Levantamento mostra que, de 2019 a 2022, houve 1.171 violações contra ativistas, de ameaças a homicídios; indígenas foram maioria entre vítimas fatais
Por Oscar Valporto, compartilhado de Projeto Colabora
Na foto: Homenagem ao indigenista Bruno Pereira e ao jornalista Dom Phillips no Ministério da Justiça: levantamento aponta assassinato de 169 defensores e defensora dos direitos humanos no governo Bolsonaro (Foto: Antônio Cruz/ Agência Brasil – 05/06/2023)
Levantamento realizado pelas ONGs Terra de Direitos e Justiça Global revela o alarmante ataque a quem defende os direitos humanos durante o governo Bolsonaro: de 2019 a 2022, o levantamento registrou 1171 casos de violência contra os defensores e defensoras de direitos, incluindo 169 assassinatos e 579 ameaças. “Foram quatro anos marcados pelo fechamento dos espaços institucionais de participação social e pela ausência de transparência governamental, por uma política baseada na desinformação, pelo ataque às vozes dissonantes e pela criminalização da luta pelos direitos humanos e de quem se opunha à política em andamento”, destaca o relatório ‘Na Linha de Frente: violações contra quem defende direitos humanos (2019-2022)’.
Entre os 1171 casos de violência contra defensoras e defensores de direitos humanos durante o governo Bolsonaro, o estudo identificou os seguintes tipos: Ameaças (579 casos); Atentados (197 casos); Assassinato (169 casos); Criminalização pela via institucional (107 casos); Deslegitimação (63 casos); Agressão física (52 casos); Importunação sexual (2 casos); e Suicídio (2 casos). Os dados do levantamento destacam que defensores indígenas foram alvos de grande parte das violências: 346 casos – entre eles, 50 assassinatos e 172 ameaças.
Os autores do relatório ressaltam que a política do governo Bolsonaro contribuiu para fortalecer grupos de extrema direita alinhados ao fascismo. “Esse governo elegeu como inimigos declarados indígenas, quilombolas, mulheres, pessoas LGBTQIA+, trabalhadoras e trabalhadores – especialmente sem-terra – e defensores e defensoras de direitos humanos de forma geral. Entender o passado é essencial para articular projetos de futuro”, explicam. “Este relatório expõe o contexto de ameaças, violações e perseguições enfrentado por defensoras e defensores de direitos humanos no período do governo de Jair Bolsonaro e é parte do reconhecimento do importante papel dessas pessoas na transformação da sociedade”, acrescentam.
De acordo com o levantamento, todos os 27 estados da federação registraram, pelo menos, uma ocorrência de violência mapeada no período. O estado com maior número de violações registradas contra pessoas defensoras de direitos humanos foi o Pará, onde 143 violações ocorreram, seguido pelo Maranhão. As regiões Nordeste e o Norte concentram o maior número de violações contra defensoras e defensores de direitos humanos.
Assassinatos e atentados
De acordo com o relatório Na Linha de Frente, os assassinatos representaram entre 12% e 20% do total de violações reportadas em cada ano. Apesar de 2021, ser o ano com maior número de assassinatos, 2022 foi o ano em que assassinatos apresentaram maior proporção, em relação aos outros tipos de violência. Praticamente um terço dos casos de assassinatos de defensores e defensoras foi registrado entre o segundo semestre de 2021 e o primeiro semestre de 2022. O Maranhão foi o estado com maior número de defensoras e defensores assassinados, seguido do Amazonas, Pará e Rondônia. “O Norte é a região com o maior número de assassinatos, o que pode ser explicado pelo alto índice de conflitos fundiários na região (grilagem de terras públicas, invasões em terras indígenas, desmatamento, mineração ilegal)”, aponta o documento, lembrando o caso do assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalismo Dom Phillips, no Vale do Javari (AM).
O relatório Linha de Frente ressalta ainda que alguns locais registraram assassinatos de defensoras e defensores em mais de um momento, como o Acampamento Tiago dos Santos, localizado na área das fazendas NorBrasil e Gleba Arco-Íris, em Nova Mutum Paraná, Porto Velho (RO). Este acampamento de trabalhadores rurais sem-terra registrou o assassinato de cinco camponesas e camponeses defensores de direitos humanos entre 2019 e 2022.
