HÁ QUATRO ANOS, quando chefiava o Comando Militar do Sul, o general Hamilton Mourão fez uma palestra para oficiais da reserva convocando os presentes para o “despertar de uma luta patriótica”. Um dos slides exibidos continha a frase “mudar é preciso”. O impeachment de Dilma estava na pauta, e o general aproveitou para atacar toda a classe política. Na ocasião, Mourão alertou a tropa: “ainda temos muitos inimigos internos, mas eles se enganam achando que os militares estão desprevenidos”. E ainda lançou um desafio: “Eles que venham!” Poucos dias depois, Mourão organizou um evento em homenagem ao coronel Ustra, o principal torturador da ditadura militar.

O golpismo de Mourão foi punido pelo comandante do Exército Eduardo Villas-Boas que, pressionado pelo então ministro da Defesa Aldo Rebelo (PCdoB)* e pelo senador Aloysio Nunes (PSDB), o retirou do comando da tropa e o empurrou para um cargo meramente burocrático.




Foram essas credenciais pouco democráticas que encantaram Bolsonaro, que escolheu o general para ser seu vice-presidente. O presidente chegou a dizer em campanha: “Quero governabilidade. Tenho que ter um vice que trabalha junto comigo e não seja uma peça decorativa”. Bom, hoje o presidente pode dizer que seu vice não é decorativo, mas certamente não pode dizer que trabalha junto com ele.

Desde o fim da campanha, o Mourão golpista deu lugar ao Mourão republicano. E isso tem sido um problema sério para o presidente. Os dois têm discordado em praticamente todos os assuntos. Não é raro o vice aparecer dizendo diametralmente o oposto do presidente. E sempre com muito mais propriedade e categoria.

Quando Bolsonaro estupidamente detonou a China e deixou os chineses ressabiados, Mourão tentou segurar a onda e disse que não podíamos “nos descuidar do relacionamento com o nosso principal parceiro comercial”. Quando Bolsonaro anunciou a mudança da embaixada brasileira para Jerusalém, Mourão retrucou: “é óbvio que a questão terá que ser bem pensada. É uma decisão que não pode ser tomada de afogadilho, de orelhada”. Sobre o aquecimento global, a opinião do general também não sintonizou com os delírios dos Bolsonaro: “não resta dúvida de que ele existe. Não acho que seja uma trama marxista”. Quando Jean Wyllys anunciou a desistência em assumir o cargo na Câmara por causa das ameaças de morte, o presidente comemorou “o grande dia” no Twitter. Já Mourão declarou que a ameaça contra o deputado é um “crime contra a democracia”. Sobre o decreto que facilita a posse de armas no país com a finalidade de melhorar a segurança pública, Mourão afirmou que “não se trata de uma medida de combate à violência”, mas apenas do “cumprimento de uma promessa feita em campanha”.

Enfim, para cada absurdo do presidente, o vice oferece uma dose de sensatez.

Em menos de 30 dias de governo, o vice-presidente Mourão já assumiu a presidência por duas vezes. É curioso notar como o general fica mais à vontade no papel de presidente do que o próprio capitão. Diferentemente de Jair, Mourão domina bem todos os assuntos pertinentes ao governo, fala com desenvoltura, trata bem a imprensa e adversários políticos. O fato é que enquanto Jair Bolsonaro se comporta como um bolsominion enfurecido no WhatsApp, Mourão se comporta como um presidente da República. O ex-capitão não tem capacidade intelectual para atuar fora da bolha de ideologismo barato que Olavo de Carvalho construiu para ele. Funcionou bem durante a campanha, mas agora não mais. Isso ficou ainda mais evidente quando ele usou apenas seis dos 45 minutos que tinha para representar o país no maior fórum econômico do mundo.

Mourão, por outro lado, tem atuado com diplomacia e pragmatismo. Não se vê nem sombra daquele militar golpista que atiçava as tropas contra os políticos em 2015. Já o presidente Bolsonaro ainda se vê preso no olavismo, no papel de cachorrinho fiel de Donald Trump e no crime organizado de Rio das Pedras.

