GOVERNO FHC ESPIONOU MST E ATÉ CORRENTES DO PT, REVELAM RELATÓRIOS INÉDITOS

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Documentos mostram que inteligência do Planalto sob comando de FHC monitorou falas, viagens e até os filhos de João Pedro Stedile.

Por Paulo Motoryn, compartilhado de The Intercept




Os relatórios confidenciais de inteligência revelam uma vigilância obsessiva contra o movimento e sua principal liderança, João Pedro Stedile, e dão a dimensão, pela primeira vez, do nível de detalhamento do monitoramento do governo tucano contra seus adversários políticos.

Os relatórios foram produzidos pela Subsecretaria de Assuntos Estratégicos, a SAE, órgão que substituiu o Serviço Nacional de Inteligência, o temido SNI, da ditadura militar – e depois daria lugar à Agência Brasileira de Inteligência, a Abin. 

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Fundado em 1984, o MST já havia sido tema de relatórios do SNI no governo de José Sarney e Fernando Collor. No entanto, com FHC, o monitoramento ganhou escala. Encontrei mais de 121 relatórios de inteligência que tratam especificamente do MST produzidos pelo governo tucano durante cinco anos. Como a Lei de Acesso à Informação determina a divulgação de documentos ultrassecretos, os mais importantes, somente após 25 anos, a dimensão e os abusos da espionagem política sob FHC podem ser ainda maiores.

O acervo deixa clara a linha de atuação do serviço, mas o mais grave é que vários dos documentos indicam a infiltração de agentes e informantes em atividades internas do MST em diversos estados brasileiros. Um deles, produzido em setembro de 1996, indica a interceptação de comunicações internas do MST. O relatório, datado de setembro daquele ano , descreve detalhes sobre estratégias e intenções do MST em relação às suas audiências com o governo federal, baseado em mensagens de líderes do grupo a um acampamento.

“João Pedro Augustin Stedile e Neuri Rossetto, ambos da Direção Nacional do MST, enviaram, no dia 5 de setembro de 1996, às lideranças do Movimento, acampadas em Brasília, um documento no qual afirmam ser esse fruto de uma análise da conjuntura nacional e dos últimos acontecimentos”, diz a abertura do documento confidencial, que versa sobre a reação de membros da Coordenação Nacional do MST a audiências com o governo federal realizadas dias antes.

Um outro relatório, de 25 de novembro de 1998, tem a seguinte frase: “O acesso a este conhecimento por pessoa não credenciada ou fora do âmbito da organização comprometerá irremediavelmente a fonte”. 

Consultado pelo Intercept Brasil, um ex-agente da Abin disse que a frase pode indicar que o material foi produzido por informante ou por um agente infiltrado. Segundo ele, porém, o “MST é o mais difícil de infiltrar” e “nunca um agente da Abin conseguiu penetrar no MST”.

Durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso, houve uma série de episódios violentos envolvendo o MST. O mais conhecido é o massacre dos Carajás, ocorrido em abril de 1996, quando 21 trabalhadores rurais foram assassinados no sudeste do Pará. Eles marchavam até Belém em protesto pela desapropriação de uma fazenda, quando foram interceptados por policiais militares. 19 morreram no local e dois no hospital.

Outro fato marcante do período, este mais intimamente relacionado ao presidente e o MST, foi a ocupação da fazenda Córrego da Ponte, em Buritis, Minas Gerais. Integrantes do movimento ocuparam a fazenda pertencente a FHC em 2002, pressionando pela reforma agrária. Antes, em 1995 e 1997, o MST já havia ocupado propriedades vizinhas às fazendas do presidente no Distrito Federal. 

FHC espionou de forma obsessiva líder do MST

Além do grupo em si, o líder sem-terra João Pedro Stedile, da coordenação nacional do MST, foi uma obsessão da gestão FHC. Dois dos relatórios que citam o economista apontam, com ar de preocupação, uma possível candidatura presidencial de Stedile pelo PT, em 1998. “Em certo momento, um grupo de pessoas no plenário começou a gritar: ‘Um, dois, três, queremos João Pedro, presidente do Brasil’, referindo-se a João Pedro Stedile, do MST”, diz o documento.

Há ainda dossiês de viagens de Stedile pelo Brasil. Uma delas, sobre Juiz de Fora, em Minas Gerais, indica que o autor do relatório de inteligência acompanhou o deslocamento do líder sem-terra pela capital mineira e até atividades de caráter pessoal. Outro documento chega a mencionar, sem qualquer justificativa plausível, atividades de militância dos filhos do líder do MST.

O governo FHC produziu até um “almanaque” de lideranças com detalhes sobre seu perfil político-psicológico. O documento confidencial, produzido em 1999, revela informações sobre coordenadores do MST no estado do Ceará, detalha aspectos íntimos e informações sensíveis das lideranças. Os integrantes do movimento são descritos com detalhes sobre sua atuação, participação em eventos, ocupações de terras e poder de mobilização – uma catalogação tão detalhada das atividades que fica evidente um enorme esforço para vigiar ou reprimir as ações do movimento.

