Possibilidade de comercialização envolve uma gleba do centro experimental de 7 hectares, denominada de São José, e preocupa Associação de Pesquisadores
Por Edimarcio A. Monteiro/edimarcio.augusto@rac.com.br, compartilhado de Correio Popular
Segundo a Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC), na Fazenda Santa Elisa foram desenvolvidas, desde 1932, variedades responsáveis por 90% do café cultivado no Brasil (Alessandro Torres)- Publicidade –
A Fazenda Santa Elisa, pertencente ao Instituto Agronômico de Campinas (IAC) e mais importante centro de pesquisa do café do país, corre o risco de ser desmembrada e ter partes vendidas, o que prejudicaria trabalhos científicos desenvolvidos há décadas. O alerta foi feito pela presidente da Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC), Helena Dutra Lutgens, ao apontar que o processo de mapeamento e de demarcação da parcela do centro experimental a ser vendida já foi realizado pelo governo estadual. A fazenda ocupa 692 hectares em área urbana, o equivalente a 989 campos de futebol, onde foram desenvolvidas, desde 1932, variedades responsáveis hoje por 90% do café cultivado no Brasil, maior produtor mundial.
Helena Lutgens analisou que “por um interesse financeiro imediatista” estão colocando à venda áreas que possuem uma grande importância científica e de “preservação de áreas remanescentes de matas, proteção da biodiversidade”. De acordo com ela, a eventual venda afetará a produção de água e as condições climáticas. Helena ressaltou que outras parcelas de centros de pesquisas e preservação estão sob risco de venda no Estado, entre elas áreas do Instituto Florestal, Instituto de Zootecnia e fazendas experimentais em São Roque, Tietê e Pindamonhangaba.
A possibilidade de venda está permitida pela lei de concessões nº 16.388, de 2016, que garantiu ao governo a possibilidade de alienação de áreas inferiores a 50 alqueires sem necessitar de autorização da Assembleia Legislativa. No caso da Fazenda Santa Elisa, a possibilidade de comercialização envolve uma gleba do centro experimental de 7 hectares, pouco mais de 1% do total, denominada de São José. Porém, nela existem exemplares únicos de diversas espécies de café, além de abrigar a população mais antiga do mundo da variedade arábica clonada por cultura de tecidos.
Segundo a APqC, foram mais de 20 anos de estudos para se atingir a viabilidade técnica e longevidade desses pés da planta. “Ele (o governo) justifica que essas áreas estão ociosas, mas isso é resultado de sucateamento ao longo das últimas décadas, com redução dos investimentos em pesquisa, redução do quadro de pesquisadores e funcionários. O governo não valoriza a ciência e o patrimônio público”, criticou a segunda secretária do APqC, Roseli Torres, funcionária aposentada do IAC e ex-curadora do herbário do órgão.
Em nota, a Secretaria de Agricultura afirmou que realiza estudos para avaliar a viabilidade de venda de áreas pertencentes à Pasta e que a definição de qual ação será tomada ocorrerá após a conclusão dessas análises. A Secretaria reforçou que áreas que contém pesquisa em andamento e bancos de germoplasma de culturas perenes, como o café, não serão alteradas. “Toda e qualquer decisão tem como premissa garantir que as áreas de pesquisa em andamento sejam preservadas, modernizadas e valorizadas e serão tomadas em conjunto com a diretoria dos institutos estaduais.”
Por fim, a Pasta informou que foi realizado concurso público de provas e títulos para o preenchimento de 37 vagas de pesquisador científico da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA) e que trabalha em um projeto de valorização das carreiras dos pesquisadores paulistas.
REFLEXOS NA ECONOMIA
Os prejuízos para as pesquisas com o café, advertiu a Associação dos Pesquisadores, impactariam a economia nacional. A cafeicultura é uma das principais atividades agrícolas do país, com uma produção no ano passado de 55,1 milhões de sacas, crescimento de 8,2% em comparação ao ciclo de 2022, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), órgão do Ministério da Agricultura e Pecuária.
São Paulo é o terceiro maior Estado produtor, com o café em sexto lugar das exportações do agronegócio paulista. De janeiro a setembro deste ano, as vendas ao exterior renderam ao Estado US$ 944,21 milhões (R$ 5,34 bilhões), de acordo com balanço divulgado pelo Instituto de Economia Agrícola (IEA), da Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento. Cidades da região de Campinas estão entre as principais produtoras paulistas, como Espírito Santo do Pinhal e São João da Boa Vista. Além disso, o café é uma das bebidas mais populares do país. O consumo nacional per capita é estimado em 6,4 quilos por ano.
