Primárias uruguaias do domingo passado revelam partido de esquerda de Pepe Mujica forte e com condições para destronar conservadores do Partido Nacional. Mas eleitorado do interior ainda resiste.
Por Matias Pinto, compartilhado de Intercept Brasil
DESDE 1999, o eleitorado uruguaio participa das internas partidárias, devido à reforma constitucional de dois anos antes. Nas três primeiras eleições realizadas no país após a ditadura civil-militar que durou entre 1973 e 1985, as diferentes chapas de cada partido participavam de todo processo.
Hoje, o sistema funciona assim: nas internas partidárias, que aconteceram no último domingo, dia 30 de junho, os eleitores escolhem em que partido irão participar das primárias. Depois, votam para decidir qual será o candidato a presidente desse partido.
A escolha do candidato a vice-presidente é feita pelo partido e tradicionalmente fica com o segundo colocado nas internas para presidente, mas os partidos podem não obedecer esse costume.
O sistema é similar ao dos Estados Unidos e se difere do Brasil, onde cada partido cria as próprias regras para decidir seus candidatos e apenas filiados podem votar.
A reforma constitucional que instituiu as eleições internas serviu para fortalecer os partidos e coalizões.
Julio María Sanguinetti – correligionário de Juan María Bordaberry, do Partido Colorado, que havia dado o autogolpe na década anterior – foi eleito com aproximadamente 30% dos votos no pleito de 25 de novembro de 1984.
O resultado foi menos de 2% a mais que o segundo candidato mais votado Alberto Zumarán, do Partido Nacional, outra tradicional legenda conservadora, cujos apoiadores são chamados coloquialmente de “blancos”.
Contudo, os colorados tiveram mais de 40% da preferência, somada a chapa encabeçada pelo ex-presidente Jorge Pacheco Areco, 1967-72, e os votos na legenda, o que representava mais de 6% da participação conjunta dos blancos.
Em 1994 Sanguinetti foi eleito novamente – lembrando que no Uruguai não existe a possibilidade de reeleição consecutiva – com 23,59% dos votos, enquanto as demais chapas coloradas e os votos na legenda somaram mais 7,33%, totalizando 30,92%.
Já o conjunto do Partido Nacional teve 29,83% e a chapa da Frente Ampla outros 29,26%, com o então governador de Montevidéu – Tabaré Vázquez – como candidato principal. Em uma população que há décadas estagnou na casa dos 3 milhões de habitantes, estas diferenças percentuais representam apenas algumas dezenas de milhares de eleitores.
Cabe lembrar que o socialista Vázquez foi eleito em 2004, como primeiro presidente à esquerda no espectro político uruguaio – rompendo com o bipartidarismo que durava desde a década de 1830 – fazendo o seu sucessor José “Pepe” Mujica (2010-15), ex-guerrilheiro tupamaro, e ganhando novamente as eleições em 2014.
Portanto, a reforma constitucional que instituiu as eleições internas serviu para fortalecer os partidos e coalizões e evitar que uma chapa fosse eleita com baixa adesão ao seu programa de governo.
Baixa participação social
Na eleição do domingo passado, foi observado o pior comparecimento do eleitorado desde que este modelo foi inaugurado há 25 anos, com cerca de apenas 35% de participação dos eleitores habilitados.
Os frenteamplistas tiveram 42,36% dos votos, mais do que o dobro do percentual de 2019. O representante escolhido pela Frente Ampla é Yamandu Orsi, ex-governador de Canelones – uma das 19 subdivisões administrativas do Uruguai.
Orsi foi escolhido com quase 60% da preferência da cinquentenária coalizão de esquerda, mais de vinte pontos percentuais acima de Carolina Cosse. Cosse, atual governadora da capital uruguaia, formará a chapa com Orsi, em uma demonstração de unidade do partido de esquerda.
Já Alvaro Delgado, ex-secretário da presidência e apontado pelo atual presidente Luis Alberto Lacalle Pou como seu sucessor, alcançou quase 3/4 dos votos do Partido Nacional, que teve 33,43% de eleitores. O Partido Nacional foi a segunda legenda mais votada, mas perdeu quase um terço da participação em relação às primárias anteriores.
