Vida de garçom, o anfitrião do nosso segundo lar (ou seria o primeiro?)

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“Uma pessoa que é boa com você, mas grosseira com o garçom, não pode ser uma boa pessoa” (frase do escritor e humorista norte-americano Dave Barry, que tem sido atribuida a Luis Fernando Veríssimo. Certamente, o filho do Erico concorda com ela).

E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos leva a uma mesa de restaurante para convivermos, novamente, com aqueles que tanta companhia nos fizeram, mesmo trafegando entre a cozinha e a gente. César é, certamente, uma boa pessoa. Daquelas que tratam bem o garçom.




Pego carona neste texto da coluna para homenagear o garçom Sabino, amigo do Mill’s, em São Paulo, que foi atender em outra dimensão. Soube recentemente da partida deste garçom que honrava a vocação. Sabino, presente! (Washington Araújo).

“Escrevi esta história a partir de uma sugestão ou do que creio que tenha sido uma sugestão do amigo Raul Borges, professor de História. Voltei-me então para lembranças de algumas pessoas queridas do tempo do Campanário, pensão e bar que ficava nas redondezas da Uerj Maracanã. Depois de tanto tempo passado, fiquei na dúvida quanto aos nomes dos donos do estabelecimento: era um casal, o nome dele era Rogério (?); o dela com certeza, Catarina. Sei porque ela era de Maceió, e a rede de associações fica mais firme. E ela era tão importante figura que eu não dizia: “Vamos ao Campanário!”, mas “Vamos ao Catarina!”.


Rogério veio a falecer muito jovem – talvez devido a seu sobrepeso. Lembro-me de ter ido a uma missa em sua homenagem. Gilvan, o melhor garçom que eu conheci na vida estava lá. Reparei que ele tinha um crucifixo de madeira, não era nem bem um crucifixo, tinha o formato de um T de madeira. Aliás, reparei, não. Guardei como se fosse uma foto. “Será que ainda existem pessoas como Gilvan?”, pergunta meu coração.


Certo dia, saímos do Campanário em patota. Gilvan foi conosco. Ele tomou umas cervejas e deixou gorjeta, como manda o figurino. Eu não poderia ter deixado de reparar em tal delicadeza.

O “Romário” foi outro garçom supimpa que trabalhou no mesmo Campanário depois do Gilvan. Era ótimo, excelente. Só não sabia falar inglês que nem o Gilvan. Por infelicidade, fiquei sem saber o nome de pia do “Romário”. Não saber o nome das pessoas é um troço feio à beça.


Dito isto, dedico esta história a Raul Borges, por ter me sugerido o mote; ao casal Rogério (?) e Catarina; a Gilvan e a “Romário”.

Vamos ao texto!

A fala do garçon Severino:
Me chamo Severino, não tenho outro nome de pia. Só que não dava um pio quanto chamangavam de mim com apelidos cabulosos como “Romário”, “Richarlison”, “Campeão”. Eu os atendia, anotava os pedidos, fazia as coisas bem feitas. Se carecesse, faria contas de cabeça para mostrar que ainda por cima era bom de aritmética.


Se tenho recordação do torrão natal? Vixe, como tenho. Me alembro que na minha terra, vieram uns jovens da cidade muitos gentis – tempos idos, de explorar o Brasil do lado deles que eles desconheciam, projeto federal. Eu ainda não sabia nem ler, eles me disseram o que estava escrito na estampa da blusa: “O problema do Nordeste não é seca, é cerca!”. Frase de efeito repentista, guardei-a na ponta da caneta!

Os problemas sempre são muitos, disso sabe quem me ouve as traquinagens de quem tutano: seca, cerca, espingarda, bala que voa na bola da pá, semente que não pega, um jeito de ser. Tiraram fotos, fizeram exames, deram injeção, pesaram a gente na balança, levaram gente em padiola, nos ensinaram lições das modernidades.


Vim pra cá moço mocinho, de bigode fino. Trabalhei em muita coisa até me assentar aqui no restaurante em frente à torre do sino da igreja. Atendo a muita gente, sonhadores, chameguentos gente boa, que chamam a casa de segundo lar. As moças bonitas também bebem.

Eu fico de todos ouvidos de caderneta na mão. No meu ofício, há de ter ouvido bom, que a memória é a melhor das qualidades. É certo que por trás do balcão há uma folha com todas as mesas enquadradas, tudo organizadinho que é pra melhor controlar. Esse é o ofício do patrão, não meu.


O que sei é que certo dia me veio um zumbido no ouvido como se me houvesse assentado no pé de minha serra casa de abelhas ou de marimbondos. Uma zoada só. Depois passou. Depois voltou. Foi um pouco depois do resfriado mal-curado, daquela chuva que pegou a todos sem prevenção, com água até os joelhos.

Às vezes antes de dormir ou de acordar, com o zumbido vinha também um não sei um quê, uma carência de equilíbrio que quase me fazia pular sem querer num pé só que nem guaíba. O enjoo me vinha antes do ípsilone. Antes ou depois, as coisas também todas se mexiam como se houvesse um ventilador de teto na frente do que eu via, como quem se deita sem curar bebedeira. Martelo de faca contra faca. Badaladas de sino. Vertigens, visões.


E o medo de ter uma daquelas manifestações durante o serviço me corria o espinhaço. Se eu derrubasse a bandeja de drinks por cima de uma daquelas moças bonitas, o que seria de mim? Se eu tombasse, se eu confundisse um pedido com outro, trocando as bolas feito garçon de primeiros restaurantes, haveria vergonha maior? Convinha dizer aos patrões que eu, no fundo, não estava bem, apesar de moço? O que vosmecê teria feito no meu lugar?

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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