Grada Kilomba: “O colonialismo é a política do medo. É criar corpos desviantes e dizer que nós temos que nos defender deles”

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Por Joana Oliveira, publicado em El País – 

Artista multidisciplinar portuguesa, cuja exposição ‘Desobediências Poéticas’ está em cartaz na Pinacoteca de São Paulo, questiona as representações de arte e conhecimento

A artista portuguesa Grada Kilomba.
A artista portuguesa Grada Kilomba. MARESSA ANDRIOLI

Quando Grada Kilomba (Lisboa, 1968) preparava sua vinda para a Pinacoteca de São Paulo —onde sua exposição Desobediências Poéticas fica em cartaz até 30 de setembro, aconteceu “uma coisa muito curiosa”. Segundo conta, ao enviar sua biografia, a acadêmica, psicanalista, filósofa, escritora e artista multidisciplinar (como melhor se define), teve sua biografia reduzida por “uma série de instituições” como a “única estudante negra na universidade e que ganhou uma bolsa e ir para a Alemanha” —ela mudou-se para Berlim em 2008, para cursar o doutorado em Filosofia—. Todo o resto desapareceu. E é justamente na luta contra essa redução que a obra de Kilomba está centrada. Descolonizar é o verbo que ela, com origens em São Tomé e Príncipe e em Angola, mais conjuga.

“Como artista negra, todo o teu percurso desaparece muito rapidamente. E há um certo populismo em reduzir tua biografia a um roteiro quase de telenovela, uma coisa bem sensacionalista, que não explica quem tu és, nem a complexidade do teu trabalho”, reflete, em uma de suas instalações na Pinacoteca, com a fala pausada, em um tom de voz que é quase um sussurro e que transmite, ao mesmo tempo, firmeza e serenidade. Uma semana depois da conversa com o EL PAÍS, em julho, Kilomba tornaria-se a autora mais vendida da Flip 2019 (Festival Internacional de Literatura de Paraty), com Memórias da Plantação (Cobogó), em que narra histórias de racismo cotidiano.




O livro é um exemplo de seu trabalho híbrido e interdisciplinar: o texto surgiu com um formato acadêmico e transformou-se a ponto de ser adaptado para o teatro. “Nós temos uma noção muito patriarcal e fálica do que é o conhecimento. Fazemos muitas coisas, mas há uma hierarquia: aquilo que está ligado à academia é o verdadeiro conhecimento e a verdadeira profissão. Depois, nós nos especializamos numa coisa, depois fazemos um mestrado, um doutorado… É uma coisa bem fálica que vai crescendo, crescendo, crescendo. Eu acho a coisa é muito mais cíclica, mais circular, em que nosso conhecimento atravessa muitas diferentes disciplinas e está em diálogo com diferentes formatos”, defende. Para Kilomba, o saber e a arte também são territórios de descolonização.

Por isso, suas instalações na Pinacoteca dialogam pouco (ou quase nada) com o acervo do museu. A mostra inclui as obras Illusions, que remete à tradição oral africana, ou griot, em que essa mesma tradição é usada para ressignificar mitos greco-romanos, com estética minimalista e protagonismo de corpos negros. É assim que Kilomba rebela-se contra o que chama de white cubes, as salas de museus que integram um sistema que se propõe universal, mas não é. “A Pinacoteca, que tem um acervo de arte brasileira composto maioritariamente por duas disciplinas clássicas, esculturas e pinturas, representa corpos que não são todos os corpos brasileiros. Portanto, há uma narrativa do que é o conhecimento, do que é a arte, e dos corpos, sexualidades e dos gêneros excluídos, e que cria categorias para desumanizar certos corpos e identificá-los como desviantes, inferiores, insubordinados, aqueles que não podem representar a nação. Essa é uma das dimensões do colonialismo, que é patriarcal, é homofóbico, é toda forma de opressão”, resume.

A artista considera três dimensões intrínsecas ao colonialismo: a marginalização de certos corpos e certas identidades; a capitalização da terra, da natureza, do ambiente; e a militarização das relações humanas. “A política do colonialismo é a política do medo. É criar o ‘outro’, criar corpos desviantes e dizer que eles são assustadores e terríveis e que nós temos que defender-nos deles como barreiras como passaportes e fronteiras”.

Desmantelar essas estruturas de poder, defende Kilomba, passa também pela linguagem visual e semântica. “Normalizamos palavras e imagens que nos informam quem pode representar a condição humana e quem não pode. A linguagem também é transporte de violência, por isso precisamos criar novos formatos e narrativas. Essa desobediência poética é descolonizar”, diz.

A exposição é composta por duas instalações em vídeo —em que a artista interpela o público diretamente ao narrar as histórias de Édipo e Narciso, interpretados por atores negros em um infinito fundo branco—, as projeções de The Dictionary, feitas especialmente para a Pinacoteca, onde ela reinterpreta cinco palavras (negaçãoculpavergonha, reconhecimento e reparação) com uso de textos e sons; e uma escultura, Table of Goods, em que produtos coloniais como açúcar, café e cacau são inseridos num monte de terra, em referência ao colonialismo e à exploração de africanos escravizados.

Imagem de 'Illusions', instalação audiovisual de Grada Kilomba na Pinacoteca de São Paulo.
Imagem de ‘Illusions’, instalação audiovisual de Grada Kilomba na Pinacoteca de São Paulo.

“Gosto de criar instalações em que a audiência vem e não sabe o que é nem como é. Esse momento de confusão é descolonização. É quando começamos a questionar o que é o conhecimento, o que eu sei e o que eu não sei, e por que eu não sei e que relação isso tem com o ato de silenciar e invisibilizar. Na arte, todas as peças são capazes de levantar essas questões”, afirma a artista.

Centralidades

Arte de Grada Kilomba é de uma estética digital, minimalista e futurista, quase espacial, em que corpos se movimentos em espaços em branco. “Tudo isso é parte de uma estratégia do movimento negro de retirar significados. As pessoas estão à espera de símbolos que não dou. Esperam uma artista negra, então vai haver mágica e aquilo e tal, e não há. Gosto de brincar com essa expectativa colonial”, diz.

Frequentemente citada como uma das expoentes da arte contemporânea, ela não quer ser conhecida exclusivamente como artista-mulher-negra. “Quero a liberdade de fazer meu trabalho sem ser reduzida a um corpo, a uma biografia específica. É uma negociação entre ocupar um espaço e trazer uma narrativa e, ao mesmo tempo, não ter que ser marcada para poder estar nesse espaço”. Como exemplo, Kilomba fala de Narciso e Eco, instalação audiovisual em que discute a “branquitude” como privilégio, “um lugar que se apresenta como um centro ausente, porque essa centralidade não é vista como relevante”. “É esse privilégio de não ser marcado que produz o poder, essa ideia de que a branquitude é a condição humana e que, portanto, não precisa ser mencionada, porque, quando falamos de pessoas, falamos de pessoas brancas. E quando falamos de mulheres, falamos de mulheres brancas. E depois falamos sobre os outros”, explica.

Kilomba comenta que há, no Brasil, uma “euforia existencial” por parte do público na recepção de trabalhos artísticos que reflitam essas questões. “O público está cem anos à frente das instituições, para dizer a verdade”, ri e completa: “Há um apelo pela arte que trata das questões de humanidade e igualdade. Infelizmente, essas ainda são visões muito futuristas no presente”.

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