“Ó os polícia, ó os polícia”, alerta um homem enquanto filma três helicópteros sobrevoando um acampamento de garimpeiros ilegais na Terra Indígena Yanomami.
Por João Fellet, compartilhado de BBC News Brasil em São Paulo
“É três ‘blackhawkzão’, três!”, prossegue o narrador, referindo-se ao modelo da aeronave militar. “Todo mundo, vamos se esconder, agora o bicho pega”, ele diz.
Cenas como essa, que mostram garimpeiros fugindo de forças de segurança, são comuns num canal no YouTube criado por um garimpeiro que atua ilegalmente dentro do território yanomami, em Roraima.
Os vídeos do canal, 120 ao todo, foram postados nos últimos três anos, período de forte crescimento da mineração ilegal em terras indígenas, apesar de operações policiais pontuais.
No território yanomami, onde se estima que haja até 20 mil garimpeiros, a atividade ganhou visibilidade nas últimas semanas após denúncias de violência sexual contra mulheres e meninas indígenas.
O garimpo também está associado à presença de facções criminosas no território e à contaminação de indígenas por mercúrio (leia mais abaixo).
Rotina do garimpo
Os vídeos do canal “Fabio garimpo Junior” mostram garimpeiros à vontade diante das câmeras durante seus trabalhos, ainda que garimpar em terras indígenas seja crime passível de prisão.
Sem esconder o rosto, eles discursam em defesa do garimpo e criticam a repressão à atividade, muitas vezes ecoando posições do presidente Jair Bolsonaro.
Os vídeos mostram ainda como o garimpo na terra yanomami ganhou uma escala industrial nos últimos anos.
As gravações mostram helicópteros e aviões privados transportando os garimpeiros até as minas ilegais (não há acesso terrestre ao território).
Nos garimpos, máquinas pesadas abrem grandes clareiras na Floresta Amazônica e rios são desviados na busca por ouro e cassiterita. Alguns acampamentos parecem minicidades, com eletricidade e internet.
Segundo a Hutukara Associação Yanomami, a área desmatada por garimpeiros dentro do território indígena cresceu 46% em 2021 em comparação com o ano anterior.
A atividade, porém, implica sérios riscos para os garimpeiros. Dois vídeos mostram helicópteros a serviço do garimpo em destroços após caírem na floresta.
Outras filmagens mostram manobras arriscadas de barcos com garimpeiros subindo corredeiras, helicópteros descendo em pequenas clareiras e aviões pousando sob forte chuva.
As cenas são exaltadas no canal como exemplos da coragem e perícia dos envolvidos.
Perseguições com tiros
A rotina nos garimpos no território yanomami também abarca perseguições com tiros.
Um vídeo publicado em janeiro de 2020 tem como título “Piloto no garimpo do Uraricoera tenta fugir do Exército brasileiro”.
As imagens mostram um piloto que navegava em alta velocidade enquanto era perseguido por um barco com quatro soldados no Uraricoera, principal rio do território yanomami.
Após quatro disparos, um homem na margem do rio grita: “Pegou, pegou”. Ouvem-se então outros dois tiros, mas o vídeo termina sem que seja possível ver se o piloto foi realmente atingido nem qual foi o desfecho da perseguição.
Outra versão dessa cena, publicada em fevereiro de 2022, envolveu um carro da Polícia Militar de Roraima que perseguia em alta velocidade um pequeno avião num aeroporto não identificado.
Segundos após a decolagem, ouve-se um disparo, mas a aeronave prossegue o voo, aparentemente ilesa.
Garimpeiro youtuber
O canal no YouTube que exibe os vídeos existe desde janeiro de 2018 e tem 324 inscritos. A última gravação foi publicada em 28 de abril de 2022.
Em vídeo de agosto de 2021, o dono do canal se apresenta como Fábio Júnior Rodrigues Farias e se define como garimpeiro, mas diz ter a ambição de viver como youtuber.
“Se um dia futuramente der, vou viver disso, mostrando a realidade do garimpo, mostrando a dificuldade que os garimpeiros passam”, ele afirma no vídeo.
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Fim do Podcast
Faria aparece em vários vídeos num dos maiores garimpos no território yanomami, conhecido como garimpo do capixaba. O local foi alvo de sucessivas operações nas últimas décadas – a última delas, em março de 2021, quando o Exército destruiu uma pista de pouso usada por garimpeiros.
Mas as operações não foram capazes de paralisar os trabalhos. Os vídeos mostram que, assim que as forças de segurança deixam os acampamentos, os garimpeiros saem dos esconderijos nas matas para retomar as atividades.
Ao se esconder, costumam levar consigo o ouro extraído e motores que usam para garimpar. Os equipamentos que ficam para trás costumam ser queimados pelos agentes.
Um vídeo de outubro de 2021 mostra uma distribuição gratuita de cerveja a garimpeiros logo após forças de segurança deixarem um acampamento, quando parte do local ainda estava em chamas.
