Gaza: seis meses de horror

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Um Estado que faz da barbárie sua lei. A fome como estratégia de guerra e o trabalho humanitário sob ameaça. Uma superpotência cúmplice e isolada. Direito internacional em xeque. A catástrofe de um povo chama o mundo a refletir e agir

Por Glauco Faria, compartilhado de Outras Palavras




Foto:MAHMUD HAMS/AFP

Seis meses após o início da ofensiva militar de Israel na Faixa de Gaza, o cessar-fogo imediato determinado pela Resolução 2728 do Conselho de Segurança da ONU ainda está longe de se tornar realidade. Ainda que os ataques aos trabalhadores da da World Central Kitchen (WKC) tenham feito os Estados Unidos elevarem o tom de seu discurso e Israel anunciar algumas medidas para permitir mais acesso da ajuda humanitária, nada indica que os ataques devam parar.

As tropas terrestres israelenses estão em compasso de espera, com pequenas operações táticas sendo realizadas na região. O governo israelense anunciou neste domingo (7) que vai retirar algumas tropas terrestres de Khan Younis, no sul da Faixa de Gaza, mas o premiê Benjamin Netanyahu, que tem enfrentado, nas ruas de Tel Aviv, protestos crescentes contra sua gestão, mais uma vez afirmou que estão mantidos os planos para uma grande ofensiva contra a cidade de Rafah, perto da fronteira com o Egito.

“Há um planejamento em curso para uma incursão em Rafah, que poderá deslocar até 800 mil pessoas”, falou, em entrevista ao UN News nesta segunda-feira (8) o coordenador humanitário das Nações Unidas no Território Palestino Ocupado, Jamie McGoldrick. “Estamos realmente lutando para pré-posicionar material suficiente, artigos não alimentares, abrigos, material e água”, disse.

Dados oficiais dão conta de que, até o momento, são mais de 33 mil palestinos mortos. Mas a frieza dos números é incapaz de dar conta do horror a que são submetidos os habitantes de Gaza. O jornalista freelancer Ruwaida Kamal Amer, que está em Khan Younis, tentou colocar em palavras, ao site +972, o que tem sido viver ali atualmente. “Seis meses se passaram desde que a guerra cruel de Israel na Faixa de Gaza começou, e minha vida se tornou um pesadelo contínuo. Seis meses sem praticamente acesso à eletricidade ou à água. Seis meses sem saber o que aconteceu com inúmeros familiares, amigos e colegas. Eu anseio pela rotina diária e momentos de calma que costumávamos reclamar. Por apenas uma hora dessa normalidade chata.”

Além do presente, a incerteza sobre o futuro é uma preocupação permanente. “Eu me pergunto sobre a minha vida depois da guerra. O que será de Gaza? Vamos voltar ao trabalho? Nossos amigos e colegas permanecerão aqui ou tentarão começar uma nova vida em outro lugar? Como Gaza será reconstruída? A destruição é grande demais? Quanto tempo vai demorar? Viveremos o resto de nossas vidas sem educação e saúde? Como nos acostumaremos com a vida sem os lugares que amamos e estamos acostumados?”, questiona. “Pensar sobre a vida antes e depois da guerra às vezes me deixa louco. Meu coração dói muito e eu sinto que vou explodir em lágrimas. Não sei como serei forte o suficiente para suportar tudo isso. Mesmo enquanto escrevo estas palavras, o som das explosões está sempre presente. A casa não parou de tremer.”

A tragédia humana resultante dos ataques em Gaza leva a muitas reflexões. Desde a efetividade do direito internacional e dos organismos multilaterais em uma situação na qual um Estado se recusa a cumprir as regras e determinações estabelecidas globalmente, passando pela influência de uma superpotência inimiga da paz e causadora de instabilidade e pelo reposicionamento do tabuleiro geopolítico diante de uma das maiores catástrofes do nosso tempo. Levanta ainda a discussão sobre o papel e os limites das ajudas humanitárias em zonas de conflito e as estratégias de guerra que constituem crimes evidentes.

