Frutos do Cerrado tornam-se sustento das cooperativas agrícolas na pandemia

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Por Ethieny Karen, compartilhado de Projeto Colabora – 

Mesmo com dificuldades no cultivo de alimentos orgânicos, pequenos produtores diversificam formas de comercialização durante a pandemia e geram renda para povos tradicionais do bioma

Na série “Grilagem espreita o Cerrado”, que termina com esta reportagem, o #Colabora, em parceria com o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), esquadrinhou a região para dimensionar os impactos da proposta de mudança na regulação fundiária. Mostramos os perigos que espreitam o bioma, o potencial da região e os saberes de seus povos tradicionais.




Mato Grosso do Sul é o quinto maior produtor agrícola do Brasil, aponta o Levantamento de Grãos da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), estimando a produção em 23 mil toneladas de grãos (safra 2020/21). Mesmo com esse desempenho, as cooperativas agrícolas do estado sofrem com desmonte de políticas públicas e falta de incentivos fiscais para se manter – enquanto a população sul-mato-grossense sofre com a insegurança alimentar durante a pandemia.

Os produtores orgânicos abastecem escolas, feiras livres e quartéis, e colaboram na alimentação de pessoas em vulnerabilidade. Além de alimentos orgânicos como hortaliças e leguminosas, as cooperativas também investem no cultivo de frutos do Cerrado como castanha-de-baru, pequi e guavira, entre outros.

Agricultura familiar alimenta muita gente

Atualmente, há 24.608 produtores orgânicos no Cadastro Nacional de Produtores Orgânicos (CNPO). Altair de Souza, fundador do Centro de Produção, Pesquisa e Capacitação do Cerrado (Ceppec) e do assentamento Andalucia, na zona rural de Nioaque, enfatiza os benefícios aos pequenos produtores e ao meio ambiente. “O conceito de agricultura familiar, baseada em produção limpa e sustentável, ajuda na preservação e distribui melhor o valor econômico.”

Livres de agrotóxicos, os alimentos movem a economia de pequenos agricultores e de comunidades tradicionais, como indígenas, quilombolas e assentados da reforma agrária. Sua produção tem apoio do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) organização de 31 anos de existência que atua nos biomas Cerrado, Amazônia e Caatinga. Com sede em Brasília e um escritório em Santa Inês (MA), a organização tem como foco fortalecer projetos de agricultores familiares e comunidades tradicionais inseridos nos ecossistemas de atuação.

Entre os projetos, Rodrigo Noleto, coordenador do Programa Amazônia no ISPN, ressalta a importância do fundo de Promoção de Paisagens Produtivas Ecossociais (PPP-ECOS). “O PPP-ECOS se tornou educativo, porque ensina gestão e recuperação de áreas degradadas.”

Centro de referência dos frutos do Cerrado luta com dificuldades

O Ceppec busca, desde a inauguração, em 2003, auxiliar na pesquisa e na capacitação de pequenos produtores rurais da região. Hoje, tornou-se centro de referência para trabalhadores do Cerrado e do Pantanal, auxiliando na comercialização de produtos orgânicos, na manutenção dos utensílios agrícolas e na captação de recursos para a execução de novos projetos. Viabiliza, assim, parcerias com outras ONGs e fundos de investimento nacionais (como o PPP-ECOS) e internacionais.

As famílias assentadas produzem alimentos para consumo próprio e também vendem frutos típicos do Cerrado advindas do extrativismo sustentável, conjugando geração de renda e conservação. Altair de Souza, fundador do Assentamento Andalucia e atual diretor secretário da Ceppec, explica como o assentamento diversifica a produção a partir da castanha do baru. “É o carro-chefe do trabalho, no qual a gente oferece farinha, pães e doces a partir dela. Tem também o pequi que usamos para alimentação vendemos a polpa. Além de outros frutos, como a bocaiuva, a jatobá e a guavira”, enumera.

O Ceppec contou, ao longo dos anos, com a parceria do setor público por meio da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), dentro do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), para os assentados alimentarem famílias em vulnerabilidade social em Nioaque. Mas a colaboração se encerrou com a mudança de governo e a pandemia. “Contribuímos durante anos para garantir segurança alimentar, trabalhamos para transformar em proposta de governo, mas agora enfrentamos o desmonte”, lamenta Altair.

