ocupação Ka’Ubanoko em Boa Vista-RR, indígenas venezuelanos são retirados
(Foto cedida por Caique Souza)
A Operação Acolhida, que é gestada pelo Ministério da Cidadania, Forças Armadas e Acnur (agência de refugiados da ONU), disse em nota que o abrigo Jardim Floresta passou por adaptações na estrutura para atender as especificidades da cultura indígena. Instalou redários e áreas para a manutenção de tradições indígenas, como a produção de artesanato. Informou que uma cozinha está sendo montada para o preparo de refeições típicas. Além disso, recebem cuidados médicos e refeições, como acontece em todos os abrigos mantidos pela Operação.
Com relação aos atendimentos médicos dentro do abrigo, os moradores informaram que há pessoas doentes, como uma senhora que está vomitando há 2 dias e não recebeu nenhum tipo de atendimento.
Os indígenas, contudo, não podem sair para vender seus artesanatos, o que reduziu a zero a renda deles. “Já pedimos que mudem essa situação, só falam que não é possível porque vai chegar mais gente, por isso precisam dividir o espaço. Nós temos que sair para fazer nossa comida, porque dentro do abrigo eles não deixam”, desabafa outro indígena.
Em nota enviada à Amazônia Real , o Ministério Público Federal informou que está acompanhando a realocação de indígenas e fiscalizando as decisões tomadas pela Operação Acolhida. O MPF participou de reuniões na quinta-feira (21) com indígenas realocados para levantar possíveis demandas, bem como com lideranças da Operação Acolhida, para atualizar informações sobre o planejamento atual de Ka’Ubanoko.
Força para seguir em frente
Ocupação Ka’Ubanoko em Boa Vista-RR, indígenas venezuelanos são retirados
(Foto cedida por Caique Souza)
A maior determinação das pessoas que deixaram Ka’Ubanko é seguir com esperança e nunca parar de lutar. “Essa comunidade não é algo que vai terminar, vamos seguir lutando, porque isso se repete”, declarou um morador, que faz uma súplica às autoridades. “Procurem conhecer nossas vidas, nossas histórias, que possam nos respeitar como pessoa, só queremos viver livres, o abrigo não é uma solução para nós.”
Um dos fundadores da comunidade se emociona ao lembrar de todos os momentos e tudo que conseguiu construir na comunidade. “Vamos seguir esse destino que estão nos impondo, mas não olharei para trás. Ka’Ubanoko para mim não está ficando para trás, mas para a frente, porque foi tudo que fiz me dá forças para levantar e seguir firme em frente”. Conforme as palavras vão sendo ditas, as lágrimas e um leve sorriso aparecem no rosto do homem.
Esta reportagem é apoiada pela Open Society Foundations dentro do projeto “Marcas da Covid-19 na Amazônia”