Buscamos levantar seis das questões que a ofensiva militar israelense traz nestes seis meses. Mas muito ainda terá que ser discutido. Para interromper uma tragédia humanitária em andamento e evitar novas no futuro.

O trabalho humanitário ameaçado

Um ataque israelense realizado em 1° de abril, em Gaza, contra um comboio de ajuda humanitária matou sete trabalhadores da World Central Kitchen, ONG que fornece refeições em áreas de conflito e em locais que vivem crises humanitárias. Inicialmente, Israel alegou que foi um erro, mas logo investigações de veículos como a Al Jazeera e o jornal israelense Haaretz concluíram que os ataques foram intencionais.

O fundador da entidade, o chef gastronômico José Andrés, também afirmou que o ataque havia sido deliberado. Segundo ele, a organização tinha comunicação direta com o exército israelense, que sabia da movimentação dos trabalhadores. “Não foi apenas uma situação de azar em que ‘oops’ jogamos a bomba no lugar errado”, pontuou Andrés. “Isso foi ao longo de 1,5, 1,8 quilômetro, com um comboio humanitário muito definido que tinha sinais na parte de cima, no teto, um logo muito colorido do qual estamos obviamente muito orgulhosos.”

Embora à altura do ataque mais 32 mil palestinos tivessem morrido, o episódio resultou em duras declarações de autoridades do governo estadunidense, muito por conta da figura de José Andrés. O chef espanhol é dono de um grupo que tem mais de 30 prestigiados restaurantes no Estados Unidos e a ONG que dirige tem hoje projeção mundial. A WCK geralmente não adota apenas a distribuição de alimentos em espécie, busca cozinhar alimentos quentes em grandes cozinhas comunitárias com a presença de chefs, incluindo formação culinária e fortalecimento de redes de distribuição locais.

Para se ter uma ideia da projeção de Andrés, em janeiro, a ex-presidenta da Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi, e outros democratas o indicaram para o Prêmio Nobel da Paz. O ataque ao comboio humanitário motivou o presidente Joe Biden a fazer uma declaração repreendendo o governo israelense. “Este não é um incidente isolado. Este conflito é um dos piores da memória recente em termos de trabalhadores humanitários mortos. Esta é uma das principais razões pelas quais a distribuição de ajuda humanitária em Gaza tem sido tão difícil.”

Após estas mortes, são 203 trabalhadores humanitários vítimas dos ataques israelenses em Gaza, que é o lugar mais perigoso do mundo para este tipo de atividade. “Há uma realidade desconfortável. Até segunda-feira, pelo que sei, todos os trabalhadores humanitários mortos (até esse ponto) eram palestinos”, afirmou o vice-presidente sênior de programas internacionais do Comitê de Resgate Internacional (IRC, na sigla em inglês), Ciarán Donnelly, à Associated Press. “É uma realidade desconfortável, mas é uma realidade. E se algo de bom pode vir dessa atenção, talvez seja um aumento da atenção política e diplomática.”

“Os trabalhadores humanitários e as pessoas que recebem ajuda devem ser protegidos e não visados. Até as guerras têm regras. O acesso seguro da ajuda humanitária aos civis necessitados é coberto pela quarta convenção de Genebra”, afirmam, em artigo, as pesquisadoras Sarah Schiffling e Foteini Stavropoulou.

A fome como arma de guerra

No mesmo artigo, Schiffling e Stavropoulou lembram que a World Central Kitchen suspendeu suas operações em Gaza após o ataque. Os sete funcionários assassinados no ataque haviam descarregado 100 toneladas de ajuda de um navio antes de serem mortos. “A World Central Kitchen foi pioneira neste corredor de logística marítima de Chipre a um píer ao sul da Cidade de Gaza, já que o acesso rodoviário à Faixa de Gaza foi severamente limitado por Israel, apesar dos crescentes temores de fome. Outro navio da World Central Kitchen retornou a Chipre após o ataque sem ser descarregado. Por enquanto, a ajuda marítima está suspensa”, disseram.

