Por Liana Melo, compartilhado de Projeto Colabora –
Comunidades tradicionais, povos indígenas e quilombolas são empecilho para o agronegócio no Cerrado; ruralistas pressionam para aprovar “PL da Grilagem”
A vida de dona Raimunda é um desassossego só. Aos 79 anos, ela vive sob ameaça constante de grileiros há cinco décadas na Comunidade Tauá, território de posseiros tradicionais nos arredores de Barra do Ouro, município distante cerca de 420km de Palmas (TO). Localizada a nordeste do estado, a cidade está na rota da última fronteira agrícola do país: o Matopiba, que se estende dos chapadões que cobrem o oeste da Bahia, ao sul do Maranhão e do Piauí passando pela divisa do Tocantins. A resistência de dona Raimunda é contra inimigos poderosos: representantes da bancada ruralista que assombram Brasília para aprovar, a toque de caixa, no estilo “passando a boiada”, projetos de mudança na legislação fundiária. Para a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, as propostas vão liberar geral a grilagem no país. Se aprovados, os projetos de lei 510/2021 e o 2633/2020, conhecidos como os “PLs da grilagem”, pavimentarão anistias para desmatamentos recentes e aumentarão a expectativa de regularização das invasões. Será a pá de cal para impulsionar a destruição do Cerrado e, em seguida, da Amazônia.
Sem pedir licença e tentando modificar na marra os costumes tradicionais dos povos do Cerrado, os jagunços chegam em Tauá cortando árvores, destruindo casas, matando animais e ateando fogo na roça comunitária – um dos incêndios criminosos chegou a atingir área correspondente a 13 campos de futebol. Vivendo num território alvo de conflitos e disputa pela terra, Raimunda Pereira dos Santos vai logo avisando quando questionada sobre a pressão do agronegócio na sua comunidade: “Nunca gelei, nunca tive medo”. O fazendeiro catarinense Emilio Binotto é o grileiro da região e o mandante das ameaças que miram em dona Raimunda, acusa ela.
Considerada a matriarca de Tauá, mãe de 11 filhos, 39 netos, 29 bisnetos e 4 trinetos, dona Raimunda personifica a força da mulher do Cerrado. Vive na comunidade desde sete anos e não pretende arredar pé. O bioma, antes de ser devastado para dar lugar a grandes campos de soja, entre outros grãos, e pecuária, era ocupado preferencialmente por indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e agricultores familiares – como o clã de dona Raimunda, que migrou do Maranhão para o estado, quando Tocantins ainda fazia parte de Goiás.
Não bastasse ser alvo de ameaças de morte, dona Raimunda chama a atenção para a prática recorrente de afrontar até os espaços sagrados. As cruzes fincadas no cemitério local passaram a dividir espaço com a soja. No Dia de Finados do ano passado, dona Raimunda acender uma vela no túmulo de um dos netos e não encontrou a cruz: “Agora, os pistoleiros estão arrancado até as cruzes”. É mais uma forma de pressionar as famílias para elas saírem do território, comenta Pedro Ribeiro, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Araguaia-Tocantins. “E junto com a soja ou o milho vem o agrotóxico”, acrescenta. A comunidade sobrevive com roça de toco e quintais produtivos, que correm o sério risco de contaminação por conta do uso intensivo de defensivos agrícolas.
Nem mesmo a pandemia impediu a ação de grileiros, como Binotto, na região. Dia 18 de fevereiro, os moradores de Tauá receberam a visita de três homens armados. Em tom intimidador, o trio queria que Dona Raimunda saísse de sua casa, o que não ocorreu porque Edivan, um dos seus filhos, estava, naquele dia, fazendo uma visita. Outras quatro famílias também foram ameaçadas. Por precaução, ela e os parentes evitam andar à noite na estrada que leva até Barra do Ouro. São 6km até a cidade. Ela também tenta não ficar sozinha em casa. Viúva há muitos anos, vive rodeada de filhos, netos e bisnetos.
