Por Marina Rossi, compartilhado de El País –
Segundo cálculos, demanda reprimida deveria estar perto de 1,7 milhão de famílias, três vezes mais do que o número divulgado pelo Ministério da Cidadania
O Programa Bolsa Família vive, sob o Governo Jair Bolsonaro, o que pode ser um de seus momentos com maior fila de espera para ingresso da história, com o corte de benefícios e uma redução inédita na concessão de novos auxílios. Cálculos realizados pelo EL PAÍS, com base em dados públicos, estimam que 1,7 milhão de famílias, ou cerca de 5 milhões de pessoas, estariam atualmente aptas a ingressar no programa, ou seja, preenchem todos os critérios para receber o auxílio antimiséria. O Governo Federal, no entanto, não revela os números exatos dessa fila. O Ministério da Cidadania fala apenas em “uma média nacional” de 494.229 famílias à espera do programa em 2019, sem disponibilizar os números absolutos mês a mês de entrada e saída de famílias e nem o número de habilitados a receber, mas ainda sem a bolsa.
Os dados oficiais da espera pelo Bolsa Família, de quase meio milhão, foram obtidos pelo jornal O Globo, via Lei de Acesso à Informação após quatro meses de espera, e depois confirmados ao EL PAÍS pelo Ministério da Cidadania nesta segunda-feira. O problema é que os dados repassados não são condizentes com os números históricos da fila no país e com a situação econômica vigente, que trouxe um aumento no número de miseráveis.
Nem os números do Cadastro Único, que reúne dados do programa e são públicos, nem a situação de renda e crescimento econômico do país são congruentes com essa “média” apresentada. Os dados divulgados chegaram a ser comemorados pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra. “Viram nos Governos Lula e Dilma uma manchete assim? Não. Em todos os anos do PT na Presidência existiram enormes filas do Bolsa Família. No Governo Dilma chegou a 1,2 milhão de famílias. Falo como primeiro gestor a zerar a fila. Mesmo com a recessão que o PT deixou, a fila hoje é menor que a deles.” O texto foi publicado em seu Twitter na segunda-feira, juntamente com a manchete do Globo que falava da fila de espera.
Viram nos Govs Lula e Dilma uma manchete assim?Não.Mas em todos os anos do PT na Presidência existiram enormes filas do BF. No Gov Dilma chegou a 1,2 milhão de famílias.Falo como primeiro gestor a zerar a fila.Mesmo com a recessão que o PT deixou,a fila hoje é menor que a deles. pic.twitter.com/qmgFMWv08A
— Osmar Terra (@OsmarTerra) January 27, 2020
Uma análise detalhada dos números, porém, desafia a comemoração com base nas cifras apresentadas como oficiais. Somente em 2019, foram cortadas do programa quase 1,2 milhão de famílias, em uma queda contínua, mês a mês. Ainda no ano passado, houve um freada brusca na concessão de novos beneficiários. Em 2019, o Governo ofereceu 66% menos novos benefícios em comparação a 2018. É o coeficiente de famílias cortadas, mas ainda aptas a receber, adicionadas às que não entram mais no programa —num contexto de não melhora expressiva da economia— que pode estar gerando essa fila de espera estimada maior que a “média” oficial.
Entre julho e outubro —último mês com dados oficiais sobre as novas concessões—, a quantidade de novas famílias que entraram no programa despencou. A partir do meio do ano, a média de novas concessões, que antes girava em torno de 220.000 famílias por mês, caiu abaixo de 10.000. Nunca houve um ano com tantos meses com menos de 10.000 novos benefícios concedidos como em 2019. O quadro é inédito na história do programa, pelo menos entre 2014, primeiro ano de dados disponíveis, e 2018.