A economista Laura Raffo teve a preferência de 19,2% dos blancos, mas não foi escolhida como a candidata à vice-presidente da chapa. A vice ficará nas mãos de outra mulher, mas que não tem um sobrenome tão conhecido entre os nacionalistas, como a filha do outrora ministro e senador Juan Carlos Raffo.
Trata-se da jornalista Valeria Ripoll, que já foi secretária geral do sindicato Asociación de Empleados y Obreros Municipales e militou no Partido Comunista antes de filiar-se ao PN no ano passado.
A escolha de Ripoll surpreendeu quadros tradicionais do partido, entre eles o ex-presidente Luis Alberto Lacalle Herrera (1990-95), mas revela uma estratégia ousada para disputar o voto da centro-esquerda não tão engajada na Frente Ampla.
Os colorados venceram em apenas em um departamento – Rivera, na fronteira com o Brasil, que coincidentemente homenageia Fractuoso Rivera, que foi presidente entre 1830-34 e 1839-43, um dos fundadores do Partido Colorado – e tiveram 10,47% de participação no país, pouco mais da metade de 2019, sendo que destes 39,5% optaram pelo advogado Andrés Ojeda como o seu candidato à presidência.
O também advogado Robert Silva, ex-presidente do conselho geral da Administración Nacional de Educación Pública, obteve 22,4% dos votos colorados e será novamente candidato a vice-presidente, já que formou parte da chapa derrotada na eleição passada ao lado de Ernesto Talvi.
O Cabildo Abierto, partido de extrema-direita fundado pelo general Guido Manini Rios, após o seu afastamento do comando do Exército em 2019 pelo então presidente Tabaré Vázquez, viu sua participação murchar entre uma interna e outra, indo de 8,35% a 1,78%, tendo o agora senador Manini Rios como candidato único.
Outras dez legendas partidárias somaram menos de 1,25% dos votos, pouco mais de 10 mil eleitores.
A capital uruguaia, que tem aproximadamente 40% da população, é o principal reduto da esquerda.
O primeiro turno está previsto para o último domingo de outubro, 27. Levando em conta que a população uruguaia é quase quatro vezes menor do que a cidade de São Paulo e que cerca de seiscentos mil residem fora do país e não podem votar no exterior, a corrida eleitoral é bastante apertada e a disputa por votos tende a se acirrar.
Prova disso é que de duas das cinco eleições internas, o partido que teve mais votos no primeiro semestre não elegeu o presidente na segunda metade do ano, e em ambos os casos foram os blancos.
Os blancos só conseguiram eleger Lacalle Pou há 5 anos, com a formação da coalizão multicolor – que ia do centro à extrema direita – no segundo turno, ao lado dos inimigos históricos do Partido Colorado e também do Cabildo Abierto, Partido Independiente e Partido de la Gente, estas últimas legendas surgidas na década passada.
Mesmo assim, a vitória do conjunto da oposição a um quarto mandato da Frente Ampla foi bastante apertada, com menos de 40 mil votos de diferença de Lacalle Pou para o candidato derrotado Daniel Martínez, outro ex-governador de Montevidéu.
A capital uruguaia, que tem aproximadamente 40% da população do país, é o principal reduto da esquerda, sendo governado ininterruptamente por frenteamplistas desde 1990.
Essa clivagem frequente nas disputas eleitorais entre capital e interior foi retratada pela paródia “La Voz del FA (Fuiste)” da murga Un Título Viejo, no carnaval de 2020, logo após a derrota nas urnas.
Y a vos, mi querido Interior, ¿que te pasó?
Fue que la fórmula no te representaba
Y vos querías alguien que te conociera
Qué te entendiera
(E com você, meu querido Interior, o que aconteceu com você?/Foi que a fórmula não te representou/E você queria alguém que conhecesse você/O que eu entenderia você)
Este parece ser o principal desafio para a Frente Ampla voltar ao poder, estabelecer um diálogo maior com o interior do país, que observou um aumento da criminalidade após a pandemia. Essse tem sido o principal tópico do debate eleitoral e fez com que a aprovação de Lacalle Pou variasse entre 43% a 50% neste semestre que passou.