Após o ataque, outras entidades também suspenderam suas atividades. A Anera, responsável por uma média de 150 mil refeições diárias em Gaza foi uma delas. “A natureza flagrante do ataque ao comboio da WCK provou que os trabalhadores humanitários estão atualmente sob ataque”, declarou o oficial de relações com a mídia da entidade, Steve Fake. “A decisão de retomar a ajuda depende da segurança de nossa equipe.”

O episódio tende a piorar um cenário já catastrófico. Segundo relatório elaborado pela Oxfam com base nos dados mais recentes disponíveis da análise de Classificações de Fases de Segurança Alimentar (IPC), a quantidade de alimentos consumidos pelas pessoas no norte de Gaza equivale a 245 calorias, aproximadamente 12% da ingestão diária recomendada de 2.100 calorias. Segundo a entidade, menos da metade dos caminhões de alimentos necessários para atingir a meta estão entrando em Gaza.

“Israel faz escolhas conscientes para matar civis de fome. Imagine como é, não só tentar sobreviver com 245 calorias dia após dia, mas também ter que cuidar de seus filhos ou parentes idosos para que façam o mesmo. Tudo isso enquanto se está em fuga, com pouco ou nenhum acesso à água limpa, sabendo que a maioria dos serviços médicos se foi e, ao mesmo tempo, estar sob constante ameaça de drones e bombas”, apontou o diretor executivo da Oxfam International, Amitabh Behar.

Em novembro de 2023, a Human Rights Watch já alertava que o governo israelense estaria usando a fome de civis como estratégia, o que é um crime de guerra. “Por mais de dois meses, Israel tem privado a população de Gaza de alimentos e água, uma política incentivada ou endossada por altos funcionários israelenses, refletindo uma intenção de matar civis de fome como estratégia de guerra”, dizia na ocasião o diretor de Israel e Palestina da organização, Omar Shakir.

Behar ressalta que o governo de Israel está ignorando tanto o apelo da Corte Internacional de Justiça (CIJ) para evitar o genocídio como a resolução do Conselho de Segurança da ONU. “A CIJ ordenou novas medidas provisórias, uma vez que a fome já não é iminente, mas está sim ‘entrando’ em Gaza. Todos os países precisam parar imediatamente de abastecer Israel com armas e fazer tudo o que puderem para garantir um cessar-fogo imediato e permanente. Só então poderemos parar esta terrível carnificina para as 2,2 milhões de pessoas que suportaram seis meses de sofrimento.” Em 28 de março, a CIJ, que já está analisando uma queixa da África do Sul de que Israel estaria cometendo genocídio no território palestino, ordenou que o governo israelense permita o acesso desimpedido à ajuda alimentar em Gaza.

A investida contra a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA) também torna ainda mais difícil o combate à fome em Gaza. A entidade tornou-se um dos principais alvos do governo israelense, que em janeiro acusou 12 funcionários, em um universo de 13 mil, de terem participação no ataque realizado pelo Hamas no ano passado. Mesmo sem provas, dezesseis países suspenderam o financiamento. Hoje, a maioria voltou a fornecer recursos, mas dois grandes financiadores, Estados Unidos e Reino Unido, ainda não. Os britânicos dizem esperar uma revisão até o final de abril, enquanto os estadunidenses, de longe os maiores doadores, afirmam que só retomarão a ajuda em 2025, explicando que vão redirecionar o financiamento para outras agências, que já alertaram não poder igualar o trabalho da UNRWA, bem melhor estruturada no território.

A importância da agência pode ser vista em números divulgados pela ONU, destacando que no mês de março mais da metade de todos os suprimentos entregues via Rafah e Kerem Shalom eram suprimentos da entidade. “A UNRWA é a espinha dorsal da operação humanitária em Gaza. Qualquer esforço para distribuir ajuda sem eles está simplesmente fadado ao fracasso”, disse o coordenador de ajuda humanitária de emergência das Nações Unidas, Martin Griffiths.

