Por Washington Luiz de Araújo, republicado em Brasil 247 –
Relembre entrevista de 2011 com o escritor uruguaio à Revista Brasileiros, feita por Washington Luiz de Araújo; “No mundo inteiro, talvez um pouco mais na América Latina, as palavras e a prática raramente se encontram e quando se encontram não se saúdam, pois não se reconhecem. Isto, sobretudo, com o tema dos Direitos Humanos”, diz Eduardo Galeano em um trecho:
“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o sul. Ele, o mar, está do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: ‘Me ajuda a olhar!’.” (Eduardo Galeano em “O Livro dos Abraços”)
Entrevistei Eduardo Galeano em 2011 para a Revista Brasileiros, acompanhando o cineasta Guilhermo Planel durante as gravações do documentário “Mais Náufragos do que Navegantes” (título doado pelo escritor). Para a entrevista, que abri com o texto acima de “O Livro dos Abraços”, Galeano nos recebeu no Café Brasilero, sua sala de recepção em Montevidéu.Havia quase meio século que o escritor frequentava o local, que já foi fechado três vezes. Mas, se dependesse dele, isso jamais voltaria a acontecer: “Todos os dias, faço orações para Deus e o diabo para que esse café não seja fechado novamente”.
Na época da entrevista, Galeano preparava um novo livro, sobre o qual se recusou, delicadamente, a dar detalhes: “Se contar, perco a vontade de escrevê-lo.” Tratava-se da obra “Os Filhos dos Dias”, na qual conta uma história sobre a política na América Latina para cada dia do calendário, incluindo aí o 29 de fevereiro. Falando pouco sobre e bastante sobre as mazelas impingidas pelo conservadorismo, Galeano só adiantou: “Cada livro me leva ao menos quatro ou cinco anos de trabalho. Nasci perfeccionista, signo de Virgem.”
Recentemente, iniciei uma série de reedições, para a “Revista Brasileiros” e para o site Brasil 247, a entrevistas realizadas por mim com pessoas que sofreram na pele as ditaduras da América Latina. Estava prevista compilação da entrevista com Eduardo Galeano. Aqui está – não porque ele tenha falecido nesta segunda-feira, 13 de abril de 2015. Ele estará sempre vivo. Aqui está porque ter conhecido sua obra e, depois,tê-lo conhecido pessoalmente marcou a minha vida.
Eduardo Galeano, quando criança, tinha o sonho de ser jogador de futebol. “O Uruguai é um país “futebolizado”. O futebol colocou o Uruguai na mapa do mundo”, ele disse, há alguns poucos anos, em entrevista a um jornal brasileiro. Mas a literatura, o mundo político de esquerda e todos aqueles que sonham com uma vida mais digna e justa para o ser humano, sobretudo para aqueles historicamente explorados e humilhados, devem comemorar o fato de ele ter se tornado escritor. Fosse futebolista com o mesmo talento que tinha na escrita e na fala seria um craque inesquecível. Inesquecível como sempre será, pelo ser humano generoso, pelo humanista incansável e pelo escritor brilhante que foi. Eterno.
Abaixo estão alguns trechos da entrevista, organizados em tópicos, sobre os direitos humanos – negados cada vez mais nos dias de hoje, por força do conservadorismo que teima em tentar nos espicaçar.
Direito a um trabalho digno – “No mundo inteiro, talvez um pouco mais na América Latina, as palavras e a prática raramente se encontram e quando se encontram não se saúdam, pois não se reconhecem. Isto, sobretudo, com o tema dos Direitos Humanos.
Se as Declarações dos Direitos Humanos se traduzissem em realidade, estaríamos habitando o mais feliz dos planetas. Mas ocorre que as declarações parecem reportar a um planeta que não é o nosso. Vou citar um exemplo dos mais glamorosos: todos concordam em estabelecer como direito fundamental o direito ao trabalho.
O direito a um trabalho digno e o de integrar sindicatos, mas hoje, na realidade, ocorre que o trabalho vale menos que o lixo. O mundo de hoje confunde valor e preço e o preço do trabalho está cada vez mais barato. Nota-se, por exemplo, que duas das empresas mais bem-sucedidas do planeta, que são o Walmart e o McDonald’s, não permitem que seus trabalhadores se sindicalizem.
Dois séculos de luta, de muito sacrifício e dor para que o mundo inteiro reconheça o direito da sindicalização e, hoje, empresas de grande sucesso negam o direito dos trabalhadores terem sindicato. Tudo isso depois do que passaram os trabalhadores de Chicago, naquele primeiro de maio que o mundo recorda a cada ano: os mártires de Chicago que reivindicavam o direito ao trabalho, à segurança e de ter sindicatos.
Também negam o direito de trabalhar dignamente ou simplesmente trabalhar, como é o caso do Movimento dos Sem Terra no Brasil, com numerosos mártires – os muitos trabalhadores rurais que foram fuzilados pelo delito de querer trabalhar, de querer trabalhar a terra.
