Por Sonia Castro Lopes, compartilhado do Site Construir Resistência –
Uma das melhores recordações de minha infância – uma infância muito sonora, por sinal – era ouvir minha mãe cantando marchinhas de antigos carnavais. Ao assistir o depoimento do general Pazuello na CPI da pandemia, não pude deixar de me lembrar da canção interpretada por Blecaute que foi um tremendo sucesso no carnaval de 1950. A letra é curta, mas carregada de sentido:
Chegou general da banda he he/Chegou general da banda he ha /Mourão, mourão, vara madura que não cai/Mourão, mourão, oi catuca por baixo que ele vai… (Raimundo Satyro de Mello, Tancredo Silva e José Alcides)
Só isso. Mas foi o suficiente para ser uma das marchinhas campeãs do carnaval. Lembro que para minha mãe, a expressão ‘general da banda’ tinha uma conotação depreciativa, a de alguém que não cumpria sua função com eficiência, não honrava as forças armadas. Em geral, a patente de general nos remete à idéia de indivíduos que concebem estratégias militares, sabem planejar os procedimentos táticos com aptidão e perícia, dominam a arte e técnica de coordenar a ação das forças militares para conduzir conflitos ou defender a nação. Mas o ‘general da banda’ é a antítese de tudo isso.
Tínhamos um vizinho que se autoproclamava ‘general’ pois fora à guerra e por esse motivo alcançara promoção ao mais alto posto do Exército. Toda a vizinhança o reverenciava. Era general prá lá, general pra cá, nunca lhe soubemos o nome. Ungido pelo poder que lhe conferiam, começou a se intrometer na vida dos outros, dar opiniões, agindo de forma muitas vezes arbitrária. Não deu outra. Em pouco tempo ficou conhecido na rua como ‘general da banda’ em alusão à marchinha carnavalesca.
Em texto publicado na Revista Serrote (n. 29, jul.2018), Heloisa Starling refere-se aos generais da banda como aqueles que “saem dos limites de sua profissão e se intrometem na vida civil do país quando ocorre (…) crise política aguda; estímulo vindo de pessoas e setores sociais dispostos a ultrapassar as barreiras constitucionais para alcançar seus objetivos; fragilidade das agências de governo – executivo, legislativo, judiciário.” Ou seja, são militares que, extrapolando suas funções, estão sempre prontos a intervir na vida política para fazer valer a ‘ordem’ na condição de salvadores da pátria. Na história de nosso país foram frequentes os episódios de quarteladas ou golpes protagonizados pelos militares, desde a proclamação da república até o golpe desferido em 1964 que conduziu o generalato ao poder por 21 anos.
Composta num período em que o general Eurico Gaspar Dutra deixava a presidência com a popularidade em baixa, a interpretação mais provável é que fosse ele o inspirador daquela marchinha que o povo cantava em tom debochado, verdadeiro desacato à figura da mais alta patente do Exército. Curiosamente, o nome do general da música – Mourão – é o mesmo do atual vice-presidente. Mera coincidência, pois em 1950 o general vice talvez nem tivesse nascido. Tampouco é provável que se referisse ao general Olympio Mourão Filho, que marchou com sua tropa de Juiz de Fora ao Rio de Janeiro na tentativa de protagonizar o golpe de 64 e, ao perceber que fora excluído da liderança do movimento, concluiu que em política ele não passava de uma ‘vaca fardada’. Portanto, o mais plausível é que a marchinha composta em 1949 referia-se ao presidente Dutra ou a algum dos generais que garantiram a ordem durante o Estado Novo de Vargas, como observa Starling, já que os dois mourões aqui citados situam-se em períodos posteriores à música do nosso querido Blecaute.
Nos últimos dias o Brasil conheceu um personagem à altura do ‘general da banda’. Um general a quem falta arte e técnica para planejar estratégias e que, embora tenha a fama de ser um especialista em logística, aceitou uma missão para a qual não tinha o menor preparo. Peça-chave da CPI da pandemia, tenta agora blindar seu chefe a todo custo, ainda que em prejuízo da própria carreira. Mas os atos cometidos por esse ‘mourão’ não suscitam apenas atitudes debochadas. Provocam indignação e revolta porque foram atos criminosos. Milhares de mortes poderiam ter sido evitadas se o atual governo não tivesse apostado na necropolítica, na qual Pazuello desempenhou papel proeminente.
Para proteger seu chefe, nosso patético general mentiu de forma vergonhosa. E por mais que tivesse sido bem preparado para declamar um discurso ensaiado, seu depoimento não convenceu. Apesar de todas as mentiras compiladas pelo relator da comissão, apesar da descompostura que foi obrigado a ouvir dos senadores oposicionistas e independentes, o prejuízo ainda foi pequeno. E se os arguidores tivessem se preparado melhor – se o tivessem cutucado por baixo – como diz a música, ele teria saído dali muito mais desmoralizado do que entrou.
Nunca se mentiu tão descaradamente numa CPI, apesar das provas inequívocas que se contrapõem às narrativas forjadas. A atuação dos senadores governistas foi, no mínimo, constrangedora, defendendo o indefensável ou agindo como verdadeiros ‘cães de guarda’ para proteger o responsável pelo agravamento da maior crise sanitária que já se abateu sobre o país. Uma vergonha assistir o exército brasileiro compactuando com tamanha farsa. São milhares deles ocupando postos no governo, acumulando soldos com gratificações, legitimando as ações de um presidente que prometia acabar com a ‘mamata’ e a corrupção. O Brasil de hoje abriga inúmeros ‘generais da banda’ dos quais Pazuello talvez seja o exemplo mais contundente.
Ilustração: Charge de JotaCamelo
Abaixo, gravação original de General da Banda por Blecaute. 1949