Tragédia humanitária

A fome é o dado mais evidente da catástrofe humanitária em Gaza, mas está longe de ser o único. Um relatório de avaliação interina de danospublicado no final de março e elaborado em conjunto pelo Banco Mundial, União Europeia e ONU, estimou o custo dos danos às infraestruturas críticas em Gaza em cerca de US$ 18,5 bilhões. O valor equivale a 97% do PIB combinado da Cisjordânia e Gaza em 2022.

Conforme o documento, a habitação representa 72% dos custos. As infraestruturas de serviços públicos, como água, saúde e educação, somam 19% e os danos em edifícios comerciais e industriais representam 9%. O relatório aponta ainda que já há 26 milhões de toneladas de detritos e escombros decorrentes dos ataques de Israel, uma quantidade que levará anos para ser removida.

Palestinos em Gaza recebem menos de metade do suprimento de água de que necessitam para a sobrevivência em situações de emergência a curto prazo e é provável, segundo o levantamento, que ocorram mais reduções à medida que o abastecimento de combustível diminua. A prestação de serviços de saúde é outro ponto crítico, uma vez que quase 84% das instalações de saúde foram destruídos ou danificados e os restantes não têm acesso a medicamentos, ambulâncias, tratamentos básicos de salvamento, eletricidade e água.

O episódio mais recente que ilustra a destruição do sistema de atenção médica de Gaza foi a operação militar israelense no principal hospital local, Al-Shifa, que durou duas semanas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) atesta que, neste período, pelo menos 21 pacientes morreram. “Destruir Al-Shifa significa arrancar o coração do sistema de saúde”, disse a porta-voz da OMS, Margareth Harris, observando que a unidade contava com 750 leitos, 25 salas de cirurgia e 30 enfermarias de terapia intensiva.

Em relação ao sistema de educação, o colapso é total, com todas as crianças sem aula e a maioria das escolas sendo utilizadas como abrigo para pessoas deslocadas internamente. “Estima-se que 17 mil crianças foram separadas das suas famílias, tornando-as particularmente vulneráveis a diversas formas de exploração e abuso. Devido ao trauma generalizado ligado à violência contínua, a saúde mental deteriorou-se gravemente, especialmente entre os vulneráveis, incluindo mulheres, crianças, idosos e pessoas com deficiência”, descreve o relatório conjunto.

Os ataques contra residências remetem a um conceito que vem sendo definido por pesquisadores como domicídio. Partindo do questionamento de que ter uma casa é um direito humano fundamental, por que a destruição de casas não seria vista como uma violação de direitos e punida de acordo? Para muitos, trata-se de uma questão central e negligenciada na área de direitos humanos e que fica explícita no cenário de destruição vivido pelos habitantes da Faixa de Gaza.

“As casas são mais do que habitações físicas ou propriedades”, pondera a professora associada de Direito da Universidade McGill (Canadá), Priya Gupta, no The Conversation. E a história de deslocamento de quem reside na região torna a situação ainda pior. “A profunda ligação entre as casas em Gaza e as terras, territórios e nacionalidades palestinas torna a destruição delas por parte de Israel uma tática genocida.”

Para Gupta, os ataques revelam “uma estratégia que visa deliberadamente as casas para prejudicar os palestinos enquanto grupo nacional, racial e étnico”. “A casa é um local crucial da identidade do grupo palestino e da sua pertença nacional”, destaca, lembrando ainda as palavras da pesquisadora da área de serviço social Nuha Dwaikat-Shaer que “os palestinos veem a casa como um símbolo de existência e como um meio que os liga à terra“. “A Comissão dos Direitos do Homem das Nações Unidas registra ainda a profunda ligação dos palestinos às suas casas e terras agrícolas, incluindo oliveiras e árvores cítricas”, lembra.

“A ilegalidade da destruição desproporcional de propriedades e habitações civis é atualmente reconhecida pelo direito internacional. Contudo, o significado da destruição de casas merece mais atenção. Seja por meio do seu papel em crimes internacionais ou como um crime à parte, as atrocidades em Gaza realçam a necessidade de reconhecer o domicídio como um fator que promove deliberadamente a destruição de um grupo”, defende Gupta.