Ele ressalva que, mesmo com a pandemia, o Ceppec continua gerando renda, dentro da busca por empoderamento das famílias assentadas e sua capacitação para a independência financeira. “Nossa política de desenvolvimento sempre mirou nessa autonomia, para que não ficássemos à mercê de programas governamentais”, atesta Altair. “Não só financeiramente, mas como uma sociedade organizada politicamente.”

A batalha da autonomia financeira dos pequenos produtores

Colheita e seleção de castanha de baru no Ceppec, em Nioaque (MS). Foto divulgação
Colheita e seleção de castanha de baru no Ceppec, em Nioaque (MS). Foto divulgação

Olácio Komore é um dos fundadores da Associação dos Produtores Orgânicos de Mato Grosso do Sul (APOMS) que atua há 20 anos em Glória de Dourados. Atualmente, eles contam com 12 núcleos de formação beneficiando cerca de 100 escolas – municipais e estaduais – da região da Grande Dourados. Os assentados conseguiram através de parcerias com a Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS) cursar agroecologia, que os capacitou e auxiliou na comercialização dos produtos orgânicos. Desde sua criação, a APOMS priorizou a captação de parcerias com diversas organizações governamentais e não-governamentais, para dar autonomia financeira aos associados.

O assentamento Lagoa Grande, ligado à APOMS, produz e vende alimentos à base de frutos do Cerrado, como bolachas de baru e pequi, doces e conservas. Em 2016, quando o setor começou a sofrer cortes e perder espaço nos programas governamentais, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), eles rapidamente se organizaram para buscar outras formas de comércio. “A APOMS sempre incentivou a presença dos agricultores nas feiras, porque quando extinguiram o Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), os programas e investimentos perderam força”, relembra Komore.

O dirigente lamenta que diversos programas de soberania alimentar foram se extinguindo ou sofrendo um desmonte. “Tudo que a agricultura familiar lutou para conquistar durante esses anos está acabando. A grande perda foi acabar com o MDA, que tinha como foco a agricultura familiar. Agora a gente luta e acaba se reinventando, mas quem perde é toda a sociedade”.

Durante a pandemia, ele relata, os produtores tiveram dificuldades em escoar os alimentos, mas mesmo assim não pararam as atividades, sustentando o faturamento. “Com as escolas fechadas, continuamos a plantar, mesmo sem ter onde entregar. As feiras estiveram fechadas na primeira fase da a quarentena, atrapalhando nossa cadeia produtiva. Foi difícil, mas sobrevivemos”, alivia-se, falando das cerca de 170 famílias que trabalham com os produtos certificados pela APOMS.

Os benefícios dos frutos do Cerrado

O interesse pelos alimentos produzidos a partir dos frutos do Cerrado se fortaleceu com a chegada de universidades e empresas interessadas nos benefícios do bioma. Os produtores que vendiam os frutos in natura começaram a negociar geleias, pães, bolos, doces e em conserva.

Jairo Arruda, diretor da União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária (UNICAFES-MS), planeja a aquisição de máquinas para processar os produtos a serem vendidos, eliminando a dependência de fornecedores externos. “Um saco de baru de 25 quilos vale R$ 50. Um quilo processado alcança R$ 100. Então a empresa que comprar e processar vai vender melhor, lucrando mais do que o agricultor“, observa.

Os frutos são processados e transformados em farinhas para bolos, pães, bolachas e até suplementos. São ainda oferecidos em conserva, desidratados e em sorvetes. Sua comercialização nesses formatos atinge o triplo do valor in natura.

Além de serem frutos regionais, parte da riqueza cultural dos povos tradicionais, também são importantes para a preservação ecológica, além de nutritivos, afirma Raquel Pires Campos, pesquisadora e docente da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). “São produtos de alto valor nutricional, saborosos e que permitem grande diversificação de produtos. Além de gerar renda para as comunidades, também estão associados à conservação dos recursos naturais da biodiversidade”, analisa ela.

