Por Gilberto Nascimento, compartilhado de The Intercept Brasil –
Tribunal de Contas foi acionado pela oposição após lucrativa coincidência que rendeu à empresa duas linhas da CPTM.
O GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO indenizou em mais de R$ 1 bilhão a concessionária ViaQuatro, responsável pela operação e manutenção da Linha 4-Amarela, do Metrô da capital paulista. O acerto, feito em março passado, se deveu – na justificativa oficial – a um desequilíbrio contratual originado de atrasos nas obras da estação Pinheiros, na zona oeste da cidade.
A demora foi motivada pelo desmoronamento no canteiro de obras da expansão do Metrô em 2007. Uma cratera de 80 metros de diâmetro se abriu e sete pessoas morreram. Um reajuste estava pendente desde então no contrato reivindicado pela empreiteira CCR – líder da ViaQuatro ao lado da RuasInvest, que opera frotas de ônibus na capital, e da Mitsui, empresa japonesa que atua em serviços, investimentos e comércio.
Um mês depois de receber a quantia do governo paulista, a CCR e a RuasInvest formaram outro consórcio — o ViaMobilidade —, que venceu um leilão de R$ 980 milhões no dia 20 de abril – praticamente o mesmo valor da indenização. Com isso, as empresas abocanharam a concessão de outras duas linhas de trens metropolitanos em São Paulo: a 8, a Diamante, e 9, a Esmeralda, da CPTM, a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos. A CCR e a RuaInvest passarão a operá-las por 30 anos.
A bancada do Partido dos Trabalhadores, o PT, na Assembleia Legislativa de São Paulo estranhou a coincidência de valores e, em 10 de junho, entrou com uma denúncia sobre a indenização no Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, o TCESP.
No documento, o deputado estadual Paulo Fiorilo, do PT, pediu análise dos valores pagos à ViaQuatro e dos contratos de concessão das linhas 8 e 9 para checar se houve eventuais irregularidades e um possível caso de “enriquecimento ilícito” dos proprietários da concessionária.
Para justificar os valores à ViaQuatro quase às vésperas do leilão das duas linhas da CPTM, o governo do tucano João Doria afirmou que a medida faz parte de uma série de “reequilíbrios” negociados entre o estado e as suas concessionárias.
O próprio acidente na estação Pinheiros, argumentam os petistas, foi uma tragédia anunciada. Teria sido consequência de mudanças no método construtivo implantadas pelo consórcio de empreiteiras, o Via Amarela, e realizadas para diminuir os custos da obra. Formado pela Odebrecht, OAS, Queiroz Galvão, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez, o grupo foi contratado para a execução da construção.
“O desastre não é culpa do solo nem fruto do acaso, como tentam despistar as autoridades tucanas do governo paulista. É obra da pressa e da negligência de gestores públicos que não quiseram dar ouvido às preocupações que deputados da oposição, sindicalistas e órgãos da sociedade civil da região de Pinheiros levantaram em várias ocasiões”, registrou, três dias depois do acidente, o então deputado estadual Simão Pedro, do PT, ao pedir a apuração de responsabilidades ao Ministério Público Estadual.
Após o acidente, o outrora parlamentar foi o autor das primeiras denúncias do trensalão tucano — um esquema de pagamento de propinas e formação de cartel para disputar licitações do Metrô e da CPTM no estado de São Paulo. Sob o governo do PSDB, as multinacionais Alstom e Siemens foram acusadas de fraudar licitações.
Uma parceria em que todos os riscos ficam com o estado
Logo depois do acidente na estação Pinheiros, os detalhes do contrato da concessão da Linha 4-Amarela vieram a público. “O governo do estado estava entrando com quase 90% do custo da obra, e não com 73%, como se dizia”, garante o ex-parlamentar Simão, que se tornou um especialista em assuntos metroferroviários e hoje é assessor da bancada petista.
Já que o governo assumiu quase o total do investimento, por que não administra a linha?”, questiona o ex-deputado.
“O que está havendo em São Paulo é uma transferência brutal de renda do estado para a concessionária privada. Na parceria público-privada, os riscos são divididos entre o estado e a concessionária”, diz Simão. “Mas, no caso da Linha-4, todo o risco ficou com o estado”, avalia. Perguntado, o governo não respondeu à crítica.
Além da parceria público-privada pouco favorável ao estado, a bancada petista faz outros questionamentos sobre o repasse de parte da receita do Metrô à ViaQuatro, pois a Linha 4-Amarela funciona integrada a outras vias controladas pela Companhia do Metropolitano de São Paulo, a estatal responsável pela rede metroviária.
Como não se sabe quantos passageiros compram os bilhetes numa conexão sob o controle da estatal, há dúvidas sobre esses cálculos. Esses dados nunca foram tornados públicos, de acordo com Simão Pedro.