A cada dia que passa, o ex-capitão vai ficando cada vez mais minúsculo perto do general, que faz questão de deixar isso claro a todo momento. O protagonismo do vice tem deixado Bolsonaro e sua família bastante preocupados. Enquanto eles sangram e se mostram incapazes de explicar as relações com o crime organizado, Mourão vai ganhando respeito de todos os lados, construindo pontes e ganhando força política.

O vice-presidente insiste bater de frente com o olavismo que intoxica o governo Bolsonaro. O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, um fiel olavista indicado ao cargo pelo guru, tem sido solenemente ignorado pelo general. Além de estar mantendo reuniões com embaixadores de diversos países sem a presença do chanceler, como é de praxe, Mourão debochou da sua atuação excessivamente ideológica: “Vai todo mundo virar israelense desde criancinha? Vai todo mundo virar fã dos americanos de qualquer jeito? A diplomacia são métodos e objetivos, não um fim. É preciso inserir conceitos claros, não interferir em assuntos de outros países. E ainda não está claro” — uma verdadeira lacrada no olavismo, como dizem.

Os atritos entre o filósofo e o general foram aumentando até culminar com declaração de Mourão lamentando as ameaças a Jean. Olavo se indignou com o general e correu vomitar sua megalomania delirante no YouTube. Além de descer a lenha em Mourão e acusar os militares brasileiros de serem historicamente coniventes com os comunistas, o maluco de Virgínia (EUA) aproveitou para se dizer vítima “da maior campanha de assassinato de reputação contra um cidadão privado já visto na história humana”, chamar Maria do Rosário de “vagabunda” e dizer que “há sérias suspeitas de que Jean é um dos mandantes do assassinato de Bolsonaro”.

A lisergia de Olavo não tolera a prudência, a racionalidade e o pragmatismo de Mourão. Ele acredita que estamos no meio de um guerra contra o marxismo cultural globalista, e numa guerra não se deve ter tolerância com os inimigos. O general desprezou o ataque do filósofo: “Quem se importa com as opiniões do Olavo?”A pergunta foi retórica, mas deve ser respondida: Jair Bolsonaro e o núcleo bolsonarista não só se importam como são criaturas dele.

Não se sabe exatamente quais são os interesses de Mourão ao rivalizar tão firmemente com Bolsonaro dentro do governo. Muitos já dizem que ele está preparando o terreno para assumir o poder com o apoio dos militares caso o ex-capitão se enfraqueça ainda mais politicamente. É também o que pensa um dos filhos do presidente, como relatou a Folha. Quem acompanha o Brasil nos últimos cinco anos, sabe que nenhuma possibilidade pode ser descartada. Há pouco o que se fazer para controlar o general, já que ele não pode ser demitido. A essa altura o capitão deve estar amargamente arrependido de não ter escolhido o sempre dócil e fiel Magno Malta para ser seu vice.

O vice-presidente parece ter virado um oposicionista do presidente, o que o fez ganhar simpatia de muita gente na esquerda. Nessa semana, Mourão surpreendeu ainda mais ao afirmar que “o aborto deve ser uma decisão da mulher”.

Mas vamos com calma. Até pouco tempo atrás, Mourão agitava as tropas contra “inimigos da nação” e homenageava torturador. Já durante a campanha, admitiu a possibilidade de um “autogolpe” com a ajuda das Forças Armadas em caso de “anarquia”. Defendeu uma nova Constituição sem Constituinte. Ligou os indígenas à “indolência” e os negros à “malandragem”. Chamou famílias chefiadas por mães e avós de “fábrica de criminosos”.

O general parece progressista perto de Jair Bolsonaro, mas é apenas uma questão de referência. Até um trezoitão carregado parece progressista ao lado do nosso presidente.