Seriado de comédia icônico dos anos 1990 volta à TV e, sem diversidade nem abordagens das agendas do seu tempo, constrange muito mais do que diverte
Por Aydano André Motta, compartilhado de Projeto Colabora
A premissa, à época – os antediluvianos anos 1990 –, ostentava pendores revolucionários: os amigos são a família escolhida, com quem, em verdade, dividimos dores e delícias, amores e desafios, conquistas e tristezas. O cenário da trama era certeiro: Nova York, Manhattan, o icônico Greenwich Village, bairro-fetiche planetário. Não deu outra – “Friends” instantaneamente tornou-se uma das sitcons mais populares de todos os tempos.
Mas a odisseia bem-humorada dos seis jovens amigos envelheceu mal demais!
Braço, na TV por assinatura, do conglomerado de mídia Warner Bros, o Warner Channel está reexibindo a produção desde o feriado da quarta-feira (1º). Nos parâmetros sociais da terceira década do século 21, dá vergonha de assistir – e olha que o acima assinado tem lugar de fala; escala-se entre os fãs originais, possui caneca, camiseta e estava sempre diante da TV nas noites de terça-feira, à espera do episódio inédito.
Para começar, inexiste diversidade – seis jovens brancos, heterossexuais cis, que só interagem com alguém diferente deles de maneira totalmente bissexta. Além disso, Rachel, Monica, Phoebe, Chandler, Joey e Ross atravessam 10 temporadas na superfície, sem abordar, mesmo que no viés da comédia, questões e agendas do cotidiano.
Rever a confraria em 2024, com suas piadas sexistas, a objetificação feminina e a ausência de dilemas raciais (entre outros) incomoda. As personagens têm “profissões de mulheres” no mais trágico sentido: Monica, cozinheira; Rachel, funcionária de empresas de moda; Phoebe, massagista. A plateia e os parceiros se divertem com o machismo tóxico de Joey, que passa por questionamentos quase imperceptíveis. Ross persegue Rachel nos padrões do assédio criminoso – e tudo certo.
Parece algo congelado no tempo, como o World Trade Center imponente no skyline de Manhattan (está lá em sete temporadas). A ex-mulher lésbica de Ross e o pai trans de Chandler são coadjuvantes quase invisíveis. Os episódios se sucedem em piadas como os amigos tentando flagrar uns aos outros pelados no banho ou a disputa pelo apartamento de Monica.
Nas etapas finais, piora, porque até as tramas originais encaretam, com o envelhecimento dos personagens. Passa a ser tudo sobre casamentos, filhos, construção de patrimônio… E as últimas quatro temporadas foram no século 21, quando as questões sociais e de comportamento dominavam os debates – como acontece até hoje.
A época em que começou, aliás, não serve como desculpa. Série anterior a “Friends”, “Seinfeld” (1989-1988) se ocupa, a seu jeito (brilhante), de temas como imigração, envelhecimento, tolerância LGBTQIAP+, machismo, solidariedade, correção política. Também se passa em Nova York (mais concentrada no igualmente mauricinho Upper West Side), e tem como protagonistas um grupo de amigos – quatro, em vez de seis. Mas dá de 7 a 1 em qualidade do roteiro.
Outro fantasma espreita “Friends”: a de ter nascido de um plágio. Em 1993 (um ano antes, portanto) estreou na TV americana um seriado chamado “Living Single”, no qual seis amigos se encontram frequentemente num apartamento em Manhattan para conversar sobre seus dramas, alegrias, amores e desilusões. A diferença fundamental: os protagonistas eram todos negros. Acabou com metade das temporadas de sua “prima” célebre.
Jennifer Aniston, Courtney Cox, Lisa Kudrow, Matthew Perry, Matt LeBlanc e David Schwimmer, os astros de “Friends”, terminaram a série delirantemente ricos. Nos anos de maior sucesso, superaram o milhão de dólares, cada um, de cachê por episódio e construíram carreiras bem-sucedidas no cinema e na TV. (Matthew Perry, o Chandler, foi encontrado morto ano passado, afogado na banheira de sua casa, em Los Angeles. A autopsia revelou a presença de um anestésico, causador de alucinações, que levaram ao afogamento acidental. Ele tinha 54 anos.)
Os seis amigos retornam à TV em um novo tempo, no qual a diversidade e a conexão com a vida real se transformaram em cláusulas pétreas da produção audiovisual. Simplesmente o público não engole mais tramas alienadas nem a escalação de elencos inverossímeis.
Sem representatividade, não tem mais conversa, nem em Manhattan, nem em qualquer outro lugar. Papo de amigo.