O direito internacional violado

Se o domicído ainda não encontra o resguardo necessário na legislação internacional, outras violações são listadas por especialistas quando se fala dos ataques de Israel a Gaza. Pouco mais de duas semanas do início da ofensiva militar, em outubro, o professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de Sydney e relator especial da ONU para a promoção e proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais no combate ao terrorismo Ben Saul concedeu esta entrevista advertindo para violações cometidas contra o direito internacional àquela altura, como nas ordens de evacuação de civis em Gaza. “O aviso não foi eficaz porque não deu às pessoas tempo suficiente para se moverem com segurança”, explicava, acrescentando ainda que as evacuações eram mais dificultadas pelo cerco completo na região.

“A fome da população civil é proibida e é um crime de guerra. O cerco também pode ser uma punição coletiva ilegal se tiver como objetivo retaliar contra todos os gazenses pelos pecados do Hamas”, alertava ele em outubro do ano passado. Questionado novamente agora sobre o tema, ele fala ao Outras Palavras sobre as demais violações cometidas pelo Estado de Israel. “Na condução das hostilidades, há muitos indícios de que Israel não tomou precauções nos ataques para verificar se os alvos eram militares e não civis; lançou ataques que causariam um número excessivo de vítimas civis, violando a regra da proporcionalidade; lançou ataques indiscriminados que não distinguem entre alvos militares e civis, como é exigido; não tomou o cuidado necessário para proteger hospitais e trabalhadores humanitários; e pode ter atacado deliberadamente civis. A Corte Internacional de Justiça também está analisando se Israel está cometendo genocídio em Gaza.”

Ben Saul cita ainda a recusa israelense em cumprir determinação da CIJ, que ordenou a abertura de mais passagens terrestres para permitir a ajuda humanitária. Após a execução dos sete trabalhadores da WKC, os Estados Unidos pressionaram e o governo de Israel, na sexta-feira (5), anunciou que iria permitir a reabertura temporária da passagem de Erez, a principal para o norte de Gaza. Também se comprometeu a liberar a utilização do porto de Ashdod, no sul do país, para receber carregamentos de ajuda humanitária destinados a Gaza. Ao saber das iniciativas, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, fez ressalvas. “Não basta ter medidas dispersas, precisamos de uma mudança de paradigma”, afirmou.

No mesmo dia, o chefe de política externa da União Europeia, Josep Borrell, também disse, em seu perfil no ex-Twitter que as ações anunciadas por Israel não eram “suficientes para evitar a fome em Gaza”. “A Resolução vinculativa 2728 do Conselho de Segurança da ONU deve ser implementada. Agora”, defendeu na postagem, fazendo referência à decisão aprovada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas determinando o cessar-fogo imediato.

“O fato de Israel não respeitar a resolução do Conselho de Segurança sobre o cessar-fogo é coerente com o seu desrespeito de longa data pelas regras e instituições internacionais, incluindo a Corte Internacional de Justiça, a Assembleia Geral, o Conselho dos Direitos do Homem e o Conselho de Segurança. Um cessar-fogo é a única forma de garantir a prestação segura de ajuda humanitária à escala e com a rapidez necessárias para evitar a fome e a inanição iminentes”, aponta Ben Saul. “É também a única forma de evitar mais violações do direito humanitário internacional por parte de Israel, que já provou ser incapaz de respeitar a lei.”

Como Borrell fez questão de ressaltar, a Resolução 2728 é vinculativa, já que o artigo 25º da Carta da ONU afirma que “os membros das Nações Unidas concordam em aceitar e executar as decisões do Conselho de Segurança”. Mas o que poderia ser feito para que Israel cumprisse a determinação de um cessar-fogo? “A bola está no campo do Conselho de Segurança — este tem o poder de tomar medidas de execução, mas os Estados Unidos precisariam abster-se de vetar e apoiar ativamente os esforços de execução. Outras medidas que os países podem legalmente tomar para obrigar Israel a cumprir a lei incluem a suspensão das transferências de armas para Israel, a imposição de sanções unilaterais aos líderes israelenses, a instauração ou o apoio a processos judiciais na Corte Internacional de Justiça e o apoio à investigação do Tribunal Penal Internacional sobre as violações”, explica Ben Saul.

