Coalizão formada por Mélenchon sacudiu cenário político ao derrotar neoliberais e ultradireita nas eleições parlamentares. Como reconquistou o voto popular. O que propõe seu programa, que parece superar a velha dicotomia reforma ou revolução
Por Antonio Martins, compartilhado de Outras Palavras
Às mídias convencionais não interessava, por razões óbvias, alardear a notícia. E as de esquerda também não a destacaram, talvez por não compreenderem sua dimensão. Mas uma tempestade política – inesperada e repleta de novidades – sacudiu a França, neste domingo (12/6). Uma coalizão que reúne pós-capitalistas, comunistas, socialistas e verdes foi a mais votada no primeiro no turno das eleições parlamentares, alcançando pouco mais de 25,7% dos votos. Ficou à frente tanto dos candidatos neoliberais, ligados ao presidente Emmanuel Macron (que obtiveram 25,66%) quanto dos de ultradireita, partidários de Marine Le Pen (18%).
Denomina-se Nupes, Nova Unidade Popular Ecológica e Social. É liderada – e foi articulada – por Jean-Luc Mélenchon, que em abril disputou a presidência. Derrotou a extrema direita, recuperando a maior parte do voto popular de protesto, que até agora favorecia Marine Le Pen (Reunião Nacional) ou Éric Zémour (Reconquista). Impôs forte desgaste a Emmanuel Macron, presidente recém-eleito, comprometendo seu programa de contrarreformas neoliberais e talvez sua maioria parlamentar. Prevê-se que poderá eleger, no próximo domingo (19/6), cerca de 180 parlamentares – contra menos de 60, atualmente, dos partidos que a compõem. As razões de seu sucesso merecem ser examinadas com atenção no Brasil. Dizem respeito aos caminhos para mobilizar a opinião pública em favor da reconstrução nacional em bases opostas às do neoliberalismo.
Talvez a mais destacada seja a capacidade demonstrada por Mélenchon para propor um programa pós-capitalista que dialoga com os dramas contemporâneos da sociedade, em vez de se perder em velhas polêmicas da esquerda (como a disputa entre “reforma” e “revolução”). Este esforço vem de longe. Participante ativo dos movimentos de 1968 (quando esteve próximo do trotskismo), mais tarde militante do Partido Socialista e fundador do Partido de Esquerda (em 2009), Mélenchon transitou, nos últimos dez anos, para uma posição mais próxima das sensibilidades políticas que se reconhecem no “altermundismo”. Também inspirou-se em filósofos como Chantal Mouffe e Ernesto Laclau, considerados por alguns como formuladores de um “populismo de esquerda”. Sob estas influências, lança em 2016 o movimento A França Insubmissa, que produz, após um vasto processo de assembleias, o programa O Futuro Comum – base de suas candidaturas presidenciais em 2017 e 2022.
É difícil qualificá-lo sob lentes antigas. Para alguns (por exemplo, esta crítica no site português A Esquerda), trata-se de um programa reformista, por não propor nem a estatização dos meios de produção, nem a tomada do poder por meios não institucionais. Mas basta lê-lo com atenção para perceber como ele não cabe nos limites do capitalismo realmente existente. Lá estão, por exemplo, propostas como a garantia pelo Estado de empregos dignos aos que os desejem; a jornada de trabalho de 35 horas (ou 32, para atividades penosas); a proibição de demissões por empresas que recebam benefícios fiscais; a reintrodução das grandes alíquotas do imposto de renda e a forte tributação da riqueza e da herança; a proibição dos despejos quando não houver garantia de abrigo aos inquilinos; a transição acelerada para a geração de energia limpa; a definição, por referendos, de um conjunto de bens imprivatizáveis; a revisão geral dos métodos da polícia; a penalização das empresas que não estabeleçam a igualdade de salários entre gêneros.