Um gestor do programa no município de Inhapi, interior de Alagoas, afirmou à reportagem que a porta de entrada do Bolsa Família está “fechada”, desde a metade do ano passado. Ou seja, os cadastros continuam sendo feitos, mas ninguém entra no programa. A dona de casa Iara Rodrigues Rocha, 16, afirma esperar desde julho para ser contempladas. Segundo a assistente social da cidade, ela se enquadra em todos os requisitos para ser beneficiária. “Enquanto espero na fila, vou pegando fiado”, afirmou, com a filha de menos de um ano no colo.
O número de beneficiários do Bolsa Família sempre foi flutuante, uma vez que algumas famílias perdem o benefício por razões como o aumento da renda ou a não atualização do cadastro, obrigatória para permanecer no programa. Ao mesmo tempo, novas famílias ingressam, seja pela atualização dos dados, seja pela queda na renda per capita que as fazem entrar de volta para a faixa da pobreza. Para receber o benefício é preciso ter uma renda mensal máxima de 89 reais por pessoa, ou 178 reais em caso de famílias com filhos até 18 anos. O que foge da normalidade, segundo quem acompanha de perto o programa, é a redução da marcha de novas concessões para quase o ponto morto.
Desde junho, quando o programa começou a diminuir abruptamente, o mercado de trabalho tampouco apresenta dados que corroborem um possível argumento de que o programa Bolsa Família poderia ter encolhido por uma melhora nos índices da economia. Ou seja, os especialistas que conversaram com o EL PAÍS argumentam que é razoável esperar que um contingente de cerca de 200.000 famílias por mês seguiriam tentando entrar no programa, sem sucesso, virando, então, demanda reprimida.
Além disso, no final de 2018, o Brasil somava 13,5 milhões de miseráveis, numa crescente desde 2015. A taxa de desocupação no trimestre julho-agosto-setembro de 2019 ainda estava em 11,2%, valor menor do que no auge da crise econômica, mas ainda assim idêntico ao de meados de 2016. Por fim, a estimativa para o PIB do ano passado é modesta, girando em torno de 1%, o que também não explicaria uma melhora súbita da renda dos elegíveis ao programa.
A expectativa para este ano também não é das mais otimistas, já que, com um corte de 12%, o Orçamento para o programa ficou em 30 bilhões de reais. Por mês, isso implicaria em transferências no montante de cerca de 2,4 bilhões de reais. Se a transferência média por família continuar igual à de dezembro, ou seja, 191.77 reais, o Bolsa Família precisará, não só aumentar a fila, como ainda cortar mais de 350.000 famílias para caber no Orçamento de Bolsonaro, considerando as 13,1 milhões de famílias beneficiárias de dezembro. Tudo isso sem considerar o pagamento do décimo terceiro concedido por Bolsonaro em 2019 para acomodar uma promessa de campanha.
Oficialmente, a pasta diz que o número menor de benefícios se deve a uma reformulação do programa que está em curso, sem oferecer maiores detalhes. A reportagem questionou repetidas vezes o Ministério da Cidadania, por meio de sua assessoria de imprensa, sobre a base de cálculos da média de espera, bem como os números absolutos, mas não recebeu resposta. “Qualquer estimativa de cálculo, cruzando dados gerais do Cadastro ou da folha de pagamento do Bolsa será suscetível a erro”, limitou-se a dizer diante dos questionamentos. Mas reconheceu que “as concessões dependem do quantitativo de famílias habilitadas para o programa e estratégias de gestão da folha”. O EL PAÍS voltou a pedir os dados via Lei de Acesso a Informação, um trâmite ainda em curso.
“Rigorosamente o Governo está omitindo a informação”, diz a economista Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, ministério que coordenava o Bolsa Família nos Governos do PT. Campello diz que esse tipo de dispositivo —de se calcular uma média— nunca foi utilizado antes para se falar no tamanho da fila de espera do Bolsa Família. “Falar em média, quando se pergunta o total, é se utilizar de um artifício para esconder essa informação. “Por que então o ministro já chegou a afirmar que a fila estava zerada? Quando é para dar uma notícia positiva, tem o dado exato e agora, fala-se em média?”.