No levantamento, dos 169 casos de assassinato registrados, em 89 deles foi possível identificar a cor ou raça das vítimas. Dentro desse universo, indígenas são as maiores vítimas desse tipo de violência, seguidos das pessoas negras (pretas e pardas). Pessoas brancas são a minoria. O relatório aponta ainda que a a média de indígenas e pessoas negras assassinadas é maior do que a média das outras violações sofridas por esses grupos populacionais. “A maior incidência de violência letal contra pessoas indígenas e negras é decorrente do racismo estrutural na sociedade brasileira e, lamentavelmente, segue um padrão nacional”, afirma o relatório, que lembra pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicando que 77,6% das vítimas de homicídio doloso em 2021 eram negras.
A maioria de homens entre as vítimas de assassinato é maior que a proporção de homens que sofreram outras violações. O mesmo acontece entre mulheres transexuais e travestis, mas tendência oposta é registrada entre mulheres cisgênero. Além de registrar a identidade de gênero da vítima, o levantamento também buscou registrar, quando possível, a orientação sexual. “Entre defensoras e defensores de direitos LGBTQIA+ assassinados, foi possível identificar situações de violência motivadas pela luta da vítima ligada ao movimento LGBTQIA+, mas também de mortos em razão de outros conflitos, como Fernando Araújo dos Santos, trabalhador rural gay assassinado em 2021”, destaca o relatório.
De acordo com o levantamento, foram registrados 197 atentados ao longo do período estudado. Das cinco regiões do país, o Centro-Oeste e o Sul têm médias de atentado acima das médias do total das outras violações mapeadas nos estados daquelas regiões. O relatório cita casos nos locais que concentram um número expressivo de atentados. Os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul foram o palco do ataque de Colniza, contra os trabalhadores rurais na Fazenda Agropecuária Bauru (Fazenda Magali), que resultou na morte de Eliseu Queres de Jesus e deixou outras nove pessoas feridas, bem como de atentados ao povo Guarani Kaiowá, na TI Ñu Vera, e na TI Amambai, também conhecido como Massacre Guapo’y. “Esses episódios dão lugar de destaque ao Centro-Oeste. No Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Pará, as médias de atentado ficam acima da média total de outras violações registradas naqueles estados na pesquisa global”, ressalta o Linha de Frente
Ameaças, uma rotina
O levantamento das ONGs Terra de Direitos e Justiça Global registraram 579 ameaças no total – o que representa praticamente metade dos casos de violência entre 2019 e 2022: o tipo de violência mais frequente no estudo. Dos 1171 casos de violência registrados, 579 deles são de ameaças – 49,44% do total. A maior parte das pessoas ameaçadas durante o Governo Bolsonaro atua na defesa de direitos ligados à terra, ao território e ao meio ambiente. “A média de pessoas ameaçadas que estão engajadas na luta pela terra, território e meio ambiente é maior do que a média dos casos totais de defensoras e defensores dessa luta em todo o levantamento. O oposto acontece com as pessoas lutando por outros direitos – educação, igualdade racial, igualdade de gênero, liberdade de expressão. Elas são mais frequentemente vítimas de outras violações que não as ameaças”, aponta o relatório.
Ao analisar a distribuição de gênero e as ameaças, o documento aponta que mulheres são as vítimas mais frequentes. “Percebe-se que as mulheres
cisgênero são mais representadas entre defensoras e defensores ameaçados. Já os homens são menos representados entre as ameaças do
que nas outras violações. As médias totais de pessoas desses gêneros também sugerem que as mulheres foram mais recorrentemente ameaçadas do que vítimas de outras violações mapeadas. Essa tendência é oposta àquela encontrada entre os assassinatos”, destaca o relatório Linha de Frente.
O levantamento indica ainda que, do total dos episódios para os quais se tem informação da identidade de gênero, quinze deles tiveram pessoas transgênero e travestis como vítimas. Uma única defensora da luta por direitos LGBTQIA+ esteve presente em sete violações distintas, sofrendo diferentes tipos de ataques (múltiplas ameaças e deslegitimação) em várias datas.