A estes objetivos, somam-se outros, de mais curto prazo, que dialogam com dramas contemporâneos. Incluem-se aí a elevação do salário mínimo para 1400 euros (R$ 7,9 mil) e o congelamento dos preços dos combustíveis; a retirada da França dos programas da União Europeia que implicam em cortes de gastos públicos; a redução da idade mínima de aposentadoria para 60 anos (hoje são 62).
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Nas eleições de 2017, tal programa assegurara a Mélenchon o terceiro lugar na disputa pela presidência (com 19,6% dos votos). A França Insubmissa (LFI), que concorreu sozinha às eleições parlamentares, obteve 11,03% do apoio popular, elegendo 17 deputados. Mas, em 2022, o cenário parecia mais sombrio, tanto no pleito executivo quanto no legislativo. Até poucos meses antes do pleito, toda a esquerda parecia dividida e impotente. Os socialistas, que governaram o país em diversos períodos, nas últimas décadas, haviam caído a seu patamar mais baixo: apenas 29 deputados (de um total de 577) e 4% das intenções de voto para a presidência. Os comunistas e verdes, sem representação parlamentar, pareciam ainda mais fracos. O debate político era dominado pela ascensão dos dois candidatos da extrema direita e pela emergência dos temas mais caros a ela – “identidade” nacional, criminalidade e rejeição aos imigrantes. O próprio Mélenchon mantinha-se, até fevereiro, em quinto lugar nas sondagens, sem ultrapassar a faixa de 10% dos votos.
“Sou como uma tartaruga sagaz”, desafiou ele então, num de seus comícios – “mas até o final, deixarei para trás algumas lebres”. Cumpriu a promessa, mesmo enfrentando um cenário político tormentoso. O fato de que não apoiou a cruzada da OTAN contra a Rússia na Ucrânia colocou-o contra quase toda a mídia. As sondagens pré-eleitorais o desfavoreceram (sugerindo, até o final, que estava ao menos 5 pontos abaixo de Marine Le Pen na disputa para chegar ao segundo turno). Ainda assim, obteve 21,95% dos votos no primeiro turno (disputado em 10/4). Ficou a menos de 500 mil (1,2 pontos percentuais) de Le Pen. Para que fosse à disputa final com Emmanuel Macron, bastaria que tivesse uma pequena parte dos sufrágios obtidos pelos outros partidos de esquerda, que fracassaram. Os verdes obtiveram 1,6 milhão (4,6%); os comunistas, 800 mil (2,3%) e os socialistas, 620 mil (1,7%).
Mas a grande criação política de Mélenchon em 2022 viria a seguir, precisamente na conformação da disputa pelo Parlamento. Em vez de ressentir-se dos verdes, do PC ou do PS, propôs-lhes integrarem uma vasta frente de esquerda. A oferta estendeu-se aos trotskistas do Novo Partido Anticapitalista (NPA), que a recusaram. Havia nela um cálculo político. Enfraquecidos pelo resultado pífio na disputa presidencial, verdes, comunistas e socialistas precisavam da LFI para ter alguma chance de não desaparecer no legislativo.
O que resultou daí foi a Nupes – primeira coalizão ampla de esquerda formada na França neste século. Muito mais que servir de refúgio a legendas em dificuldades, ela transformou o panorama político. Ao invés de se fragmentarem (e, como era frequente, enfrentarem-se umas às outras), as forças críticas ao capitalismo foram capazes de conformar um bloco coerente. Fizeram-no em poucas semanas. A posição gramscianamente hegemônica desempenhada pela LFI foi decisiva. Com poucas adaptações e atualizações, seu programa de 2016 foi plenamente capaz de dialogar com o eleitorado.
Nas últimas semanas, já não eram visíveis, na paisagem política francesa, apenas os neoliberais e os ultradireitistas. A Nupes tornou-se capaz de projetar um novo horizonte comum. Mélenchon contribuiu de modo decisivo para tanto. Numa entrevista concedida logo após ter êxito na articulação multipartidária, ele lançou um desafio direto a Emmanuel Macron. Comparou o pleito parlamentar a um “terceiro turno” das eleições presidenciais. Afirmou que o presidente não havia alcançado a reeleição por ser o preferido do eleitorado, mas apenas porque este empenhou-se em afastar, a qualquer custo, a ameaça da extrema direita. Chamou-o a derrotar, na nova disputa, o neoliberalismo.
