Se o governador João Doria proíbe o futebol em São Paulo, os cartolas locais mandam seus times jogarem seu Estadual no interior ou no litoral do Rio de Janeiro, depois de fracassar em promover um São Bento x Palmeiras em Belo Horizonte. A CBF marca para essas cidades fluminenses jogos entre equipes de outros estados pela Copa do Brasil. Que se danem os contatos em aeroportos, aviões, ônibus, restaurantes e hotéis, pois o “protocolo” dá salvo conduto à insensibilidade dos cartolas

“Ou vocês jogam ou estão fodidos.”




Com seis curtas palavras, o presidente da CBF, Rogério Caboclo, fez um resumo quase completo do que é o futebol brasileiro atual. Cada vez menos respeitado no mundo, com times de segunda linha em relação aos principais da Europa, exportador de pés de obra cada vez mais jovens e submetido ao jugo de uma confederação que faz da chantagem e das mesadas aos cupinchas estaduais suas táticas de perpetuação no poder.

Ele se dirigia aos clubes, assolados pela pandemia da Covid-19 e ao mesmo tempo premidos pelas necessidades financeiras que ameaçam não apenas suas forças atuais como, no caso de alguns deles, a própria sobrevivência. Clubes estes, diga-se, que aceitam passivamente a imoral tutela exercida por um cartola que não está nem aí para os mortos em série do vírus que abala o mundo inteiro há mais de dois anos.

Para Caboclo ‒ seguidor devoto, nas ideias retrógradas e métodos, de Ricardo Teixeira, José Maria Marin e Marco Polo del Nero ‒, mais importante do que seguir as recomendações das autoridades de saúde e/ou determinações de prefeitos e governadores que mais e mais se convencem da necessidade de isolamento social é pôr os times em campo. Com a autoridade despótica de quem tem a caneta e controla polpudas verbas dos contratos publicitários, proclama em alto e bom som: “Nossos protocolos são seguros”.

Baseia-se em parecer do chefe da Comissão Médica da CBF, Jorge Pagura (neurocirurgião especialista em coluna), no que é ecoado por seu secretário-geral, Walter Feldman, e por presidentes de federações estaduais, como o da Paulista, Reinaldo Carneiro Bastos.

Se é assim, por que o Marília tinha nesta quarta-feira pelo menos 16 infectados? Resultado do périplo maluco a que foi submetido, ao viajar a Varginha para enfrentar o Criciúma, saber na chegada que o governador mineiro, Romeu Zema, proibira futebol no estado, retomar a viagem de ônibus e jogar contra o time catarinense na capixaba Cariacica. Um macabro bye, bye, Brasil.

Sem contar que ultimamente já tivemos jogador barrado no intervalo porque, depois de disputar o primeiro tempo, se descobrira infectado pelo coronavírus; e clubes como Flamengo, Palmeiras, Corinthians e Atlético-MG tiveram muitos casos simultâneos de contaminações.

Mas isso não parece preocupar os negacionistas Caboclo, Pagura, Feldman e Carneiro, entre outros. Se o governador João Doria proíbe o futebol em São Paulo, os cartolas locais mandam seus times jogarem seu Estadual no interior (Volta Redonda) ou no litoral (Saquarema) do Rio de Janeiro, depois de fracassar em promover um São Bento x Palmeiras em Belo Horizonte. A CBF marca para essas cidades fluminenses, com o acréscimo de Mesquita, jogos entre equipes de outros estados pela Copa do Brasil. Que se danem os contatos em aeroportos, aviões, ônibus, restaurantes e hotéis, pois o “protocolo” dá salvo conduto à insensibilidade dos cartolas.

Na frase de Caboclo não está apenas o desprezo pela pandemia cujo saldo de mortos no país superou os 300 mil (TREZENTOS MIL!) nesta quarta-feira. Está mais do que implícita a ameaça nela contida: “Ou jogam ou estão fodidos”.

E aí a culpa vai para os cartolas dos clubes. Mais do que nunca, eles têm a oportunidade de tentar tomar as rédeas de seus destinos, de se unirem em torno da sobrevivência. Alguns, se não se cuidarem, ficarão na saudade como times grandes ‒ Botafogo, Cruzeiro e Vasco, hoje na Série B. Outros vão pelo mesmo caminho. Que eles se unam, ponham de lado as diferenças que devem se limitar às torcidas e pensem em soluções conjuntas.

Que discutam como grupo cotas de TV e exploração das novas plataformas digitais. Iniciativas que possam tornar mais rentável e atraente o Campeonato Brasileiro (sem a indecência de promover no tapetão a volta de botafoguenses, cruzeirenses e vascaínos), consolidando-o como o principal produto do futebol nacional; e fortalecendo no bojo as Séries B, C e D. Que deixem à CBF a organização da tabela e olhe lá, que a entidade ainda tem o filão da Seleção para aproveitar.

A frase de Caboclo deveria ser mais bem analisada pelos clubes, razão de ser da paixão do torcedor. Vivemos um período de exceção, que deveria se traduzir em reflexão, tomada de consciência e planejamento para o futuro.

Um futuro no qual não caiba a chantagem de um negacionista a refletir o pensamento de quem deveria comandar um país com mais de 300 mil motivos para chorar.