Os perfis traçados pelo governo FHC sobre os líderes do MST cearense variam de radicalismo a moderação. Alguns membros, como Ailton Soares da Silva e Aírton Aloísio Kern, são identificados como radicais, “com tendências à confrontação direta para impor ideais revolucionários”. Outras lideranças, como Antônia Ivoneide Melo da Silva, são consideradas moderadas, mantendo um “papel de liderança significativo entre os trabalhadores rurais, mas optando por uma atuação mais conciliatória”.

Espionagem contra MST virou política de estado

Em 2016, uma conversa vazada entre o senador Romero Jucá, do MDB, e o empresário Sérgio Machado revelou que o monitoramento do MST continuava mesmo sob governos petistas, às vésperas do golpe contra a presidente Dilma Rousseff, do PT – é claro, à revelia dela.

“Estou conversando com os generais, comandantes militares. Está tudo tranquilo, os caras dizem que vão garantir. Estão monitorando o MST, não sei o quê, para não perturbar”, disse Jucá, na conversa que acabou implicando seriamente o então vice-presidente Michel Temer.

Na ocasião, o senador emedebista disse que a espionagem contra o MST seria iniciativa de militares – o que poderia ser feito pelo Exército brasileiro ou mesmo pela Abin, afinal a agência era vinculada ao Gabinete de Segurança Institucional. Durante o governo Dilma, o GSI foi chefiado por dois militares: José Elito Carvalho Siqueira e Marcos Antônio Amaro da Silva – esse último reassumiu o órgão em abril deste ano, já no terceiro governo Lula.

O episódio que escancarou a vigilância contra o MST em 2016 fez o grupo relembrar que foi alvo de espionagem sob a gestão tucana no Planalto. “Tivemos muitos problemas no governo Fernando Henrique Cardoso. No mesmo período da ocupação da fazenda houve relatos de que a Abin monitorava movimentos contra ocupações”, relembrou João Paulo Rodrigues, atual coordenador nacional do MST, em 2016.

‘Não é surpresa’, diz Stedile

Intercept apresentou os achados nos arquivos da SAE a João Pedro Stedile. Segundo o líder dos sem-terra, não é novidade que os aparatos de inteligência perseguem os movimentos sociais brasileiros. “Nós sempre estudamos como agem os serviços de inteligência, em todo o mundo, contra os movimentos dos trabalhadores. Por isso não é nenhuma surpresa”, disse.

Stedile afirmou que “desde que nasceu, o MST convive com esse tipo de prática dos serviços inteligência”. Para ele, porém, isso nunca foi motivo de temor. “Nós nunca nos preocupamos, porque as nossas ações sempre foram por uma causa justa, a reforma agrária. Lutamos sempre para que se aplicasse a lei, a Constituição… Não temos nada a temer”, declarou.

‘Eles agiam como agentes provocadores, para atiçar a massa a fazer besteira’.

O líder dos sem-terra, no entanto, ponderou que a espionagem durante a gestão FHC não era necessariamente determinação do então presidente. “Infelizmente esses órgãos sempre agiram assim, independente de qualquer governo. O próprio FHC deve ter sido monitorado por eles, quando era progressista, antes de ser presidente”, brincou.

Stedile disse ainda que o MST registrou, ao longo de sua história, muitos casos de infiltração em suas atividades – uma delas, inclusive, durante a ocupação da fazenda de FHC, quando ele ainda era presidente. “Eles agiam como agentes provocadores, para atiçar a massa a fazer besteira. Na própria ocupação da fazenda, depois descobrimos que a ocupação da casa foi estimulada por um agente infiltrado”, declarou.

Sobre o temor da ditadura quanto a uma possível candidatura presidencial contra FHC em 1998, Stedile disse: “Isso foi apenas brincadeira de alguns amigos, que gostavam de mim, admiravam a luta do MST pela reforma agrária, e aqui e acolá chegaram a comentar na imprensa. Nunca tive nenhuma pretensão de disputar cargos eleitos, de nenhum tipo”. 

FHC também espionou o PT 

Uma outra descoberta do levantamento do Intercept é que a SAE chegou a produzir relatórios de inteligência sobre os grupos Articulação de Esquerda e Brasil Socialista, duas correntes internas do PT, o principal partido de oposição a FHC, durante os seus dois mandatos. As informações detalham a estrutura, os líderes, as atividades e os objetivos dessas correntes dentro do partido.

O relatório sobre a Brasil Socialista indica que a corrente se utilizava de um instituto de estudos para desenvolver sua linha política. São destacados os principais líderes e suas atividades em diferentes estados, incluindo palestras, cursos de formação e contatos políticos. Há também menções sobre sua atuação junto ao MST e ao Movimento por uma Tendência Marxista.

Já sobre a Articulação de Esquerda, a AE – que segue em funcionamento até hoje –, o documento descreve a estrutura organizacional e as instâncias internas do grupo. O relatório ainda detalha as estratégias e publicações, além da atuação no movimento sindical, nos movimentos populares, na juventude e nas relações internacionais. A peça ainda debate os objetivos políticos e programáticos que a AE buscava alcançar dentro do partido.

Ambos os relatórios demonstram um conhecimento aprofundado sobre as atividades políticas internas do PT, com foco em suas diferentes tendências ideológicas e estratégicas. A profundidade das informações e o monitoramento detalhado sugerem um esforço do governo em entender e acompanhar de perto as dinâmicas internas do principal partido de oposição à época.

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