A potência desta mensagem não passou despercebida ao New York Times. Em matéria publicada no domingo (12/6), o jornalista Constant Mehéu descreve a popularidade da candidata da Nupes, Marie Pochon, mesmo numa circunscrição eleitoral rural no sul do país, onde o voto é tradicionalmente de centro-direita. Este domínio está agora ameaçado, revela o texto, por dois fatores.
A esquerda, que tradicionalmente apresentava quatro candidaturas – nenhuma dos quais com chances efetivas – , está unida em torno de Marie. Mas, talvez ainda mais importante, a candidata já não se preocupa em apresentar aos eleitores as diferenças entre seu partido e os demais de esquerda. Sua energia política está concentrada em dialogar com a população sobre os problemas concretos provocados pelaa políticas neoliberais no território: insegurança econômica, a falta de médicos, a precariedade do transporte coletivo ou a queda da produção de lavanda, devido às altas temperaturas provocadas pela mudança climática. Marie fala em alternativas concretas – não nas antigas disputas ideológicas. Propõe elevar o salário mínimo, preencher os vazios assistenciais da saúde, restabelecer os pequenos ramais ferroviários, lançar investimentos em fontes energéticas limpas. E reflete: “estamos assistindo à emergência de um ambientalismo rural, um novo tipo de esquerda”.
Fenômenos semelhantes repetem-se em muitas das 577 circunscrições eleitorais francesas. Para Stewart Chau, analista político francês entrevistado pelo repórter, a aliança articulada por Mélenchon criou “um novo centro político de gravidade” e é “a única novidade real nesta eleição”. No próximo domingo (19/6), segundo turno das eleições parlamentares, a Nupes estará presente em cerca de 350 das disputas. Há cinco anos, os partidos que a compõem, juntos, não figuraram em mais de 150.
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Haveria meios de a reviravolta atual resultar na eleição, pela Nupes, do maior grupo parlamentar? É pouco provável. Por ser 100% distrital, e prever em todos os casos um segundo turno, o sistema eleitoral francês dificulta este hipótese. A tendência principal é de que os candidatos neoliberais recebam o voto da ultradireita, nos distritos em que chegarem ao segundo turno – e vice-versa.
Mas a intranquilidade do presidente Macron é nítida. Nesta terça-feira (14/6), ao pronunciar-se no aeroporto de Orly, ele mal disfarçou o temor – e tentou agitar, diante dos eleitores, o espantalho de um “tremor republicano”. Minutos antes de viajar para a Romênia, onde participaria de atividades ligadas à luta da OTAN contra a Rússia, afirmou que “nada seria pior que agregar, à desordem mundial, uma desordem francesa”. Alguns de seus ministros acrescentaram – sem base alguma – que a Nupes deseja “tirar a França da União Europeia”. Mélenchon respondeu com ironia. Sugeriu que o presidente “toma um avião, ao perceber que seu navio afunda”. E zombou de ter programado uma agenda internacional em plena campanha pelo Parlamento: “Não contava com nosso avanço…”
Faltando quatro dias para o segundo turno, a previsão mais confiável indicava um impasse político. A Nupes não conseguiria ser majoritária, mas Macron também não – numa rara derrota, para um presidente recém-eleito. Herói dos neoliberais em todo o mundo, visto por eles como um líder indispensável na Europa há apenas alguns meses, ele arrisca-se agora a perder a condição de levar seu programa adiante. A França neoliberal – hoje peça decisiva na ordem global dominada pela lógica dos mercados – parecia titubear. Uma outra França, herdeira das tradições de 1789 e 1968, mantinha-se de pé e em luta. Excelente perspectiva, no momento.