A produção cuidadosa das comunidades tradicionais

Agricultor durante a colheita na comunidade quilombola São Miguel, em Maracaju (MS). Foto Ethieny Karen
Agricultor durante a colheita na comunidade quilombola São Miguel, em Maracaju (MS). Foto Ethieny Karen

A comunidade quilombola São Miguel, na zona rural de Maracaju, é referência na produção de produtos feitos com frutos do Cerrado e cultivados na agricultura familiar. A produção empoderou as 55 famílias residentes e incentivou a autonomia financeira, como relata Joaquina Gonçalves. “Sou empregada de mim mesma e me sinto poderosa. Aqui produzo geleia de carambola, tamarindo, além de farinhas de outros frutos. Já fui até convidada a participar de feiras para mostrar o que a gente produz”, orgulha-se.

Segundo Jorge Gonçalves, presidente da Associação Quilombo São Miguel, a comunidade sempre se beneficiou racionalmente dos produtos do Cerrado, usando raízes para tratar males como diarreia e dores de cabeça. “Esse conhecimento é ancestral; com ele aprendemos a usar os frutos não apenas para matar a fome, mas como remédios. O araçá e a raiz do barainho são dois exemplos que nos ajudam a curar doenças. Os postos de saúde ficam muito longe da nossa comunidade”, lamenta ele. O quilombo abastece todas as escolas municipais de Maracaju e também está presente em feiras, com hortaliças, frutas, mel, leite e artesanato.

Outra consequência da pandemia, o fechamento das escolas atingiu duramente a agricultura familiar. Sem a remessa quinzenal para as instituições de ensino, uma parte do negócio murchou, relata Jorge Gonçalves. “Quase não tínhamos renda, então decidimos amenizar o problema com trocas: quem produzia algum alimentos trocava por outro ou alguma mercadoria. Às vezes dava para vender nas feiras, mas foi bem difícil. E não tivemos qualquer ajuda do governo”, critica.

O extrativismo sustentável também garante renda e alimento para aldeias indígenas no Mato Grosso do Sul, como a Córrego Seco, dentro do território indígena Limão Verde, a 24 quilômetros de Aquidauana. Paulo Amorim, cacique e produtor de rapadura e melado de cana-de-açúcar, explica que muitas famílias produzem alimentos, prática passada através das gerações.

Os Terena também vendem mandioca, quiabo, rapadura, pequi, guavira e outros. Foi através de parcerias com ONGs, que os indígenas conseguiram se capacitar para melhorar a conservação e comercialização. “O pequi é nativo, a gente acha no mato e faz o extrativismo, mas ele dura apenas um mês. Então, o Senac ofereceu cursos para guardar o pequi, criando compotas e outros”, explica Amorim.

Desmonte das políticas públicas de soberania alimentar

Melaço de cana-de-açúcar produzido pelos indígenas Terena de Córrego Seco (MS). Foto Paulo Amorim Terena
Melaço de cana-de-açúcar produzido pelos indígenas Terena de Córrego Seco (MS). Foto Paulo Amorim Terena

Dados do IBGE apontam que um terço dos lares sofre com insegurança alimentar no Brasil. Quase 5% dos lares no MS enfrentam falta de comida, no cruel paradoxo expresso na safra recorde de soja no mesmo estado – 13,3 milhões de toneladas. O incentivo direcionado a grandes produtores e latifúndios que produzem para exportação enfraquece a soberania alimentar. Os pequenos produtores padecem sem ajuda e têm dificuldade para conseguir o crédito destinado à agricultura familiar.

Altair de Souza, dirigente da Ceppec, lamenta o desmonte dos projetos de soberania alimentar. “Não só para nós, mas para as famílias em vulnerabilidade social e econômica. Estamos à beira do caos social, que chega na carência alimentar”.

Jairo Arruda, da UNICAFES-MS, expõe as dificuldades que os produtores enfrentam. “Quando os agricultores viram que não teria como comercializar, devido à pandemia, pararam de produzir e vão ficar assim pelo menos dois anos. O impacto na vida das famílias é dramático”.

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