A Fazenda Santa Elisa abriga o maior banco de germoplasma (materiais hereditários de um organismo que pode crescer e se desenvolver) do Brasil e um dos principais do mundo. De acordo com a APqC, a área da gleba São José abriga a população mais antiga do mundo da variedade arábica clonada por cultura de tecidos. Segundo a entidade, foram mais de 20 anos de estudos para se atingir a viabilidade técnica e longevidade desses pés da planta.
IMPORTÂNCIA
A fazenda experimental reúne cerca de 5 mil “acessos”, como são chamados os diferentes tipos de café, muitos considerados raros e em extinção. Esses trabalhos científicos são importantes para a melhoria genética do café, sendo essenciais para o desenvolvimento de plantas mais resistentes a pragas, mudanças climáticas ou com melhor produtividade. Entre as variedades obtidas a partir desse germoplasma estão todos os cultivares resistentes à ferrugem e, mais recentemente, ao bicho mineiro.
A ferrugem é a principal doença da cultura e está presente em todas as regiões produtoras no mundo. Ela é causada por fungos, foi relatada pela primeira vez no Brasil em 1970 e pode causar perdas de 30% na produção em regiões onde as condições climáticas são favoráveis. Em caso de estiagem prolongada, os prejuízos chegam a 50%, com a ocorrência podendo causar a inviabilização do plantio em algumas propriedades, de acordo com o engenheiro agrônomo Matheus Paiva.
Outros estudos apontam que há também variabilidade genética para tolerância à seca e ao calor, características fundamentais para enfrentamento dos efeitos causados pela emergência climática, que já estão acontecendo no Brasil, explicou a presidente da Associação dos Pesquisadores. O banco de germoplasma de café do IAC, acrescentou Helena, foi criado a partir de 1930 e conta com material de todas as variedades de café existentes no país, além de outras existentes no mundo todo que foram obtidas por meio de acordos internacionais.
“Manter esse banco de germoplasma é a salvaguarda para a cafeicultura brasileira. Não podemos correr o risco de perder sequer um exemplar desse valioso material genético conservado no banco de germoplasma do IAC”, ressaltou Helena Lutgens. Uma das mais recentes novidades do Instituto Agronômico foi o desenvolvimento do café produzido naturalmente sem cafeína, criado após 20 anos de pesquisas.
Os testes de campo com o cruzamento de 13 variedades em diversas regiões do país para gerar grãos com essa característica começaram no ano passado. Essa fase definirá qual apresenta os melhores resultados na produção do mesmo café descafeinado encontrado nos supermercados, mas sem os processos industriais para retirar a substância. A previsão que o novo produto chegue ao mercado em 12 anos.
Esse é o tempo necessário para plantio, desenvolvimento das plantas e realização de várias colheitas em condições diversas para avaliação dos resultados. O novo produto será voltado principalmente para atender aos consumidores com sensibilidade à ingestão de cafeína.
HISTÓRIA E VISITA
A história do IAC se confunde com a vocação científica e a importância economicamente de Campinas. O Instituto Agronômico foi criado em 1887 pelas mão do Imperador Dom Pedro II, um grande incentivador da Ciência. Em 137 anos, o IAC mudou o hábito alimentar do brasileiro e foi protagonista na transformação da agricultura em um das principais atividades da economia nacional.
A Fazenda Santa Elisa foi incorporada ao instituto em 23 de fevereiro de 1898 para a instalação de campos experimentais. O centro de pesquisa é dividido em três áreas: agrícola, urbanizada e ambiental. A agrícola ocupa 55% do centro de pesquisa e é destinada à experimentação e produção de sementes melhoradas. O solo, de diversos tipos, é altamente fértil, produtivo e adequado para o cultivo de plantas anuais e perenes, de clima tropical, subtropical e temperado, segundo o próprio IAC.
A parte urbanizada ocupa 10% da unidade com sete centros de pesquisa (café, grãos e fibras, horticultura, solos, ecofisiologia e biofísica, fitossanidade e recursos genéticos vegetais) e outras unidades de infraestrutura (subfrota, pátio de máquinas agrícolas e armazéns). A parte ambiental representa 35% da fazenda com áreas ciliares, cerrados, várzeas, Mata Santa Elisa, nascentes, córregos e represas. As primeiras águas do Ribeirão Quilombo, afluente do Rio Piracicaba, nascem nessa área ambiental.
Parte dos espaços e das atividades do Instituto Agronômico estará aberta ao público para visitação durante o APTA Portas Abertas, amanhã e sábado, das 9h às 17h. A sede do IAC está localizada na Avenida Barão de Itapura, 1.481. O evento é gratuito, sem necessidade de inscrição antecipada. O APTA Portas Abertas celebra a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia e será promovido, simultaneamente, nas sete unidades de pesquisa vinculadas à Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA), proporcionando ao público um momento para conhecer de perto os trabalhos realizados pelos institutos e interagir com pesquisadores.