Eles tinham de ser todos condecorados, porque não é crime trabalhar, muito menos trabalhar a terra no mundo. Mas esse mundo recompensa a figuração e despreza o trabalho.”
Direito de respirar – “É curioso como este nosso planeta está trabalhando com tanto entusiasmo para sua própria aniquilação. São negados alguns dos direitos humanos dos mais elementares de todos. Por exemplo, o direito de respirar. Quando era menino, a mestra me dizia: ‘Respirar, Eduardito, é o que é importante’. E respirar está cada vez mais difícil, pois o ar está envenenado, principalmente nas grandes cidades, onde a ditadura dos automóveis vai contra os transeuntes, que não podem caminhar.
Cidades que nasceram, segundo dizem, como lugares de encontros entre as pessoas e agora são lugares de encontros entre as máquinas, e as pessoas incomodam.”
Direito à vida – “O direito à vida é o direito fundamental de todos os habitantes do planeta, mas é o mais violado de todos, pois ele é privilégio de quem pode pagar; quem não pode se vira como conseguir para viver ou morrer nesse intento.
Na verdade, na grande maioria dos países do mundo a vida humana vale pouco ou nada, principalmente nos subúrbios, quando é a vida de um pobre. Nas grandes cidades sobram pessoas, porque esse sistema, que quando eu era criança se chamava capitalista, mas agora se chama economia de mercado, tem mais náufragos que navegantes. Ou seja: os excluídos, os marginais, os que são expulsos são muito mais do que os que estão integrados.
Esse sistema não sabe o que fazer com essa contradição que ocorre, então converte a pobreza em delito e a castigam. Matam.”
Violência do homem – “A Declaração dos Direitos Humanos também fala da igualdade de gêneros, que ainda é um direito a se conquistar. Na maior parte do planeta, as mulheres são muito maltratadas. Eu diria que, na realidade, elas são tratadas pior que nas letras de tango. Como se sabe, nesse ritmo musical, as mulheres são todas putas, menos a mama.
E essa realidade de tratar as mulheres pior do que são tratadas nos tangos se traduz em muitíssimos casos, lugares e na violência direta que o macho exerce sobre a fêmea. Isso que chamamos curiosamente de violência doméstica e que consiste na forma mais repulsiva do exercício de direito de propriedade, que é o direito de propriedade entre pessoas. Direito de propriedade que o macho se atribui sobre a fêmea.
E quando acontecem esses casos, que às vezes se registram nas crônicas policiais e às vezes não, o macho dominante, o criminoso, se explica dizendo: ‘Matei porque era minha’. Como se fosse realmente parte de seu direito de propriedade o de aniquilar a mulher que a sorte (vida) lhe deu. Nenhum macho ou supermacho que seja, nem o mais valente de todos, se anima em dizer que a verdade não é essa. Nada a ver com: ‘Matei porque era minha’.
Na verdade, deveria confessar: ‘Matei-a por medo’. Porque a violência do homem é o espelho do medo do homem de uma mulher sem medo.”
Iguais perante a lei? – “Teoricamente, somos todos iguais perante a lei, isso diz a Constituição. Algumas constituições não diziam isso, mas foi incorporado depois. A primeira Constituição dos Estados Unidos, que sempre se toma como modelo de democracia, estabelecia que um negro era equivalente a três quintos de uma pessoa branca. Menos mal que essa Constituição tenha mudado bastante, porque, caso contrário, o Obama não poderia ser presidente, pois nenhum país pode ser governado pelos três quintos de uma pessoa.
É bom que depois foram corrigindo a Constituição e passaram a ser menos racistas e machistas. Mas, na realidade, as coisas não mudaram tanto. Por exemplo, em relação à situação dos pobres condenados por serem pobres, condenados por um sistema que é incapaz de combater a pobreza. Sistema que está em guerra contra os pobres que o próprio sistema gera.
A discriminação se aplica de tal modo que às vezes não a vemos. Posso citar como exemplo a tortura. Os militantes de esquerda estão acostumados, como eu, entre outros, a denunciar a tortura, mas, muitas vezes, nos esquecemos de que a tortura não se aplica somente aos chamados presos políticos. Nós nos esquecemos de que a tortura também é aplicada nos chamados presos comuns, que são também políticos, pois são o triste resultado de um sistema que funciona para poucos.
Esquecemos, portanto, de que a polícia impunemente tortura os chamados delinquentes comuns, que são algemados e, às vezes, torturados até a morte. Isso não se registra em parte alguma. O que me parece muito injusto e também muito revelador.
Bom, acho que terminei porque eu poderia continuar falando e falando. E falo sobre o tema porque é muito injusto. Falo com uma autocrítica danada, porque muitas vezes nos esquecemos dessa situação.
Leia aqui a íntegra da reportagem para a Revista Brasileiros.
Abaixo, o trailer do documentário Mais Náufragos do que Navegantes, de Guilhermo Planel, com depoimentos de Eduardo Galeano.