Guardiões da floresta: a luta de um povo pela Amazônia

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Sentindo-se abandonados pelo governo Bolsonaro e munidos de facões e espingardas, indígenas do povo Krikati, do Maranhão, defendem reserva contra madeireiros e criadores de gado. “Fazemos isso por nossos filhos e netos

Por Philipp Lichterbeck, compartilhado de DW




Quando os quatro homens chegam à cabana à noite, cortam a cerca com golpes de facão. Depois, à luz das lanternas dos celulares, olham à volta da estrutura, feita de madeira e com um telhado de folhas de palmeira. Numa prateleira, encontram óleo para máquina.

“Os madeireiros usam-no para olear suas motosserras”, diz Paatep Krikati, o líder da pequena tropa. “Devem ter estado aqui durante vários dias. E eles vão voltar.”

Paatep tinha encontrado o abrigo no fim de um caminho pouco visível na selva. “Os madeireiros queriam escondê-lo bem”, diz ele. “Mas nós, povos indígenas, podemos ler a floresta.”

Paatep, um pequeno homem de 35 anos, joga gasolina na cabana. Espalha-a sobre a madeira e as folhas de palmeira e pega um isqueiro. “Todos para fora!”

As chamas já atingem metros de altura quando, de repente, tiros ecoam pela noite. Os homens instintivamente sacam suas espingardas, apontando-as para a mata. Mas o estrondo veio de cartuchos explosivos que os madeireiros tinham escondido entre as folhas das palmeiras.

O fogo na cabana ocorreu no final de outubro, na reserva do povo indígena Krikati no Maranhão. É um pequeno episódio de um conflito muito maior em curso na bacia do Amazonas: madeireiros, criadores de gado, agricultores, exploradores de ouro e caçadores estão invadindo os territórios dos povos indígenas do Brasil com cada vez maior frequência. Cortam árvores, queimam vegetação, colocam o gado para pastar, contaminam rios, matam animais – e se necessário, até pessoas. Eles  violam a lei que protege estritamente as reservas, mas que não parece mais valer para os povos originários brasileiros.

Abandonados pelo Estado, os krikati, um povo de cerca de 1.300 pessoas, não queriam mais assistir passivamente à destruição. Decidiram defender a sua terra: a sua floresta, os seus rios, as suas aldeias e, por último, o seu modo de vida. Fundaram uma guarda florestal batizada de Guardiões da Floresta, ou, na sua língua, Pji Jamyr Catiji.

Facões, espingardas e cinco sentidos

Um total de 14 homens e uma mulher pertencem à força de voluntários que patrulha a reserva. Usam botas e uniformes verde-oliva provenientes de doações, com  imagem de um jaguar a rugir impressa nas costas. Eles estão armados com facões e espingardas – e os seus cinco sentidos.

Ao procurar o esconderijo dos madeireiros, os krikati reparam em cada galho partido. Seguem pequenos rastros de sangue que os levam aos restos de um macaco estripado por um caçador ilegal (que oferece a carne no dia seguinte na cidade vizinha de Amarante do Maranhão por Whatsapp, a R$ 5 o quilo). Mais tarde, nessa mesma noite, os indígenas ouvem o eco quase perceptível de um tiro distante, disparado por outro caçador na reserva.

“O nosso trabalho é perigoso”, diz Wilson Krikati, de 53 anos, o membro mais velho da expedição. Já houve troca de tiros, diz ele, mas ninguém foi ferido. “Fazemos isso pelos nossos filhos e netos. Sem a nossa terra, eles não terão uma boa vida.”

Indispensáveis para proteger a florestar

No entanto, os krikati defendem muito mais do que apenas a sua reserva. Defendem o resto do mundo também, que enfrenta a quase impossível tarefa de frear a mudança climática. Para isso, seria crucial uma floresta intacta na bacia amazônica, que absorve enormes quantidades de carbono e também funciona como uma gigantesca máquina de circulação de água. Abastece com chuva regiões do Brasil que de outra forma se tornariam savanas. Em algumas áreas do país, esse processo já começou.

E os indígenas são indispensável para a preservação da floresta. Segundo um estudo da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), ninguém a protege melhor. Em nenhum lugar a natureza está mais intacta do que nos territórios indígenas, afirma a FAO enfaticamente.

A reserva Krikati é um dos quase 500 territórios indígenas reconhecidos no Brasil que gozam da proteção da Constituição de 1988. No entanto, as terras indígenas estão sendo atacadas de forma cada vez mais brutal. Há relatos diários de madeireiros, garimpeiros e criadores de gado invadindo-as.

Pela reserva do povo Yanomami no norte do Brasil, por exemplo, já se espalharam 20 mil garimpeiros. Eles atacam aldeias indígenas com armas de fogo. E na reserva dos Piripkura, que ainda vivem isolados do mundo exterior, 3.400 hectares de floresta foram queimados em agosto deste ano. Os poucos piripkura que restam estão ameaçados de extinção, de acordo com a ONG Instituto Socioambiental (ISA).

