Por Javier Sampedro, El País –
Psicanálise freudiana não teve o menor efeito na neurociência atual: é outra teoria estéril para a ciência
Se a porta mais real da ficção é 221B de Baker Street, onde Sherlock Holmes atendia seus clientes pitorescos, o mais ficcional da realidade é o 19 da rua Berggasse, ondeSigmund Freud tratou seus próprios pacientes, durante o meio século que mudou o mundo e nossa compreensão dele, e também nosso conhecimento sobre o cérebro e a mente, que em última análise terminou sendo a mesma coisa. Vamos examinar aqui três termos ou conceitos, se quisermos ser pomposos, que estão associados a Freud como as duas metades de um velcro: o significado dos sonhos, o poder do inconsciente e o valor clínico da psicanálise, os três lemas ou slogans freudianos que prometiam abrir um continente à vida intelectual do século XX.
Na ciência, no entanto, as ideias são baratas. Por mais brilhante que sejam, só servem se forem corretas: se saírem ilesas de seu confronto com a realidade; e ainda mais, se terminarem sendo frutíferas e conduzirem a novos resultados práticos, e também a novas ideias certas. Aí está a dificuldade real da prática científica: que ela é prática. E é aí que Freud, um dos grandes cérebros da virada do século anterior, derrapa de forma evidente.
Os físicos dizem que há teorias corretas, erradas e “nem mesmo erradas”. Com sua maldade característica, querem destacar assim que a grande maioria das ideias sobre o mundo são perfeitamente inúteis, porque não propõem um modelo que pode ser provado correto ou falso por observação ou experimentação, mas uma divagação tão arbitrária ou confusa que não vale a pena nem se esforçar para refutá-la. A esta categoria pertence a interpretação dos sonhos que Freud publicou há um século ou mais: a das ideias que nem mesmo estão erradas.
Ainda não sabemos o que significam os sonhos. Suspeitamos que não significam nada, mas a neurociência ainda não conseguiu demonstrar. Há indícios de que o cérebro não para quieto à noite, que sua atividade automática continua tentando resolver o que o dia deixou pendente, limpar o mistério, resolver o enigma. Não há nenhum indício, no entanto, de que isso esteja relacionado com a histeria, a psicose ou desejos reprimidos da mente infantil. Eu acredito que a ciência vai conseguir interpretar os sonhos em algum momento não muito distante, mas tenho a forte impressão de que ter desejado sua prima quando era criança não vai ser a explicação. Perguntem novamente daqui a dez anos.
Dos tsunamis de tinta que a psicanálise verteu, poucos mililitros terão sido de ciência. Se Freud levantasse a cabeça e tivesse que viver das citações que os neurocientistas atuais fazem de seus artigos, voltaria ao túmulo morto de fome sem poder pagar a recaída em seus famosos vícios. A psicanálise freudiana não teve nenhum efeito sobre a neurociência atual: é outra teoria estéril para a ciência, mais uma daquelas ideias “nem mesmo erradas” que tanto aborrecem os físicos.
Talvez a grande ideia de Freud é a do subconsciente, e aí sim podemos dizer, com a melhor ciência disponível, que acertou em cheio. Os neurocientistas sabem hoje que a grande maioria da nossa atividade cerebral está ocorrendo continuamente sem que estejamos conscientes disso: que nossa consciência, isso que chamamos o “eu”, não é mais que um passageiro na proa de um transatlântico sem a menor noção de toda a máquina prodigiosa que tem debaixo de seus pés.
Se isso é freudiano, todos somos, amigos, mesmo sem saber.