O grande problema é a oposição dos Estados Unidos, já que qualquer sanção teria que ser aprovada em outra resolução do Conselho de Segurança. Na aprovação da 2728, além de ter sido o único país a se abster, a embaixadora dos EUA junto à ONU, Linda Thomas-Greenfield, afirmou se tratar de uma decisão “não-vinculativa”, deixando o seu país isolado na interpretação.

Papel dos Estados Unidos

Falar sobre o papel desempenhado pelos Estados Unidos em relação à ofensiva militar israelense sobre Gaza é abordar uma aliança consolidada ao longo da história, com poucos momentos de divergência entre ambos em tempos recentes.

Nem sempre foi uma “relação especial”, como disse certa vez o presidente estadunidense John F. Kennedy. Como explica o professor de Ciência Política e Relações Internacionais da Faculdade de Letras, Artes e Ciências da USC Dornsife, do Sul da Califórnia, Fayez Hammad, neste artigo, a plataforma do Partido Democrata de 1944 já demonstrava apoio à “abertura da Palestina à imigração e colonização judaica irrestrita” e a criação de um Estado judeu. Mas o presidente Franklin Roosevelt escreveu a vários governos árabes pouco antes da sua morte, em 1945, pontuando que não seria tomada qualquer ação em relação à Palestina “que pudesse revelar-se hostil ao povo árabe”.

Hammad diz ainda que o presidente Harry Truman simpatizava com o sionismo por conta de sua  educação cristã evangélica, reconhecendo o Estado de Israel em 14 de maio de 1948. Mesmo assim, ele se recusou a enviar armas para ambos os lados da Guerra Árabe-Israelense daquele ano, porque “via o conflito como uma fonte de instabilidade face à ameaça comunista emergente”. Já Dwight Eisenhower também procurou impedir a penetração soviética no Oriente Médio buscando uma relação mínima de equidistância no conflito árabe-israelense. “Chegou mesmo a ameaçar cortar toda a ajuda oficial e privada e expulsar Israel da ONU para forçar a retirada de Israel do território egípcio, o Sinai, em 1957”, lembra o professor.

O panorama começa a progredir para uma ligação estreita a partir da Guerra dos Seis Dias, em 1967. Os EUA estavam preocupados com a influência soviética no Oriente Médio e como Israel conseguiu uma vitória rápida e com poucas baixas contra uma coligação de países vizinhos, tornou-se um aliado atraente num momento em que os norte-americanos estavam preocupados com a Guerra do Vietnã. O então presidente Lyndon Johnson “comprometeu os EUA a manter a ‘vantagem militar qualitativa’ de Israel e abriu a porta a décadas de vendas de armas que ajudaram a transformar as forças armadas israelenses na maior do Oriente Médio”, conta o The Guardian.

Diante da atual situação de Gaza, no entanto, a postura de alinhamento automático tem sido questionada dentro e fora do país. “Os Estados Unidos são totalmente cúmplices de tudo o que Israel fez e assumem toda a responsabilidade pela ação, tal como Israel. Os EUA forneceram armas ilimitadas a Israel e deram-lhe cobertura política e proteção contra as consequências das suas ações. A razão pela qual os líderes e soldados israelenses aparentemente não têm escrúpulos em fazer declarações genocidas e publicar vídeos que retratam crimes de guerra é porque têm um sentimento de absoluta impunidade. Esse sentimento de impunidade é proporcionado a eles pela política estadunidense”, sustenta o professor de Relações Internacionais e Ciência Política da St. Thomas University (Canadá) Shaun Narine, em entrevista ao Outras Palavras.

