Por Marcia Tiburi, em Revista Cult –
Mais uma vez, em defesa da democracia.
A chamada “comissão especial do impeachment” seria irônica se não fosse um estranho fenômeno de cinismo no pior sentido: a maior parte dos deputados que dela participam são acusados por algum tipo de corrupção. Salvam-se poucos. Uma câmara de deputados que, na sua maioria, parece trabalhar contra a democracia em todos os seus atos vai julgar uma das poucas pessoas que não foi acusada de cometer nenhum crime.
Qual o teor de um julgamento sem crime de responsabilidade? Não podemos compreendê-lo sem que nos coloquemos à questão ética que deveria fundamentar esse procedimento e todas os nossas operações políticas em todos os níveis, micro e macropolíticos. Ética, a uma altura dessas, pode parecer algo meramente retórico. Falar dela dá a sensação de anacronismo.
A acusação é uma velha estratégia de quem quer se redimir por antecipação, desviar a atenção da própria culpa. Talvez por isso, no Brasil, as pessoas tenham se apegado tão facilmente à acusação e a corrupção tenha se tornado “corrupção dos outros”. Essa é a forma superficial que a questão da corrupção assume entre nós. Quando os brasileiros começarem a se ocupar com uma reflexão menos superficial sobre a corrupção de si promovida pela corrupção substancial do capitalismo na vida, nos corpos, na mentalidade e na existência como um todo, então podemos ter esperanças no fim dela.
Enquanto isso, o presidente da câmara, suspeito e acusado de diversos crimes continua conduzindo o processo de impeachment como se nada estivesse acontecendo com ele mesmo.
Fato é que a defesa da democracia entre nós confunde-se hoje com a defesa do mandato da presidente Dilma Rousseff que, hoje em dia, parece sofrer realmente algo da ordem de estupro político. Dilma foi objetificada para os fins inconfessáveis dos defensores do impeachment. Seria ela tão maltratada se não fosse mulher? É uma pergunta que podemos nos colocar, sobretudo as mulheres que sabem como sofrem, simbólica e fisicamente, apenas porque são mulheres. Teríamos que aprofundar um pouco a questão do fator “gênero” no caso da posição ocupada por Dilma Roussef hoje. Ser a primeira mulher a assumir a presidência da república deve causar muita raiva, muito ódio e muita inveja em muitos homens que consideram que esse cargo seria seu de direito. As mulheres conhecem a inveja masculina, sabem que a inveja masculina, como qualquer outra, é destrutiva. Mas vem com a força física e a força do poder da dominação masculina. A inveja é pior naqueles que tem o poder nas mãos.
O governo Dilma não é o governo dos sonhos do povo brasileiro, muito menos das feministas. Na realidade, é um governo muito ruim. No quesito ajuste fiscal, trabalhadores saem perdendo em benefícios enquanto taxas de juros beneficiam quem tem capital, as grandes corporações. No campo dos direitos das mulheres e dos grupos LGBT, tudo o que era péssimo ficou ainda pior. A intromissão do preconceito religioso e fundamentalista ataca as poucas leis minimamente razoáveis sobre direitos reprodutivos, sem que o governo tenha investido em políticas públicas voltadas para as mulheres e a população LGBT, inclusive de esclarecimento acerca desses direitos. O Estatuto do Nascituro e a absurda “bolsa estupro” são retrocessos objetivos em nossa cultura promovida por coronéis machistas e que não tem o mínimo respeito pela cultura e pelo cotidiano, bem como pelos direitos das mulheres. Infelizmente, eles não receberam o necessário rechaço da presidenta. No que concerne aos direitos dos povos originários do Brasil, a situação é das piores. Indígenas brasileiros vivem em estado de invisibilidade quanto a direitos e, ao mesmo tempo, submetidos a todo tipo de violência. A usina de Belo Monte em terras indígenas, o chamado “recorde negativo” de demarcação de terras, no faz lembrar de momentos infelizes da história brasileira como a ditadura. Mesmo assim, nada disso justifica um golpe disfarçado na forma jurídica distorcida do impeachment.
A defesa da democracia como um princípio que assegura que podemos confiar nas instituições, exige que não se cometa um crime contra a democracia. O golpe, ou o processo de conspiração e julgamento sem crime de responsabilidade, é ele mesmo o crime em cena. Um crime que se disfarça de direito e de defesa da democracia. Orquestrado pelo legislativo, o judiciário, e a mídia, os poderes que regem o Brasil cada vez mais ignorante e mistificado, o golpe é a máxima corrupção à qual parcela do povo faz coro, assinando embaixo de uma cultura corrupta que serve àqueles que desenvolvem uma relação com a sociedade ao nível do individualismo egoísta, avarento e predador.
Hoje a defesa do golpe e a execração cotidiana da presidente (que vem acompanhada de todo tipo de ignorância sobre “comunistas” e outras designações políticas) tornou-se gesto que faz parte de toda uma cultura autoritária que toca o fascismo. O golpe foi introjetado por alguns cidadãos, como se tivesse nascido em seu coração. A população se torna ela mesma golpista sem entender de que modo é manobrada, sobretudo pelos meios de comunicação.
O golpe, seja como Grande Golpe institucional, seja como o pequeno golpe que cada um traz dentro de si, faz parte da grande ideologia que impede que se veja o que de fato está acontecendo. Essa ideologia é a face sorridente do capitalismo que agrada até mesmo às suas vítimas.
Tirada a máscara ideológica, surgirá a caveira descarnada da democracia.
Retornamos ao pó da barbárie.