O Boletim de Ocorrência feito por dona Raimunda e seu filho foi anexado ao processo que corre no Ministério Público Federal (MPF) de Tocantins, comentou Lorrany Neves, assessora jurídica da CPT do Araguaia-Tocantins. Ao longo dos últimos anos, alguns vizinhos, sentindo-se amedrontados com as constantes ameaças e intimidações feitas a mando de Binotto, venderam suas terras.
Não é de hoje que os moradores de Tauá resistem à pressão da grilagem. O caso da comunidade é emblemático. Em 1984, o Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins (Getat) arrecadou a área que corresponde a 17.735 hectares. Mas titulou apenas 5.779. As famílias que não tiveram as terras tituladas, dona Raimunda inclusive, ficaram vulneráveis com a chegada de Binotto, que, a partir de 1992, iniciou seu plano de grilagem. Pouco mais de duas décadas depois de chegar em Barra do Ouro, o fazendeiro requereu junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a regularização de sete áreas, cada uma em nome de pessoas diferentes da sua família. A tentativa não deu certo.
Com a instituição do Programa Terra Legal, em 2009, que limitou o tamanho máximo a ser regularizado em 1.500 hectares, os grileiros recorreram, fracionando toda a área em 14 lotes. “Os lotes foram regularizados em nome de 14 laranjas”, lembra Lorrany, que, através da CPT, denunciou a manobra e todos os processos foram indeferidos administrativamente até em última instância, no extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).
Grilagem e impunidade
A última ameaça a dona Raimunda e outros moradores da Comunidade Tauá ocorreu poucas semanas depois de o presidente Jair Bolsonaro entregar aos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), a lista de iniciativas legislativas consideradas prioritárias para seu governo. Entre as demandas, os projetos de lei 2.633/2020 e 510/2021, que tratam da regularização fundiária de terras públicas da União. Ambos são considerados por seus críticos como herdeiros diretos da MP 910, que ganhou o apelido de “MP da Grilagem”. No último dia 28, Pacheco tentou aprovar o PL 510 no plenário. Cedendo a pressão dos ambientalistas, a votação da proposta foi adiada e será discutida na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA).
Identificados como integrantes da bancada ruralista, Lira e Pacheco são vistos como potenciais aliados do governo na aprovação dos “PLs da Grilagem”. Se é verdade que a prática no Brasil está associada à nossa história e remete aos tempos coloniais, é fato também que com Bolsonaro na presidência os grileiros passaram a atuar com a certeza da impunidade. O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), chegou a defender, recentemente, em videoconferência do jornal “Valor Econômico”, a aprovação de “emenda constitucional que proíba a legalização de terras griladas” no país.
Pandemia, desmatamento e violência no campo
Para promover o desmonte da área ambiental, o governo Bolsonaro afrouxou a fiscalização e relaxou no combate ao desmatamento. Os dois projetos de lei, segundo entidades ambientalistas, estimulariam ainda mais a grilagem e outros crimes. Carta assinada por um conjunto de entidades é taxativa: “Em meio à maior crise sanitária em mais de um século, deveríamos estar preocupados em salvar vidas e planejar a retomada sustentável de nossa economia”. Em outros trechos, o documento afirma que o “PL 510/21 legitima práticas de grilagem”, que já é responsável por um terço do desmatamento no país, além de ser promotora de uma espiral de violência. Em relação ao PL 2.633, a carta denuncia que é “desnecessário e perigoso”, porque possui “brecha que permitiria legalizar via licitação áreas públicas invadidas após a data limite de ocupação prevista em lei”.
“Esses projetos de regularização fundiária que tramitam na Câmara e no Senado são um estímulo para novas invasões e levará a um aumento do desmatamento e da violência no campo contra povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares”, analisa Guilherme Eidt, assessor jurídico do Instituto Sociedade População e Natureza (ISPN), comentando que eles “beneficiam, sobretudo, médios e grandes posseiros, além de anistiar crimes como a grilagem e o desmatamento ilegal”.