“Pode pegar que tá liberado”, diz um homem, ele próprio com duas latas na mão. “Aqui é por conta da (Polícia) Federal”, ironiza.
Outras gravações mostram acampamentos de garimpeiros em outras áreas do território yanomami, como nos rios Catrimani e Uraricoera.
Procurado por meio de seu canal no YouTube, Faria não respondeu as perguntas da BBC.
Na última tentativa de contato, na última quarta-feira (11/05), a BBC postou no canal uma mensagem questionando se Faria estava ciente das penas para o garimpo ilegal em terras indígenas.
No dia seguinte, porém, a mensagem tinha sido deletada.
Problema histórico
Com área equivalente à de Portugal, a Terra Indígena Yanomami abriga cerca de 27 mil membros dos povos yanomami e ye’kwana, que vivem em 331 aldeias.
O território ocupa porções do Amazonas e de Roraima e se estende por boa parte da fronteira do Brasil com a Venezuela. A região é alvo de garimpeiros desde ao menos a década de 1980.
A atividade viveu um declínio com a demarcação da terra indígena, em 1992, mas voltou a crescer nos últimos anos.
Eleitor de Bolsonaro
No vídeo em que se apresenta, Farias se declara eleitor do presidente Jair Bolsonaro. “Em 2022, é Bolsonaro na cabeça, vai arrebentar de novo”, afirma.
Em outro vídeo, quando se escondia na mata durante uma operação policial, o garimpeiro critica as forças de segurança e torce para que o presidente tome providências. “Espero que nosso presidente Bolsonaro veja isso”, afirma.
Em várias ocasiões, Bolsonaro defendeu a aprovação de um projeto de lei – atualmente em debate no Congresso – que regulamentaria a mineração em terras indígenas.
O presidente também costuma criticar órgãos de fiscalização ambiental e afirmar que garimpeiros “não são bandidos”, mas sim trabalhadores em busca de melhores condições de vida.
Discurso semelhante é ecoado pela categoria. Nos vídeos do canal, Farias e colegas dizem que os garimpeiros são perseguidos injustamente.
“Muita gente crucifica o garimpeiro, (diz) que o garimpeiro é sem vergonha, mas em nenhum momento você vê que a Bíblia condena o garimpo”, diz Farias.
“Pelo contrário, Deus ama o ouro e deixou isso aqui que é pra tirar mesmo”, defende.
A BBC questionou a Presidência da República sobre o conteúdo do canal e as menções dos garimpeiros a Bolsonaro, mas não houve resposta.
Interação com indígenas
Embora os vídeos tenham sido gravados dentro do território yanomami, são raros os momentos em que indígenas aparecem nas gravações.
Numa dessas ocasiões, Faria e colegas se depararam com uma mulher e três crianças yanomami enquanto atravessavam um riacho numa pinguela.
“Ó os índios da tribo aí”, disse o garimpeiro. “Uma fome, miséria”, afirmou.
Os indígenas aguardavam a travessia dos garimpeiros, esperando por sua vez para cruzar o rio.
Bem mais comuns que os encontros são as menções a indígenas nos discursos de Farias.
No vídeo em que se apresenta, o garimpeiro se refere aos indígenas como “uma raça de gente imunda” e os acusa de “roubar” os garimpeiros.
“É uma raça de gente que não merece você nem dar um prato de comida para eles”, afirma. “São bandidos”.
Um líder indígena yanomami ouvido pela BBC comentou a declaração.
“A população indígena yanomami não é bandida, não estamos colocando em risco a vida de ninguém, não estamos invadindo a terra de ninguém. Quem está invadindo são os garimpeiros”, afirmou o indígena, que preferiu não ter o nome revelado por motivos de segurança.
Ele afirmou ainda que a existência do canal mostra que os garimpeiros “não têm medo de ninguém”.
“Eles não têm medo da PF (Polícia Federal), não têm medo de mostrar os rostos. Eles sabem que não vão responder absolutamente (por crimes), que não vão ser presos”, diz o indígena.
Questionado pela BBC, o YouTube disse que “conteúdos que incentivem a violência ou ódio contra pessoas” com base em características como etnia ou religião não são permitidos na plataforma, mas não comentou a exposição de cenas de garimpo ilegal no canal.
“Quando não há violação à política de uso do YouTube, a análise final sobre a remoção de conteúdo cabe ao Poder Judiciário, nos termos do Marco Civil da Internet”, afirmou a empresa.
O YouTube disse ainda que o canal do garimpeiro está “sob análise”.
Penas para o garimpo ilegal
A Constituição de 1988 determina que a exploração mineral em terras indígenas só pode ocorrer se for regulamentada por leis específicas. Como as leis jamais foram aprovadas, a atividade é ilegal.
A exceção é quando o garimpo é realizado pelas próprias comunidades indígenas, em escala artesanal.
Segundo a Lei 9.605/98, extrair recursos minerais sem autorização é crime com pena de seis meses a um ano de prisão, além de multa. Como terras indígenas pertencem à União, garimpar nessas áreas também pode ser enquadrado como crime contra o patrimônio da União (lei 8.176/91), com pena de um a cinco anos de prisão e multa.