Criminalização e deslegitimização
O relatório Linha de Frente destaca ainda 107 episódios de criminalização. “O ato de judicializar uma ação contra a luta ou o defensor e defensora foi categorizado como criminalização, no intuito de registrar a violência praticada pela via institucional”, explicam os autores. Neste caso, as pessoas lutando por liberdade de expressão, direitos LGBTQIA+, igualdade racial e de gênero e outros direitos humanos amplamente considerados foram mais frequentemente vítimas de criminalização do que aquelas defendendo terra, território e meio ambiente.
O documento aponta ainda que defensoras e defensores de direitos humanos criminalizados não raramente também são vítimas de outras violências
– “quase como se a criminalização fosse parte de um processo de reiteradas violências que tentam retaliar ou impedir a sua luta”. O relatório indica, como exemplo, o advogado popular José Vargas Sobrinho, alvo constante de ameaças de mortes, às quais somou-se, em 2021, um processo de criminalização. Outro exemplo citado é o dos quilombolas Celino Fernandes e Wanderson de Jesus Rodrigues Fernandes, presos em 2019 por defenderem direitos da comunidade (criminalização): eles foram posteriormente assassinados. “É oportuno citar que a criminalização pode acontecer mesmo depois da morte
da defensora ou defensor. Dois defensores assassinados sofreram criminalização pela via institucional, ou seja, as instituições judiciais agiram contra
a(o) defensor(a) após a morte, no processo de denúncia e reparação”, frisa o documento.
As ONGs Terra de Direitos e Justiça Global registraram ainda 63 casos de deslegitimação de defensoras e defensores de direitos humanos, a quinta violação mais frequente do levantamento. Foram considerados nesse tipo atos de calúnia, difamação, ataque à honra, xingamentos racistas, machistas, homofóbicos e transfóbicos, interrupções públicas, racismo religioso e outros atos arbitrários. “Nessas situações, foram considerados aqueles ataques feitos com a intenção deliberada de deslegitimar a atuação da defensora ou defensor”, de acordo com os autores.
O levantamento aponta que ss episódios de deslegitimação são mais recorrentes contra pessoas defensoras de direitos negras. “Mulheres cisgênero são as vítimas mais frequentes de alguma forma de deslegitimação entre todas e todos os defensores que são vítimas desse tipo de violência, que atinge
também com grande frequência mulheres transexuais e travestis”, destaca o relatório Linha de Frente.
As vítimas e os agentes da violência
Na parte do levantamento sobre os alvos das violações, os autores apontam que as defensoras e defensores engajados na luta pela terra sofrem mais ameaças, atentados e são mais assassinados do que pessoas na luta por direitos civis e políticos. “Isso demonstra que as pessoas à frente da luta pela terra, seja no contexto de territórios tradicionalmente ocupados, rural ou urbano, estão particularmente expostas a ataques contra a integridade física e contra a vida”, destaca o relatório.
O documento também aponta que os agentes privados são os principais responsáveis por ataques à vida de defensoras e defensores, pelas ameaças e pelos atentados. Na maioria dos assassinatos registrados pelo estudo, foram fazendeiros, garimpeiros, seguranças privados ou outros atores pertencentes à tipologia de agentes privados que praticaram o crime. Nos 26 assassinatos em que é apontada a presença de agente público, este agente é a a polícia. Em alguns casos, a polícia é citada como corresponsável, ao lado de fazendeiros e jagunços.
Mas os agentes públicos estão mais frequentemente associados a violações de criminalização e deslegitimação. As criminalizações, pela via institucional, são o tipo de violação mais associada aos agentes públicos, de acordo com levantamento. Também nos casos de deslegitimação, a média de agentes públicos envolvidos (13,3%) excede aquela de privados (3,5%). Esse tipo de violência está ligado ao aparelho estatal, por isso a associação com
violadores não privados.
O relatório Linha de Frente também destaca algumas características das violações contra os defensores de direitos durante o Governo Bolsonaro: a desinformação com o abuso das fake news contra quem defende direitos; a violência contra crianças e jovens indígenas; os ataques contra jornalistas e comunicadores; a violência política e eleitoral; e a violência contra defensoras e defensores em despejos forçados. “É grave a situação das pessoas
defensoras e defensores de direitos humanos no Brasil. Defender direitos humanos é caso de polícia, de justiça e, em muitas vezes, de morte”, destaca o relatório em sua conclusão.