Futebol: invenção ou descoberta?

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Por Ulisses Capozzoli, no Facebook

Como a matemática, o futebol é invenção ou descoberta? Se um desses pesquisadores, que nunca vi em carne e osso, me perguntasse na rua eu diria que é descoberta. E acrescentaria, com ponderação que julgo indispensável, que toda descoberta tem algo de invenção e toda invenção traz em si uma porção de descoberta. As coisas são assim: não existem em estado puro.




Alguém pode argumentar que os ingleses inventaram o futebol. Ou, ao menos deram forma moderna a uma prática remota de manejar uma bola com os pés numa combinação de engenho arte. Na China e no Japão (uma certa extensão da China), há mais de duas mil voltas da Terra em torno do Sol havia um esporte que qualquer um de nós reconheceria como ancestral do futebol.

Um bisavô deste esporte que, agora, fascina multidões. Na Grécia, o proto-futebol é ainda mais antigo. De lá para cá o futebol foi refinado. Considerem o caso do impedimento, que meu avô, um craque na zaga, chamava de “offside”. É um refinamento ético e estético, de que andamos carentes na vida pública nacional. Um jogador, um atacante, em impedimento beneficia-se dessa posição de favorecimento, o que retira dele o mérito maior de uma partida: o de fazer o gol. O que torna a situação insustentável, já que o significado dessa expressão em inglês (“goal”) é “objetivo”.

Vantagem para o “impedido”, com enorme desvantagem para o goleiro, o “goalkeeper” como identificava dona Carminha do Nico Pedreiro, sopeira da minha escola primária no Sul das Minas Gerais e primeira feminista de que tive conhecimento. O mesmo acontece com a mão na bola, privilégio do goleiro, circunscrito ao território de seu domínio, a chamada “grande área”. Mão na bola é penalidade. E dentro da grande área, penalidade máxima, o que significa dizer: absolutamente vetada, sob pena de comprometimento completo do engenho e arte que é o futebol.

O Brasil ama o futebol mas ainda não se deu conta da refinada sutileza do impedimento e da mão na bola. Por aqui, com dificuldade, nos damos conta, quando muito, da “mão grande” do juíz. De juízes corruptos, incapazes, comprometidos com um dos lados, o que retira de uma partida, ou do que quer que seja, qualquer resquício de legitimidade. Um juiz desonesto é o sinônimo mais acabado da pura farsa. Alguém pode questionar quanto ao entendimento de futebol como descoberta, em vez de invenção.

Meu argumento é que a bola é esférica e a esfera uma forma em equilíbrio, de um ponto de vista gravitacional. Num corpo esférico, todos os pontos da superfície estão à mesma distância do centro. Por isso as estrelas são esféricas e não quadradas, retangulares ou triangulares. A esfera, neste sentido, é lúdica. Uma esfera, como a bola, desliza sobre um plano. O que um quadrado, um retângulo ou triângulo são incapazes de fazer. Por isso é possível defender que o futebol seja uma descoberta, as partir da natureza da esfera. Uma diálogo entre a esfera e um plano. Na esfera, com cada ponto de sua superfície à mesma distância do centro.

Conceber o futebol como invenção é um reducionismo nada poético, estético ou funcional. Metade da população da Terra, uns 7,6 bilhões de pessoas, acompanhou a copa mundial de futebol em 2014 e é razoável supor que isso esteja se repetindo nestes dias de 2018. O futebol já deflagrou uma guerra, em 1970, a Guerra das 100 Horas, entre El Salvador e Honduras. E paralisou um desses conflitos. Em 1969, quando o Santos foi jogar na Nigéria, as lutas separatistas no sul do país que já duravam dois anos, foram temporariamente suspensas para que os beligerantes acompanhassem uma partida entre o time de Pelé e uma seleção local.

A tripulação de uma suposta nave alienígena, que se aproximasse do Sol para se abastecer de energia, como acontece em “Encontro com Rama”, de Arthur Clarke, certamente ficaria surpresa com o fato de metade da população do planeta estar festejando um grande campeonato de futebol. Com danças, cantos, hinos, festas e outros rituais. Os alienígenas poderiam pensar que somos uma espécie amigável, pacífica, disposta a reconhecer as diferenças entre seus membros pelo engenho e arte de se tocar com maestria de artistas uma esfera numa superfície plana. Mas estariam equivocados.

Temos, como espécie, o engenho e arte que o futebol expressa como nenhum outro meio, capaz de sensibilizar praticamente o planeta inteiro. Mas os visitantes estariam iludidos em suas conclusões. Não temos, como espécie, nada de pacíficos e tolerantes. Somos brutos, cruéis, mesquinhos e sanguinários, ainda que essas características também não se manifestem em estado puro.

A forma da esfera, a bola, pode ser um conceito, uma estética, um desejo ainda longe de ser realizado, onde todos os pontos da superfície estejam à mesma distância do centro. O futebol pode ser uma promessa. E uma promessa, como tudo na vida, pode ser realizada ou não.

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