O valor da tarifa não estaria sequer sendo dividido entre as linhas, mas repassado integralmente à concessionária, segundo o ex-parlamentar.
“Quem estimou o número de passageiros? Que cálculo foi esse? Como foi feito esse estudo e qual foi o valor combinado com a concessionária? Esses números estão apenas na cabeça da direção do Metrô. Nunca tivemos acesso”, reclama.
Procurada para comentar as críticas sobre a indenização de mais de R$ 1 bilhão à ViaQuatro e os repasses do valor das passagens, a Companhia do Metropolitano de São Paulo não se manifestou até a publicação desta reportagem.
Acusado de receber propina defende pagamento
Apesar das dificuldades financeiras do estado — a gestão Doria corta recursos orçamentários na saúde, educação, cultura e programas sociais — e do agravamento da crise econômica por causa da pandemia de covid-19, o vice-governador de São Paulo, Rodrigo Garcia, defende o pagamento à ViaQuatro.
“O capital privado precisa de estabilidade institucional e poder regulatório. Eventuais aditivos e reequilíbrios são comuns, e São Paulo não se furta a fazer isso. Temos feito um grande esforço de resolver passivos regulatórios para ter estabilidade regulatória”, explicou Garcia ao jornal Valor Econômico.
O vice-governador é um velho conhecido do setor metroferroviário. Em 2007, quando era deputado estadual em São Paulo pelo então Partido da Frente Liberal, o PFL, atual DEM, o advogado teria recebido R$ 1 milhão em espécie para acelerar a liberação de verba para a Linha 4-Amarela, do Metrô, segundo o ex-presidente da empreiteira OAS, Léo Pinheiro, preso pela Lava Jato em Curitiba.
Esse relato fez parte da proposta de delação do executivo, compartilhada por procuradores do Ministério Público Federal pelo Telegram, e tornada pública pelo Intercept e pela Folha de S.Paulo em reportagem da série Vaza Jato.
Em resposta, o vice-governador disse não ter tempo para comentar a denúncia de Pinheiro, por se tratar de “uma história sem pé nem cabeça”.
Ex-deputado federal e ex-presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo e da Comissão de Transportes e Comunicações da casa, Garcia também foi acusado de receber propinas da Siemens, em 2013, num esquema para facilitar a compra e a manutenção de trens da CPTM.
No ano seguinte, o ministro do Superior Tribunal Federal, o STF, Marco Aurélio Mello viu indícios de envolvimento de parlamentares paulistas — entre eles, Garcia, no trensalão tucano.
Citado pelo delator Everton Rheinheimer, ex-diretor da Siemens, Garcia disse não existir, no despacho de Marco Aurélio, “qualquer outro indício ou prova” contra ele. Em 2018, a 2ª Turma do STF, por 4 votos a 1, decidiu arquivar a acusação contra o político.
Em 2019, em outra delação, o ex-diretor do Metrô, Sérgio Côrrea Brasil, também contou que teria repassado dinheiro de propina a vários políticos, entre eles, Garcia. O suborno, de acordo com ele, se referia a repasses que o ex-executivo recebeu pelas obras da Linha 2-Verde, do Metrô.
Na época, via assessoria de imprensa, o vice-governador respondeu que a acusação de Corrêa Brasil não tinha fundamento. “Rodrigo Garcia já foi inocentado no STF por falsas acusações referentes ao Metrô de São Paulo e lutará novamente contra essa injustiça”, informou.
Um dos líderes do DEM em São Paulo, Garcia abandonou o seu partido e se filiou ao PSDB em 14 de maio. É cogitado como candidato de João Doria para concorrer ao governo de São Paulo e sucedê-lo em 2022.
Quem comanda a ViaQuatro?
Atualmente, a CCR é uma das empreiteiras mais próximas do governo tucano paulista. Detém várias concessões na área de mobilidade urbana na região metropolitana de São Paulo.
Além da Linha 4-Amarela, é responsável pelas linhas 5-Lilás e 17-Ouro, também em parceria com a RuasInvest. Em 2019, as empresas, unidas no consórcio ViaMobilidade, venceram o leilão da Linha 15-Prata. Mas o contrato foi anulado, e a pendência segue na justiça.
Maior operadora de concessões da América Latina, a CCR ainda opera a rodovia Presidente Dutra, a NovaDutra, o Rodoanel, a Via Oeste, a Bandeirantes e a Anhanguera, em São Paulo, e outras estradas no Rio, Paraná, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
Administra também o Metrô de Salvador, as barcas e os VLT no Rio de Janeiro e aeroportos — como os de Belo Horizonte, Quito, no Equador, Curaçao, nas Antilhas Holandesas, e San José, na Costa Rica.
Questionada sobre a indenização de R$ 1 bilhão, a CCR respondeu que “não comenta especulações”.