Porém, mesmo quando condenados na Justiça, garimpeiros raramente cumprem pena na cadeia.
Em audiência no Senado em abril, o procurador da República Alisson Marugal, que atua no combate ao garimpo no território yanomami, disse que as condenações de garimpeiros não costumam ultrapassar 4 anos de prisão e são normalmente substituídas pela prestação de serviços.
Segundo Marugal, hoje o Ministério Público Federal tem como foco investigar o garimpo enquanto organização criminosa que promove lavagem de dinheiro, crimes que geram penas maiores para os líderes dos grupos.
O procurador citou denúncias de que o “narcogarimpo” esteja presente no território yanomami, conforme facções criminosas como o Primeiro Comando da Capital (PCC) passam a se envolver com a atividade.
Para coibir os crimes na região, o procurador cobrou o fortalecimento da fiscalização, o bloqueio dos rios usados por garimpeiros e um maior controle da cadeia de venda e processamento do ouro.
Outro impacto do garimpo ilegal no território se dá pela contaminação de indígenas por mercúrio, usado pelos garimpeiros para aglutinar o ouro.
Em 2016, um estudo do Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com a Fiocruz e a Fundação Getúlio Vargas (FGV) revelou que 92% dos moradores de uma aldeia yanomami vizinha a uma frente de garimpo tinham altos níveis de mercúrio no sangue.
Acusações contra o Exército
O Exército também é alvo de acusações constantes nos vídeos dos garimpeiros.
“O governo manda o Exército aqui para dentro, e o Exército, quando vem, vem morrendo de fome”, afirmou Farias num vídeo publicado em junho de 2019.
“Eles não querem tirar os garimpeiros, eles querem roubar o que o garimpeiro tem. Eles roubam celular, comida, qualquer coisa que beneficie eles”, disse.
Contatado pela BBC desde a última terça-feira (10/05), o Exército não se posicionou sobre as acusações nem sobre os demais conteúdos do canal.
A corporação não tem como atribuição principal combater crimes ambientais, embora costume dar apoio logístico a operações em terras indígenas na Amazônia.
Desde 2019, porém, vários decretos de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) determinados pelo presidente Jair Bolsonaro deram às Forças Armadas o papel de coordenar o combate ao garimpo ilegal nesses territórios.
A estratégia foi abandonada em outubro de 2021, decisão que analistas atribuem a seus fracos resultados e aos altos custos das operações lideradas pelos militares.
Desde então, o Ministério da Justiça (MJ) passou a coordenar a ação da Polícia Federal, do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais) e da Funai (Fundação Nacional do Índio) no combate ao garimpo em terras indígenas.
Sob a coordenação do MJ, o ritmo das operações no território yanomami diminuiu.
Diretor-adjunto da Associação Nacional dos Servidores Ambientais (Ascema), o agente ambiental Wallace Lopes afirmou em 9 de maio no Twitter que o Ibama não é convocado a atuar na Terra Indígena Yanomami desde dezembro de 2021.
“Sem fiscalização, as atividades criminosas ganharam espaço para se desenvolver livremente, colocando sob risco não apenas os povos originários do Brasil, mas também toda a população, as futuras gerações, bem como a nossa megabiodiversidade”, afirmou.
A BBC questionou o Ministério da Justiça sobre os vídeos dos garimpeiros e o crescimento da atividade na terra yanomami.
Em nota, o órgão afirmou que a Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça está finalizando “um novo calendário de ações operacionais” no território.
“Tão logo esteja pronto poderá ser apresentado à mídia e à sociedade”, disse o ministério.
Questionada se tinha conhecimento do canal no YouTube, a Polícia Federal disse que “não comenta eventuais investigações em andamento”.
A corporação disse ainda que realizou 31 operações policiais contra crimes ambientais em terras indígenas em Roraima em 2021, e que há mais de 200 procedimentos investigativos em andamento, com mais de 170 indiciados por crimes ligados ao garimpo ilegal.
A Funai disse em nota que mantém bases para coibir crimes e controlar o acesso ao território yanomami.
“Cabe lembrar que a mineração ilegal na Terra Indígena Yanomami é um problema crônico, sendo que a atual gestão da Funai tem trabalhado firmemente para resolvê-lo, bem como outros problemas que são fruto de décadas de fracasso da política indigenista brasileira que, no passado, era guiada por interesses escusos, falta de transparência e forte presença de organizações não-governamentais”, afirmou a fundação.
Em entrevista à Jovem Pan News em 12 de abril, o presidente da Funai, Marcelo Xavier, disse que o garimpo no território yanomami “tem duas vítimas: tanto o indígena quanto o garimpeiro”.
Ele defendeu a aprovação de uma lei para regulamentar a atividade “para trazer transparência ao processo e, quem sabe, garantir uma solução de vida mais digna para esses indígenas”.