As reservas do grande rio Xingu na bacia do sudeste do Amazonas são particularmente atingidas. Elas formam uma espécie de barreira contra o avanço do agronegócio para o norte. Mas quanto tempo ela ainda vai durar? Somente neste ano, a destruição da floresta no Xingu aumentou 50% em comparação com o ano passado.

“Sob Bolsonaro, invasores sentem-se intocáveis”

Não seria exagerado afirmar que o futuro da Amazônia é decidido nas reservas indígenas do Brasil – e os krikati lutam na linha da frente.

Depois de completarem a sua missão, Paatep e os outros três voltam para as suas motos, que estacionaram à beira da floresta para não fazerem qualquer barulho. À direita e à esquerda, a luz da lua ilumina a faixa de devastação deixada pelos madeireiros. O solo úmido é cortado por rastros de pneus, há algumas árvores caídas, tal como latas de gasolina vazias com as quais motosserras foram reabastecidas.

“Sinto-me triste”, diz Paatep Krikati. “Eu teria gostado de ter apanhado aqueles tipos. Queria interrogá-los. Quem lhes paga, quem financia as suas máquinas, para que serraria vão os troncos? Mas provavelmente não teriam dito nada. São caras teimosos, são pobres e temem os empresários que estão atrás dessas operações.”

Na volta, os krikati atravessam um pequeno rio que marca a fronteira da reserva. Uma placa pendurada num poste diz: “Governo Federal / Terra Protegida / Acesso Interditado a Pessoas Estranhas”. É o último desses sinais que resta na reserva, todos os outros foram quebrados, derrubados ou alvejados por tiros.

Logo após a saída da floresta, os krikati passam pela propriedade de um pequeno fazendeiro. Quando haviam entrado na floresta horas antes, o fazendeiro gritara: “Pegando malandros, hein?” De fato, ele deve ter percebido tudo nos dias anteriores: o barulho das motosserras e como um caminhão entrou vazio na reserva e saiu carregado com toras. Os povos indígenas suspeitam que o agricultor foi pago para ficar calado.

“Sob Bolsonaro, os invasores tornaram-se mais ousados”, diz Paatep. “Eles sentem-se intocáveis.”

Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro gabou-se de não ter demarcado uma única reserva indígena, um único quilombo ou uma única reserva natural desde que tomou posse, em 2019. Ele cortou financiamento, poderes e pessoal da Funai, do Ibama e do ICMBio. E encheu os órgãos de militares com pouca qualificação. Como resultado, o desmatamento no Brasil está atingindo novos níveis recordes.

Questionada pela DW Brasil sobre a situação na reserva Krikati, a Funai escreveu: “A Funai informa que, nos últimos dois anos, investiu cerca de R$ 3,5 milhões em ações de fiscalização e monitoramento de Terras Indígenas no estado do Maranhão. As atividades são fundamentais para combater ilícitos em áreas indígenas, como grilagem e extração de madeira […]. A Funai apoia ainda diversas operações conjuntas de fiscalização e proteção territorial realizadas em parceria com órgãos ambientais de segurança pública competentes, entre eles, Polícia Federal, Força Nacional, Ibama e Forças Armadas.” Resta saber por que então os krikati se sentem sozinhos na defesa de sua reserva.

“Estamos sozinhos nessa luta, mas não temos medo”

A viagem dos guardiões krikati para casa leva-os por estradas de terra ao longo de cercas aparentemente intermináveis. Atrás deles, há pastagens repletas de gado. O contraste com a floresta densa não poderia ser maior. A reserva está praticamente rodeada de gado, formando a última mancha de natureza intacta em meio ao avanço da fronteira agrícola.

Duas horas mais tarde, exaustos, os guardas florestais chegam à sua aldeia, São José, uma das três dos krikati. A longa viagem ilustra o maior problema da guarda florestal. A reserva é grande demais para ser vigiada por 15 pessoas. Apenas caminhos estreitos e algumas estradas de terra atravessam a reserva montanhosa, cortada por formações rochosas.

Assim, quando os guardiões ouvem que algo está acontecendo, muitas vezes demoram horas para chegar ao local. Eles têm uma pick-up e são condutores extremamente hábeis de motos, mas muitas vezes chegam tarde demais. “Os outros estão sempre um passo à nossa frente”, diz Paatep.

Alguns dias mais tarde, Paatep Krikati envia uma mensagem pelo Whatsapp: “Estamos sozinhos nessa luta, mas não temos medo, porque ter medo é como morrer. Se tivéssemos medo, quem iria proteger o nosso país?” E envia uma foto mostrando uma estrada iluminada por faróis. “Estamos de novo na estrada.”