Narine destaca que os Estados Unidos poderiam cortar o fornecimento de armamentos para Israel em qualquer momento que quisessem, além de poder utilizar a sua enorme influência financeira e militar para forçar Israel a parar sua ofensiva. “Só agora, seis meses mais tarde e depois de Israel ter aparentemente assassinado de forma muito deliberada seis trabalhadores humanitários internacionais (ignorando o seu motorista palestino), é que os EUA sugerem que utilizarão a sua influência para forçar Israel a fazer as mudanças que Washington pretende. Isto é muito pouco e muito tarde. Além disso, no Sul global, as pessoas notarão que é a morte de ocidentais que pode, possivelmente, estar levando os EUA a alterar a sua abordagem”, aponta.

Em campanha para a reeleição, Joe Biden também tem enfrentado um custo político elevado entre alguns segmentos do eleitorado democrata. Nas primárias da legenda, cerca de 13% dos eleitores de Michigan votaram em fevereiro na opção uncommitted (não comprometidos com nehum candidato) após uma rápida campanha por essa opção, em protesto contra a conduta do governo sobre Gaza. Em Minnesota, uma semana depois, o percentual cresceu para 19%. Já em Wisconsin, em 2 de abril, mais de 45 mil protestaram por meio do voto. Michigan e Wisconsin são dois estados em que o atual presidente derrotou Donald Trump, em 2020, por uma margem estreita e perder esse apoio pode comprometer o caminho para um eventual segundo mandato.

“Biden está começando a perceber que a sua posição de apoio incondicional a Israel pode acabar prejudicando suas chances de reeleição, por isso sua administração aparentemente faz vários gestos conciliatórios para a sua base insatisfeita, enquanto, na realidade, faz muito pouco ou nada para mudar as suas políticas”, pontua Narine.

Uma mostra do comprometimento estadunidense que contrasta com o discurso recente de Biden é o fato de o governo ter autorizado nos últimos dias de março a transferência de bilhões de dólares em bombas e aviões de combate para Israel. Os pacotes incluíam, conforme reportagem do The Washington Post, mais de 1.800 bombas MK84 de 2 mil libras e 500 bombas MK82 de 500 libras, de acordo com funcionários do Pentágono e do Departamento de Estado. As bombas de 2 mil libras podem causar danos a pessoas a até 300 metros de distância e foram “ligadas a eventos anteriores com vítimas em massa durante a campanha militar de Israel em Gaza”, segundo relatório revelado pelo jornal.

“As transferências de armas dos Estados Unidos para Israel violam a obrigação internacional dos próprios EUA, ao abrigo das Convenções de Genebra, de ‘garantir o respeito’ pelo direito internacional, uma vez que existe o risco evidente de serem utilizadas em violações do direito internacional por Israel”, explica Ben Saul. “Constitui igualmente uma violação da obrigação dos EUA de prevenir o genocídio ao abrigo da Convenção sobre o Genocídio, uma vez que a Corte Internacional de Justiça considerou que existe um risco plausível de genocídio em Gaza.”

Se o fortalecimento da aliança entre Estados Unidos e Israel, nos anos 1960, se deu também em busca de uma questão geopolítica estratégica na região, a posição norte-americana hoje pode ter um efeito bem distinto nesta área, abrindo espaço para interesses antagônicos aos de Washington. “A continuação do ataque israelense a Gaza torna os EUA politicamente mais tóxicos no mundo árabe e aproxima os árabes da China. A diplomacia chinesa na região tem também como objetivo acabar com os conflitos e reconciliar inimigos de longa data (Irã e Arábia Saudita) e tem interesse em tornar o Oriente Médio mais estável, porque grande parte da sua energia provém de lá”, aponta Narine. “Os EUA demonstraram que são um ator altamente incompetente. Por razões de política interna, tem-se recusado a refrear Israel, o que torna ainda mais questionável o papel dos EUA como grande potência estável e responsável.”

A imagem de Israel e os organismos multilaterais

Depois de seis meses de operações militares na Faixa de Gaza, se há uma certeza evidente é o isolamento internacional de Israel. Ainda que os Estados Unidos tenham afirmado que a resolução aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU exigindo o cessar-fogo imediato não fosse uma decisão vinculante, o fato de ter registrado abstenção, abrindo mão do poder de veto, é um recado ao país aliado e consequência da pressão doméstica e externa. E o não-cumprimento da determinação das Nações Unidas trouxe ainda mais desgaste ao Estado israelense.