Em nota técnica, os pesquisadores do Núcleo de Avaliação de Políticas Climáticas (NAPC), escritório do Climate Policy Initiative (CPI, na sigla em inglês) no Brasil, em parceria com a PUC-Rio, concluíram que “o aumento da violência no campo vem se acirrando à medida que a disputa pela terra recebe sinais inequívocos de que vale a pena invadir terras públicas porque, em algum momento, a legislação poderá ser novamente alterada”.
Os sinais vêm de longa data. Antes da MP 910, houve o programa Terra Legal instituído pela MP 458, de 2009, no governo Lula, seguida da MP 759, de 2016, na gestão Temer. Sempre a pretexto de regularizar a situação de pequenos posseiros, como dona Raimunda, o conjunto de MPs foi desengavetado para favorecer a grilagem praticada pelos grandes proprietários de terra país afora.
“O equilíbrio de forças no Congresso Nacional é favorável à aprovação dos PLs 2.633 e 510, mas ambos foram atropelados pela covid-19 e, mais recentemente, pela CPI da Pandemia”, comenta Girolamo Treccani, professor da Faculdade de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA). Ele é autor do artigo “Lobo em pele de cordeiro”, onde analisa que “uma nova lei de regularização fundiária baseada em procedimento facilitado, que retira critérios ambientais e mecanismos fiscalizatórios a fim de legalizar ilegalidades em renúncia fiscal estrondosa, vai na contramão da Constituição Federal”.
Baixo preço no mercado de terras públicas
Com a perspectiva de aprovação de leis que promovem a anistia de grileiros e regularizam áreas desmatadas recentemente, a corrida por terras na Amazônia só aumenta. “Está mais fácil invadir áreas públicas e isso aqueceu o mercado de terras, aumentando a especulação fundiária e tornando a grilagem ainda mais rentável”, explica Antonio Oviedo, pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA) e um dos autores do estudo “Quem desmata acaba dono da terra”.
A Amazônia e o Cerrado são os alvos preferenciais desta prática, que alimenta uma indústria muito lucrativa. O roteiro é conhecido: o grileiro identifica área pública e expulsa quem nela estiver – povos indígenas, quilombolas, populações tradicionais e pequenos agricultores familiares. Desmata total ou parcialmente a região ocupada, sinalizando assim que está em uso, e tenta legalizá-la. É essa regulamentação que os projetos em tramitação na Câmara e no Senado vão facilitar.
“Estimamos que o projeto de lei 2.633 ameace pelo menos 19,6 milhões de hectares de área federais na Amazônia, os quais podem ser ocupadas e desmatadas na expectativa de regularização”, aponta Brenda Brito, pesquisadora do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). A aprovação do PL, analisa ela, pode levar a um desmatamento adicional entre 11 mil km2 e 16 mil km2 até 2027. E mais: a perda de arrecadação ficaria entre R$ 62 milhões e R$ 88 milhões pela venda de terra pública abaixo do valor de mercado. O PL 510, continua Brenda, vai, entre outros riscos, anistiar o crime de invasão de terra pública àqueles que o praticaram entre o final de 2011 e 2014. Duas notas técnicas do Imazon listam os riscos associados à aprovação dos dois PLs: o 2.633/2020 e o 510/2021.
Ainda que a Amazônia Legal seja a região mais afetada pelos PLs de regularização fundiária – só na floresta há cerca de 56 milhões de hectares de terras públicas ainda sem georreferenciamento –, o Cerrado também está na rota da grilagem. Em uma década, 45% do bioma já foi desmatado e a região do Matopiba vem sendo alvo preferencial de motosserras e queimadas. O Tocantins, onde está a comunidade Tauá, é o campeão do desmatamento, seguido do Maranhão. O Censo Agropecuário do IBGE calcula que, entre 1995 e 2017, o número de estabelecimentos agropecuários diminuiu em 17% no Matopiba, indicativo do processo acelerado de concentração de terras.
Vivendo longe de Brasília, Dona Raimunda já antevê aumento da violência contra os moradores da Comunidade Tauá caso os “PLs da Grilagem” sejam aprovados no Congresso. “Mas eu não saio daqui, aqui é meu lugar! Se chegar a oportunidade de tirarem a minha vida, pois que tirem bem aqui, pois não saio de maneira nenhuma”.