Explorar sem destruir a Amazônia

Comunidades ribeirinhas dão exemplo de sustentabilidade ao colherem frutos na mata e extraírem óleo para a indústria de cosméticos. Projeto engloba toda a cadeia de produção, da coleta e beneficiamento até o transporte.

Foto: Bruno Kelly

Rio Juruá com comunidade ribeirinha

Conservação e uso sustentável

A Reserva Extrativista Médio Juruá foi oficialmente criada em 4 de março de 1997. Com 28,7 mil quilômetros quadrados, a reserva ocupa um terço do município de Carauari, Amazonas. A unidade de conservação só pode ser utilizada por populações extrativistas tradicionais. São permitidos a agricultura de subsistência e o uso sustentável dos recursos naturais.Foto: Bruno Kelly

Canoa  sobre rio tranquilo

Luta pela liberdade

No passado, a região foi um importante centro fornecedor de látex, matéria-prima da borracha. Na mãos dos patrões (os autoproclamados donos das terras), seringueiros trabalhavam em condição análoga à escravidão. Raimundo Pinto de Sousa, 68 anos, é um dos líderes pioneiros que, inspirados por Chico Mendes, buscaram a liberdade e criaram a Resex.Foto: DW/B. Kelly

 Raimundo Pinto de Sousa

Floresta como fornecedora

Cerca de 2 mil moradores moram nas 14 comunidades da Resex Médio Juruá. A maioria trabalha coletando sementes de andiroba e murumuru na floresta. De março a junho, é possível coletar até 70 quilos de murumuru por dia por pessoa. A família de Eulinda (de amarelo) é campeã na comunidade de Nova União.Foto: Bruno Kelly

Pessoas com bacias catando frutas na floresta

Logística na floresta

A compra das sementes é feita pela Cooperativa de Desenvolvimento Agro-Extrativista e de Energia do Médio Juruá, formada pelos coletores. Um barco visita as comunidades para recolher toda a produção, que é transportada por moradores até a usina de processamento. É preciso vencer várias dificuldades dentro das trilhas pela floresta para fazer o transporte.Foto: Bruno Kelly

Pessoas caminhando sobre córrego numa floresta carregando sacos na cabeça

Da semente ao óleo

As sementes de andiroba e murumuru são processadas na usina que fica na comunidade do Roque, a maior da Resex. Depois de passar por um processo de secagem, as sementes são prensadas até que o óleo escorra pela máquina. A unidade está de mudança para um novo galpão, construído com recursos do Fundo Amazônia.Foto: Bruno Kelly

Duas pessoas junto a uma prensa de óleo

Do Juruá para o mundo

O óleo de andiroba e manteiga de murumuru produzidos são armazenados em baldes apropriados. Até chegar ao ponto de escoamento, as embalagens são transportadas, novamente, pela floresta por moradores. Depois de processadas, as sementes coletadas pelos extrativistas se transformam em produtos de beleza na indústria de cosmético.Foto: Bruno Kelly

Pessoas caminhando em margem de rio carregando baldes brancos na cabeça

Proteção de tartarugas

Antes de a Resex existir, Francisco Mendes da Silva, 63 anos, era madeireiro e contra a criação da reserva. Mas mudou de ideia e, há 18 anos, atua como monitor numa das praias de conservação do Juruá, chamadas de tabuleiro. No Manariã, cerca de 60 mil filhotes são liberados para a natureza por ano, segundo Silva, que ensina o ofício ao filho, João Pedro, de 16 anos.Foto: Bruno Kelly

Homem na praia solta pequenas tartarugas presas em um saco

Agricultura de subsistência

Em todas as comunidades da Resex Médio Juruá, a mandioca é um alimento cultivado importante. A produção de farinha costuma reunir famílias e divertir as crianças, que acompanham os pais quando não estão na escola. O excedente é armazenado na cantina de economia solidária das comunidades e vendido na cidade.Foto: Bruno Kelly

Homem e criança na produção de farinha de mandioca

Acesso ao conhecimento

Cercados pela Floresta Amazônica, 43 estudantes de diversas comunidades do entorno frequentam o primeiro curso de ensino superior oferecido na região, de Pedagogia. O projeto experimental, que tem base na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Uacari, é uma parceria entre diversas instituições e contou com recursos da Capes.Foto: Bruno Kelly

Estudantes durante aula no projeto piloto da primeira Universidade da Floresta, localizada na Reserva de Desenvolvimento Sustentavel Uacari.

Rio Juruá

Com nascente na Serra da Contamana, no Peru, a 453 metros de altitude, o rio Juruá corta o estado do Acre e deságua no rio Solimões, Amazonas. É considerado um dos mais sinuosos do mundo, com mais de 3 mil quilômetros de extensão. A variação do nível do Juruá chega a 12 metros entre a época da cheia, de dezembro a julho, e a seca.Foto: Bruno Kelly

Rio Juruá

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