Gibão-de-couro

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Mais um voo da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Neste, César viaja nas asas de um pássaro. Pássaro de apartamento.

“Há exato um ano, eu voltava ao apartamento do Engenho Novo, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, com a missão de lhe fazer uma faxina daquelas. Meu irmão e minha mãe estavam de retorno de Maceió, depois uma temporada de mais de dezoito meses.




Lá fui eu munido de todos os apetrechos de limpeza que conheço: balde, esfregão, sabão omo e vice-versa, pano de chão, o escambau.

Minha mãe sempre foi migratória. Acostumamo-nos a vê-la passar uns bons quatro meses em Maceió anualmente desde que o mundo era mundo. Desta vez, entretanto, ela ficara por lá bem mais do que o previsto. E, de quebra, teve a companhia de meu irmão, que foi para lá no intuito de protegê-la da pandemia nas asas da Panair.

Ele fez o certo. Minha mãe dificilmente votaria em alguém como o Bolsonaro. Por ela, ele chegaria em segundo lugar ainda que disputasse sozinho uma eleição. Mas foi difícil convencer uma pessoa de mais de oitenta anos que a pandemia era algo sério, de uma letalidade inédita. Ela foi obrigada a usar máscaras bicos-de-pato em coletivos e táxis, cabendo a meu irmão o papel, não tão censurável para o momento, de “superego”.

Bem, lá fui eu fazer a faxina – não posso me arriscar a ficar de fora da herança. Enquanto eu limpava a varandinha, suja que nem pardieiro, senti a presença de pequenos olhos a me vigiar. Seguiram-se uns trinados, sabe. Depois uns rasantes dignos de filmes de Segunda Guerra Mundial. Era um passarinho bonito, de bico fino, que ia e vinha sobre a minha cabeça. Um “spitfire” da cor de fogo.

Levei tempo para entender a situação, analfabeto que sou em ornitologia.

O que era? Era que o bichinho construíra um ninho com uma porção de pedrinhas ao lado do vão do ar-condicionado. Assim a ninhada ficaria protegida das intempéries.

Levantei a cabeça ali, tirei foto: pareciam aquelas pedras que são colocadas à beira-mar, barricadas contra a ressaca. Indaguei-me como o passarinho fora capaz de carregar tantas pedras para construir seu ninho.

Era trabalho para muitos passarinhos, decerto. Cada pedrinha ali deveria pesar quase o peso dele. E eram muitas. Pareciam, sei lá, uma roda de fogueirinha. Vi também que havia uma linha de pipa, que ele, o passarinho, deve ter debicado.

Fechei a janela e fui cuidar da vida.

Faxina feita, liguei para meu irmão para informá-lo de minha descoberta. Disse-lhe que eu não iria tomar parte de nenhuma remoção. Meu irmão, rindo, me disse que já conhecia o passarinho de outros carnavais. E disse que não era para mexer em nada mesmo. Afinal, o passarinho já era de casa.

Ou seja, se desavisadamente eu tivesse mexido no ninho no meu afã de limpeza total, eu tomaria bicadas do passarinho e de meu irmão. Ainda bem que sou preguiçoso feito Macunaíma.

Caso encerrado? Coisa nenhuma! A curiosidade me matava. Por isso liguei para o professor Gabriel, que, além de professor de artes, é especialista em passarinhos. Mostrei-lhe a foto do ninho que tirei e ele me disse, com a mais absoluta certeza, na lata, que se tratava de um “gibão-de-couro”. E ainda me deu aula, me dizendo que o bichinho comia insetos em pleno voo. Como é que eu iria mexer com um bicho desses, me diga?

Há outro nome para o “gibão-de-couro”, de acordo com o ornitoGoogle: birro. Confesso ter gostado mais do segundo nome, mas recolhi-me à minha insignificância e fui tratar de catar algumas palavrinhas para reconstituir o ninho, o meu ninho, e ainda lhe trouxe estas mal traçadas linhas no bico, que não posso fazer birra porque eu não sirvo nem para espantalho.”

A UM HOMENZARRÃO (Para Erivelto Reis)
Se vieste
Mexer no meu ninho
Te furo o coco,
Sou passarinho

Te espeto o bico
Que afiei
Com todas as pedras
Que carreguei

Eu voo e volto
Ao mesmo lugar
Bicho sem asas
Não tem como errar

E não me importo
Se és poeta
Eu só cutuco
Ao pé da letra

Por isso estou
Sempre alerta
A debicar
(Na) tua cabeça

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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