“Tanto quanto posso enxergar, o apoio a Israel está caindo em todo o mundo. Mesmo na Índia, que, sob a liderança de [Narendra] Modi, tem apoiado Israel com bastante firmeza (um grande desvio da política tradicional indiana em relação à Palestina), o governo e a sociedade estão se afastando de Israel. Por todo o lado no Sul global, as pessoas observam as ações israelenses e recordam de suas próprias experiências coloniais. No Ocidente, o apoio a Israel também se está desmoronando. Penso que isso é cada vez mais evidente entre o público em geral nos EUA, sobretudo entre os democratas e os jovens”, afirma Shaun Narine.

Ben Saul aponta ser impossível uma solução militar duradoura e muitas décadas de resistência palestina à ocupação israelense demonstram este ponto. “Israel não pode pacificar os palestinianos através da força. Os palestinianos têm o direito de exercer o seu direito à autodeterminação para se tornarem o seu próprio país livre e independente. É essencial uma solução política negociada”, defende. “Infelizmente, Israel não deseja ser um parceiro para a paz, uma vez que está deliberadamente colonizando terras palestinas por meio de colonatos ilegais e obstruindo as condições necessárias para a criação de um Estado palestino. Israel tem de ser totalmente isolado pela comunidade internacional, inclusive através de sanções militares e econômicas, para que compreenda que já não goza de impunidade para violar sistematicamente o direito internacional durante meio século.”

A situação em Gaza traz também a reflexão sobre a necessidade de se alterar a estrutura das organizações multilaterais e mesmo o debate sobre o papel de instituições como os tribunais internacionais. “Isto traz à luz a forma como alguns dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança continuam a abusar irresponsavelmente do seu poder de veto para proteger os seus aliados da responsabilização por violações graves do direito internacional e indica a dificuldade de fazer cumprir as decisões da Corte Internacional de Justiça quando os Estados atuam de má fé e se recusam a respeitar as instituições jurídicas internacionais que subscreveram. É evidente que é urgente reforçar a aplicação do direito internacional, mas isso exige que as grandes potências concordem em alterar a estrutura do sistema e em restringir os seus próprios poderes”, observa Saul.

E esta mudança, para Narine, só será possível com pressão exercida sobre as grandes potências, em especial os Estados Unidos. “Os ataques de Israel põem de fato em causa o funcionamento do Conselho de Segurança da ONU, mas isso deve-se sobretudo ao fato de os EUA bloquearem deliberadamente a capacidade do Conselho de fazer o seu trabalho. Não creio que o Conselho possa ser reformado de uma forma que seja aceitável para os atuais cinco membros permanentes e que satisfaça o resto da comunidade mundial. Portanto, em termos práticos, isso está a minando a autoridade da instituição”, diz. “Mas a ONU não deve ser culpada por isso. Ela só é tão eficaz quanto os seus membros mais poderosos o permitirem. A pressão política tem de ser exercida sobre os Estados poderosos, especialmente os EUA, para que deixem de obstruir o funcionamento dos órgãos multilaterais.”

Essa contenção do poder de poucos é essencial não apenas para preservar a autoridade de organismos multilaterais como também para a imagem destes próprios países. “Penso que a ONU é demasiado valiosa e necessária para ser posta de lado, mesmo que não possa ser reformada. Países como os EUA têm de compreender que há custos reais em termos de credibilidade e influência se continuarem a prejudicar as ações e funções da ONU, apesar de a grande maioria dos Estados do mundo querer que a ONU funcione”, reflete Narine. “Se os EUA (ou qualquer grande potência) forem vistos como quem contraria constantemente a vontade da grande maioria do mundo, vão prejudicar ainda mais a si próprios. Atualmente, a existência da China significa que os EUA terão de ter em conta estas considerações. Eles não têm mais o campo de jogo para si.”

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